Alienação de bem alheio: negócio jurídico passível de nulidade

A alienação de bem alheio como próprio é tipificada no Código Penal como conduta criminosa, no art. 171, § 2º, inciso I, podendo o agente sofrer pena de reclusão, de um a cinco anos, e multa.

Art. 171 – Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento: Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis. (…) § 2º – Nas mesmas penas incorre quem: Disposição de coisa alheia como própria I – vende, permuta, dá em pagamento, em locação ou em garantia coisa alheia como própria.

Na esfera cível, as repercussões da alienação de coisa alheia como própria são diversas, a depender do caso concreto. Segundo a lei, que distingue nulidade de mera anulabilidade, o negócio jurídico que faltar elementos substanciais para a validade é passível de nulidade, não produzindo quaisquer efeitos. O escopo de evitar que negócio jurídico que contenham defeitos irremediáveis produzam efeitos é manter a ordem pública e respeito a regras de convivência social.

O Código Civil deixa claro em texto legal que é nulo negócio jurídico cujo motivo determinante, comum entre ambas as partes, for ilícito e onde não há transferência de propriedade em venda de coisa alheia e quando o título for negócio jurídico nulo.

Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: I – celebrado por pessoa absolutamente incapaz; II – for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto; III – o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito; IV – não revestir a forma prescrita em lei; V – for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade; VI – tiver por objetivo fraudar lei imperativa; VII – a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção. (Grifo nosso).

Dessa forma, se o negócio jurídico tinha como motivo determinante a transferência de posse ou propriedade de bens que pertençam a terceiros que não estejam na relação contratual, vê-se que o motivo determinante, comum a ambas as partes, seja ilícito. O negócio jurídico é fruto da vontade das partes, que é resultado de um processo interno que a faz constituir os motivos da vontade, e este é o motivo determinante.

Logo, se ambas as partes que celebram este negócio têm conhecimento acerca da real propriedade do bem, ambas manifestam a vontade de realizar um negócio jurídico que somente poderia ocorrer com a prática de um ato ilícito. No caso, a disposição de coisa alheia como própria, obtendo vantagem ilícita em prejuízo alheio.

Ainda que o negócio jurídico seja revestido da forma prescrita em lei como tentativa das partes de legitimar o mesmo, se há o conhecimento das partes envolvidas que o bem era de propriedade de outrem, o motivo determinante, comum a ambas as partes, é ilícito. Seja bem móvel ou imóvel, a alienação de coisa alheia como própria à terceiro de má-fé acarreta na nulidade do negócio.

O Código Civil dispõe, ainda, sobre a não transferência da propriedade em tradição feita por quem não seja proprietário ou quando tiver por título negócio jurídico nulo. Sabe-se que a tradição somente transfere a propriedade em bens móveis, o que significa que a alienação de bens móveis como próprio a terceiro de má-fé, que gera negócio jurídico nulo, não transfere a propriedade.

Art. 1.268. Feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a propriedade, exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento comercial, for transferida em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé, como a qualquer pessoa, o alienante se afigurar dono. (…) § 2º Não transfere a propriedade a tradição, quando tiver por título um negócio jurídico nulo.

Conforme o entendimento de Silvio Rodrigues, a venda de coisa alheia é nula, tendo em vista que ninguém além do dono poderá dispor da coisa. Clóvis Beviláqua segue no mesmo entendimento ao ensinar que:

Perante a legislação patria, a venda de coisa alheia é nulla, tendo o comprador de bôa fé acção para haver perdas e damnos (sic).

Ou seja, no entendimento de Beviláqua, ainda que o terceiro promitente-comprador esteja de boa-fé, é nulo o negócio jurídico feito entre ele e quem o alienou.

Dessa forma, o negócio jurídico que aliena coisa alheia como própria não produz efeitos e deverá ser considerado nulo. Devendo retornar o bem ao status quo, estado anterior a realização do negócio.

O Direito Brasileiro repudia o enriquecimento sem causa ou ilícito. Seria este aquele que não é devidamente auferido, que é adquirido à custa de outrem. O indevidamente auferido deverá ser restituído ainda que esteja sob posse de terceiro. Conforme o disposto no art. 884 do Código Civil:

Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários. Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido. (Grifo nosso).

E essa é a razão de o bem dever retornar ao estado anterior, pois o contrário disto seria a consagração do enriquecimento indevido à custa alheia que o Direito e a Moral veementemente repudiam.

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OBSCURIDADE. EXISTÊNCIA. ART. 535 DO CPC. SANEAMENTO DO VÍCIO. – Aos embargados foi assegurado o direito de rescindir os contratos de venda e compra de imóveis, com as restituições dos valores dispendidos para o adimplemento das obrigações contraídas, silenciando o órgão julgador quanto à devolução dos bens. – Cabível a oposição do recurso previsto no art. 535 da Lei Processual Civil, para inserir na condenação a obrigação dos autores de devolver os imóveis aos vendedores, aqui recorrentes, retornando os negócios jurídicos ao status quo ante, evitando-se enriquecimento ilícito. (…) Vistos, relatados e discutidos os autos de embargos de declaração acima identificados, acordam os excelentíssimos senhores Desembargadores componentes da Primeira Câmara Cível, em votação unânime, em conhecer do recurso e o acolher, sanando a obscuridade ventilada, nos termos do voto do eminente Relator.

(TJ-CE – ED: 07714398820008060001 CE, Relator: Paulo Airton Albuquerque Filho, Data de Julgamento: 18/01/2016, Primeira Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 18/01/2016). (Grifo nosso).

Conforme jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, para que o enriquecimento ilícito seja evitado, se faz mister que o negócio jurídico retorne ao status quo ante.

Conforme o correto entendimento do STJ, nos julgados abaixo colacionados, a venda de bens alheios a terceiros não exclui a pretensão de nulificação da venda e a recomposição do patrimônio, sendo resolvido qualquer negócio jurídico feito com terceiros.

CIVIL E PROCESSUAL. RECURSO ESPECIAL. PREQUESTIONAMENTO. INSUFICIÊNCIA. INVENTÁRIO. VENDA DE AÇÕES AO PORTADOR PELA VIÚVA MEEIRA DO TITULAR. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE E REINTEGRAÇÃO DE POSSE MOVIDA POR CO-HERDEIROS DO ESPÓLIO. UNIVERSALIDADE DOS BENS. LEGITIMIDADE ATIVA RECONHECIDA. POSSIBILIDADE JURÍDICA DA AÇÃO CONTRA TERCEIROS COMPRADORES. ILEGITIMIDADE PASSIVA DA EMPRESA. SÚMULA N. 211-STJ. CC, ARTS. 57 E 1.580, PARÁGRAFO ÚNICO. CPC, ART. 992, (…) IV. A venda de bens sonegados a terceiros e o direito às perdas e danos dos lesados em relação ao inventariante, prevista no art. 1.783 do Código Civil anterior, não exclui a pretensão de nulificação da venda a terceiros e a recomposição do patrimônio do espólio, se esta foi a via legal escolhida pelos herdeiros. V. Recurso especial conhecido em parte e parcialmente provido.

(STJ – REsp 54519 SP, Relator(a): Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, Data de Julgamento: 14/06/2005, Quarta Turma, Data de Publicação: Diário da Justiça 22/08/2005.) (Grifo nosso).

RESCISÃO CONTRATUAL E RETORNO DA PARTES AO STATUS QUO ANTE. INDENIZAÇÃO PELO USO DO IMÓVEL OBJETO DO CONTRATO DESFEITO. 1. Não há ofensa ao art. 535 do CPC quando o tribunal de origem se pronuncia devida e suficientemente sobre as questões postas a debate, sem incorrer nas hipóteses previstas no mencionado dispositivo processual. 2. Declarada a resolução do contrato de compra e venda de imóvel e o retorno das partes ao estado anterior, é cabível a indenização pelo tempo em que o comprador ocupou o bem, desde a data em que a posse lhe foi transferida, a fim de evitar enriquecimento ilícito. 3. Recurso especial provido.

(STJ – REsp 1287191 RS, Relator(a): Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Data de Julgamento: 21/10/2014, Quarta Turma, Data de Publicação: Diário da Justiça 13/11/2014.) (Grifo nosso).

Conforme entendimento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, não poderá prosperar contrato de compra e venda de quem aliena bem do qual não é legítimo possuidor, o que acarreta na resolução do contrato.

APELAÇÃO CÍVEL. PROMESSA DE COMPRA E VENDA. AÇÃO DE RESCISÃO DE CONTRATO. CONTRATO DE CESSÃO E TRANSFERÊNCIA DE DIREITOS POSSESSÓRIOS, TENDO POR OBJETO IMÓVEL DO QUAL O ALIENANTE NÃO DETINHA POSSE MANSA E PACÍFICA. IMPOSSIBILIDADE DE ADIMPLEMENTO DO CONTRATO, POIS QUE EXERCIDA A POSSE POR PESSOA DISTINTA AO DO ALIENANTE. RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO, COMO MEDIDA IMPERATIVA. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (…) o demandado alienou área sobre a qual não teria posse mansa e pacífica, exercida, em verdade, por terceira pessoa, de nome Fábio Rostandi. É o que se depreende, em especial, da prova testemunhal produzida. […] Claro, portanto, que o demandado Gilberto Antoninho alienou ao autor, Sérgio Mendonça, imóvel do qual não tinha efetiva posse, do que decorre a imperatividade da resolução do contrato, diante do claro inadimplemento do demandado. […]

(TJ-RS – AC: 70067868240 RS, Relator: Pedro Celso Dal Pra, Data de Julgamento: 25/02/2016, Décima Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 01/03/2016). (Grifo nosso).

Pontes de Miranda em Tratado de Direito Privado nos ensina:

O fundamento das relações jurídicas pessoais por enriquecimento injustificado está em exigência de justiça comutativa, que impõe restituição daquilo que se recebeu de outrem, sem origem jurídica. Também esse e fundamento da obrigação de indenizar gastos que se fizeram, voluntariamente, no interesse de outrem.

O negócio jurídico que celebra a alienação de bem alheio como próprio a terceiro de má-fé deverá ser nulo por transigir regra de sobrevivência na sociedade. Por esta razão, é imprescritível a ação que visa confirmar a nulabilidade do negócio jurídico, segundo o entendimento de parte da doutrina.

Assim, demonstrado que foi realizado compra e venda de bem alheio, faz-se necessária a rescisão destes contratos e o retorno do bem ao status quo ante, independente de estar com terceiro de má-fé ou boa-fé. Este último, todavia, terá o direito de regresso contra quem o alienou o bem alheio.

REFERÊNCIAS:
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2003.
AQUINO, Leonardo Gomes de. Invalidade do negócio jurídico. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIII, n. 82, nov 2010. Disponível em: <http://goo.gl/6NIKch>. Acesso em 19 ago 2016.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Invalidade e ineficácia do negócio jurídico. In: Revista Jurídica, nº 311, p. 7, set 2003. Disponível em: <http://goo.gl/MwdKOX>. Acesso em 19 ago 2016.
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