Em decisão histórica, o Ministro Luís Roberto Barroso, nesta terça (29), afirmou que a criminalização da interrupção voluntária no primeiro trimestre de gestação seria uma ofensa a diversos direitos fundamentais da mulher. Três dos cinco ministros da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal se posicionaram nesses termos, considerando que esse crime não teria sido recepcionado pelos valores constitucionais de 1988.
Segundo o Ministro Barroso, haveria a não-recepção dos Arts. 124 e 126 do Código Penal em relação a interrupção voluntária no primeiro trimestre de gestação, em suas palavras
“[…] é preciso conferir interpretação conforme a Constituição ao arts. 124 e 126 do Código Penal, para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre.“
Com isso, o Supremo Tribunal Federal abre um precedente para, possivelmente, não ser mais criminalizada a interrupção voluntária no primeiro trimestre de gestação. Em outras palavras, nos primeiros 3 (três) meses de gravidez, não seria crime o aborto consentido; nem em relação à mulher, nem aos agentes que realizaram o procedimento de aborto.
Julgamento
Essa manifestação do Douto Ministro ocorreu em seu voto-vista, na tarde desta terça, em no Habeas Corpus de nº 124.306/RJ, tramitando na Corte Suprema deste país. Trata-se de pedido de liberdade de dois réus, E.S e R.A.S, em face de prisão preventiva mantida pelo Superior Tribunal de Justiça.
Os acusados mantinham, supostamente, uma clínica de aborto, e teriam sido presos em flagrante por estarem realizando procedimento com consentimento de gestante. Em tese, estaria tipificados com base no Art. 126 do Código Penal Brasileiro: Aborto Provocado por Terceiro com Consentimento da gestante.
Quando da impetração do remédio constitucional, o Ministro-Relator Marco Aurélio deferiu a medida, pondo os réus em liberdade. Inicialmente, em 2014, teriam sido revogadas as prisões em flagrante por motivos processuais. Em junho deste ano, os efeitos do relaxamento teriam sido estendidos aos demais réus.
Entretanto, o Ministro Luís Roberto Barroso se manifestou em voto-vista pela interpretação conforme a Constituição em relação aos Arts. 124 e 126 do Código Penal. Conforme mencionado acima, deveria haver a não recepção desses artigos em relação ao aborto consentido nos primeiros 3 (três) meses de gestação. Por maioria da 1ª Turma, ficou entendido que não seria crime no caso em questão.
Doutor em Direito Público pela UERJ, com várias obras publicadas, principalmente na área de Direito Constitucional, o Ministro afirma ser uma ofensa grave aos direitos fundamentais da mulher a criminalização de tais condutas.
Direitos Fundamentais em debate
O primeiro argumento utilizado no referido voto foi a ponderação entre Direitos Fundamentais. Estes, em síntese, são normas jurídicas, cuja base axiológica é a dignidade humana e a limitação de poder, constitucionalmente positivadas, que fundamentam e legitimam o restante do ordenamento jurídico.
Nas palavras do Ministro, o Direito Penal deve atuar na ”proteção de um bem jurídico relevante, que o comportamento incriminado não constitua exercício legítimo de direito fundamental e que haja proporcionalidade entre a ação praticada e a reação estatal“.
Diante disso, houve uma ponderação de valores na decisão proferida pelo Ministro. De um lado, a vida potencial do feto. Do outro, conforme apresentado em sua manifestação, vários direitos fundamentais da mulher, além do fato da mulher já estar passando por uma situação muito difícil ao realizar o aborto.
“O Estado precisa estar do lado de quem deseja ter o filho. O Estado precisa estar do lado de quem não deseja – geralmente porque não pode – ter o filho. Em suma: por ter o dever de estar dos dois lados, o Estado não pode escolher um.“
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Em resumo, os direitos ofendidos seriam: violação à autonomia da mulher; do direito à integridade física e psíquica; dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher; à igualdade de gênero; seria uma forma de discriminação social e impacto desproporcional sobre mulheres pobres.
Inicialmente, defende que a mulher tem o direito de fazer suas escolhas existenciais, o que inclui essa decisão que ditará seu próprio futuro. Por ser ela que sofre as consequências da gravidez, deve ser respeitada sua vontade quanto a sua integridade física. Além disso, o Estado não poderia obrigar uma pessoa a manter uma gestação indeseja, sendo coerção o atual tratamento estatal. Ainda, defende que a proteção da autonomia da mulher seria uma expressão da liberdade de gênero.
Por fim, configura grave ofensa ao princípio da proporcionalidade, pois deveria ser proibir o excesso. Se posiciona pela não recepção dessa repressão excessiva. Além disso, expõe pesquisas no sentido da ineficácia da proibição diante do fim pretendido, ou seja, da proteção à vida do nascituro.
O Ministro Barroso embasou sua decisão em pesquisas científicas na área sobre o assunto. Ele embasa sua decisão na linha que sustenta que “antes da formação do sistema nervoso central e da presença de rudimentos de consciência – o que geralmente se dá após o terceiro mês da gestação – não é possível ainda falar-se em vida em sentido pleno.“
Decisão histórica
O debate acerca do assunto é da mais alta complexidade nos tempos modernos. Muitos até entendem que se trata de um tema que não deve ser debatido, como se fosse um tabu. Há discussões no âmbito moral, ético, religioso, jurídico, dentre as mais diversas áreas de estudos humano que analisavam o assunto.
Não obstante a complexidade, o Ministro não enfrentou exaustivamente todos os debates. Sustentou essa possibilidade de aborto em defesa dos direito fundamentais da mulher, mas não exauriu a discussão acerca do assunto. Vale destacar trecho da decisão nesse sentido, ressalvando possíveis pensamentos em contrário:
Deixe-se bem claro: a reprovação moral do aborto por grupos religiosos ou por quem quer que seja é perfeitamente legítima. Todos têm o direito de se expressar e de defender dogmas, valores e convicções. O que refoge à razão pública é a possibilidade de um dos lados, em um tema eticamente controvertido, criminalizar a posição do outro.
Em oportunidade, o Ministro Luís Roberto Barroso ainda criticou a defasagem da legislação penal brasileira, por ter sido produzida em uma época com valores diversos dos contemporâneos. Segundo ele, esse é o motivo para a necessidade de uma maior ativismo judicial, citando o caso que STF julgou descriminalizando a interrupção da gestação na hipótese de fetos anencefálicos.
Essa decisão abre um precedente nunca visto no ordenamento jurídico brasileiro. Reascende, inclusive, o debate acerca do ativismo judicial. Até onde vai o Poder do Controle de Constitucionalidade garantido ao Judiciário? Estaria o Judiciário respeitando a separação de poderes constitucionalmente prevista ou atuando nas suas funções à luz dos novos valores contemporâneos?
Referências: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Voto-Vista do Ministro Luís Roberto Barroso no Habeas Corpus nº 124.306/RJ. Relator: Marco Aurélio. Publicado em 29/11/2016. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC124306LRB.pdf. Acessado em 29/11/2016. Imagem Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/6/62/Luis_Roberto_Barroso_em_sabatina.jpg.