O procedimento administrativo presidido pela autoridade policial, com finalidades investigatórias, é chamado de Inquérito Policial. Não tendo interesse público na continuidade do feito, é pedido o arquivamento do mesmo. A divergência existe, portanto, em saber se o arquivamento de Inquérito Policial faz coisa julgada material.
Posição do STJ
O Superior Tribunal de Justiça, em 2015, se pronunciou sobre o arquivamento de Inquérito Policial com base em excludente de ilicitude. No Informativo de Jurisprudência nº 554, de 25 de fevereiro de 2015, o Tribunal Superior entendeu que faz coisa julgada material o arquivamento com base na excludente de ilicitude de legítima defesa, ou seja, não pode mais ser desarquivado o referido Inquérito para posterior discussão.
Como a existência de uma causa de exclusão de culpabilidade é análise de mérito, estaria sendo visto o mérito na decisão que homologasse o arquivamento.
Portanto, o arquivamento de inquérito faz somente coisa julgada formal. Ocorre que, nos termos do Informativo, “a decisão que define o mérito do caso penal, mesmo no arquivamento do inquérito policial, gera efeitos de coisa julgada material”. Segue a ementa do Acórdão que trata sobre isso:
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PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. INQUÉRITO POLICIAL ARQUIVADO POR RECONHECIMENTO DA LEGÍTIMA DEFESA. DESARQUIVAMENTO POR PROVAS NOVAS. IMPOSSIBILIDADE. COISA JULGADA MATERIAL. PRECEDENTES. 1. A permissão legal contida no art. 18 do CPP, e pertinente Súmula 524/STF, de desarquivamento do inquérito pelo surgimento de provas novas, somente tem incidência quando o fundamento daquele arquivamento foi a insuficiência probatória – indícios de autoria e prova do crime.
2. A decisão que faz juízo de mérito do caso penal, reconhecendo atipia, extinção da punibilidade (por morte do agente, prescrição…), ou excludentes da ilicitude, exige certeza jurídica – sem esta, a prova de crime com autor indicado geraria a continuidade da persecução criminal – que, por tal, possui efeitos de coisa julgada material, ainda que contida em acolhimento a pleito ministerial de arquivamento das peças investigatórias.
3. Promovido o arquivamento do inquérito policial pelo reconhecimento de legítima defesa, a coisa julgada material impede rediscussão do caso penal em qualquer novo feito criminal, descabendo perquirir a existência de novas provas. Precedentes. 4. Recurso especial improvido.
(REsp 791.471/RJ, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 25/11/2014, DJe 16/12/2014)
Esse entendimento acatou os termos defendido por uma teoria conhecida como Teoria da Ratio Essendi, ou “razão de ser“.
Esse posicionamento é altamente criticado com base na adoção da Teoria da Ratio Cognoscendi, ou “razão de conhecer“.
Em síntese, não seria ônus da acusação encontrar excludente de ilicitude, devendo comprovar o fato típico e a autoria. Havendo fato típico, indiciariamente, há Ilicitude. Não aceitam que não interesse em provocar o Judiciário para acatar a excludente de ilicitude.
Posição do STF
O Supremo Tribunal Federal, também em 2015, entendeu de forma diversa do STJ. A Corte Suprema entendeu por adotar a Teoria da Ratio Cognoscendi.
No julgamento do Habeas Corpus 125.101/SP afirmou que não faz coisa julgada material, apesar de tratar do mérito, arquivamento de Inquérito com base em excludente de Ilicitude. O STF se posicionou da seguinte forma: é possível o arquivamento de Inquérito Policial com base em excludente de Ilicitude, mas não faria coisa julgada material.
Surge então a divergência jurisprudencial: O STJ entende que o arquivamento com base em excludente de ilicitude faz coisa julgada material, por analisar o mérito; enquanto o STF afirma que, mesmo aceitando o arquivamento com base em excludente de ilicitude, não faz coisa julgada material (Informativo do 2º semestre de 2015).
Caso julgado pelo STF
Entretanto, há uma peculiaridade no HC analisado pelo Supremo. O STF estava tratando de crime praticado por militar na decisão em epígrafe, cuja competência para julgamento teria sido modificada legalmente.
Os crimes dolosos contra a vida de civis não são julgados pelo Código Penal Militar, sendo crimes comuns, julgados pela Justiça Comum. Essa alteração legal aconteceu em 1996, posteriormente confirmada com a Emenda Constitucional nº 45/2005.
Ocorre que, na época da lei que modificou isso, havia grupos de extermínio, composto por militares, que eram investigados por Inquéritos Policiais Militares. Esses inquéritos eram, em grande parte, arquivados com base em excludentes de ilicitudes presentes na legislação militar (estrito cumprimento de dever legal, por exemplo).
A Justiça Militar da União ficaria então competente para julgar os crimes militares definidos em lei e as justiças militares estaduais seriam competentes para julgar os militares no âmbito estadual pelos crimes militares assim previstos em lei, conforme Art. 124 e Art. 125, § 4º da Constituição Federal.
O caso julgado pelo Supremo envolveu essa controvérsia apresentada. O Inquérito Policial Militar arquivado era anterior a Lei 9.299/96. Um Inquérito Policial Militar foi arquivado, antes da Lei de 1996, com base em excludente de ilicitude. Anos após, foi reaberto Inquérito Policial, culminando em Ação Penal que findou em condenar o Policial Militar por homicídio, no Tribunal do Júri.
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No caso em tela, a tese da defesa foi a violação da coisa julgada. O argumento era que o arquivamento homologado com base em excludente de ilicitude faria coisa julgada material, não podendo mais se falar em Inquérito após o trânsito em julgado da decisão.
Nessa hipótese, o Supremo Tribunal Federal proferiu sua decisão da seguinte maneira: o Inquérito Policial Militar arquivado com base em excludente de ilicitude não faz coisa julgada material, podendo ser rediscutido posteriormente. Segue a ementa do referido Habeas Corpus:
Habeas corpus. Processual Penal Militar. Tentativa de homicídio qualificado (CP, art. 121, § 2º, inciso IV, c/c o art. 14, inciso II). Arquivamento de Inquérito Policial Militar, a requerimento do Parquet Militar. Conduta acobertada pelo estrito cumprimento do dever legal. Excludente de ilicitude (CPM, art. 42, inciso III). Não configuração de coisa julgada material. Entendimento jurisprudencial da Corte. Surgimento de novos elementos de prova. Reabertura do inquérito na Justiça comum, a qual culmina na condenação do paciente e de corréu pelo Tribunal do Júri. Possibilidade. Enunciado da Súmula nº 524/STF. Ordem denegada.
1. O arquivamento de inquérito, a pedido do Ministério Público, em virtude da prática de conduta acobertada pela excludente de ilicitude do estrito cumprimento do dever legal (CPM, art. 42, inciso III), não obsta seu desarquivamento no surgimento de novas provas (Súmula nº 5241/STF). Precedente. 2. Inexistência de impedimento legal para a reabertura do inquérito na seara comum contra o paciente e o corréu, uma vez que subsidiada pelo surgimento de novos elementos de prova, não havendo que se falar, portanto, em invalidade da condenação perpetrada pelo Tribunal do Júri. 3. Ordem denegada.
(HC 125101, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Relator(a) p/ Acórdão: Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 25/08/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-180 DIVULG 10-09-2015 PUBLIC 11-09-2015)[1]
Conclusão
Esse julgado é de 2015, mesmo ano da decisão do STJ, mas sendo em sentidos contrários. No caso do STF é uma circunstância peculiar, mas o pensamento adotado pelo Supremo seguiu a Teoria da Ratio Cognoscendi. Enquanto, do outro lado, o STJ acatou a Teoria da Ratio Essendi.
[1]No mesmo sentido: HC 95211, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 10/03/2009, DJe-160 DIVULG 19-08-2011 PUBLIC 22-08-2011 EMENT VOL-02570-01 PP-00169
O STJ entende que o arquivamento com base em excludente de ilicitude faz coisa julgada material, por analisar o mérito; enquanto o STF afirma que, mesmo aceitando o arquivamento com base em excludente de ilicitude, não faz coisa julgada material (Informativo do 2º semestre de 2015).
Referências BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão do Habeas Corpus 125.101. Relator: Min. TEORI ZAVASCKI, Relator(a) p/ Acórdão: Min. DIAS TOFFOLI. Publicado no DJE – 180 de 10-09-2015. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão do Recurso Especial nº 791.471/RJ. Relator: Ministro NEFI CORDEIRO. Publicado no DJE de 16-12-2014.