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Constitucional

Os avanços dos direitos indígenas à luz da Constituição Federal de 1988

Redação Direito Diário

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Atualizado pela última vez em

 por Ingrid Carvalho

1 INTRODUÇÃO

Desde a colonização, buscou-se garantir algum direito ao indígena brasileiro, tendo em vista que os portugueses entendiam que aqueles eram os primeiros habitantes do Brasil, na época, colônia de Portugal. A própria legislação régia garantia aos povos indígenas amigos/aldeados, manterem-se nas suas terras tradicionalmente ocupadas, como revela o disposto no Régio de 1º de abril de 1680, fatos estes que serão abordados no primeiro capítulo desse trabalho.

Em contrapartida ao apoio da Metrópole Portuguesa no reconhecimento de algum direito aos índios “gentis”, colonos portugueses promoviam o extermínio ou a escravização dos indígenas que resistiam ao seu domínio. Havia ainda a atuação da Igreja: os padres jesuítas realizavam a catequese de comunidades indígenas inteiras, buscando pacificá-los e conseguir mais adeptos ao cristianismo, desconsiderando suas culturas e tradições próprias.

Séculos se passaram, o Brasil tornou-se uma república e o cenário de desrespeito aos direitos indígenas não mudou muito, como se poderá verificar ainda no primeiro capítulo do presente artigo, ao proceder com a análise da Lei de Terras de 1850.

Sendo assim, uma legislação que garantisse os direitos desses povos e uma atuação firme do Estado fez-se essencial na busca de mudanças, por décadas.

Ao longo do segundo capítulo do presente artigo científico, abordar-se-á a temática principal desse trabalho, procedendo com a análise da Constituição Federal de 1988 (CF/88) quanto à tutela que a mesma concedeu às populações indígenas, a qual reservou o seu Capítulo VIII para tratar dos direitos e garantias desses povos.

Dessa forma, a atual Carta Magna permite dar voz a minorias brasileiras já tão negligenciadas pela própria sociedade e pelo Poder Público. Destaca-se, inclusive, o seu artigo 5º, o qual apresenta vários direitos e deveres intrínsecos ao cidadão brasileiro, direitos estes, com status de garantias fundamentais individuais, como liberdade, igualdade, vida, propriedade e segurança, os quais se estendem aos grupos indígenas. A defesa dessas garantias caberá à União, bem como de protegê-las e assegurá-las, inclusive, aos povos indígenas.

No último capítulo do presente trabalho abordar-se-á a Proposta de Emenda Constitucional 215, a qual propõe, entre outras medidas, transferir a função de homologação da demarcação das terras indígenas do Poder Executivo para o Congresso Nacional, o que traria uma série de consequências para esse processo, as quais poderiam, inclusive, atingir diretamente o direito originário dos indígenas às terras tradicionalmente ocupadas por eles.

Por fim, para alcançar o objetivo científico proposto, a metodologia a ser utilizada basear-se-á em um estudo descritivo analítico, desenvolvido através de pesquisa bibliográfica, mediante explicações embasadas em trabalhos publicados sob a forma de livros, revistas, publicações especializadas, imprensa escrita, artigos e dados oficiais publicados, que abordem direta ou indiretamente o tema em análise.

O resultado esperado desse trabalho consiste em esclarecer os direitos e garantias dos povos indígenas brasileiros sob a égide da Constituição Federal de 1988, em seu Capítulo VIII, sem deixar de demonstrar alguns dos desrespeitos que esses povos sofreram ao longo de sua história, amparados, inclusive, legislativamente, como foi o caso da Lei de Terras de 1850.

Buscar-se-á entender a realidade indígena de luta pelo reconhecimento de seus direitos e contra a violência que sofreram – e ainda sofrem – de colonos, latifundiários, posseiros e, até mesmo, do Estado.

2 MARCOS LEGISLATIVOS INICIAIS PARA O DIREITO INDÍGENA NA HISTÓRIA DO BRASIL

    O reconhecimento do direito originário dos indígenas sobre a terra que ocupam remete ao período do Brasil Colonial, em que este não passava de uma colônia portuguesa na América “recém-descoberta”. Acerca desse direito, destaca-se a ligação intrínseca existente entre os povos nativos brasileiros à época da chegada dos portugueses com o meio ambiente, retirando da terra, dos rios, da fauna e da flora seu sustento, suas crenças e suas tradições.  Fato este que posteriormente seria reconhecido como o instituto do “indigenato”.

   Esse vínculo entre as comunidades indígenas e a terra que habitavam foi percebido pelos europeus que vinham ao Brasil, os quais passaram a ficar receosos com isso, pois poderia ser um obstáculo ao processo de domínio e expansão territorial que a Coroa Portuguesa buscava implementar no Brasil.

   Dessa forma, os índios passaram a serem vistos pelos colonizadores como uma ameaça aos seus objetivos políticos e econômicos na Colônia. Portanto, passaram a apoiar as missões jesuítas ao Brasil. Estas tinham a função de realizarem a catequização do índio e, assim, fazer com que os indígenas aceitassem a dominação portuguesa sobre os seus territórios ou ainda se disponibilizassem a serem utilizados como mão de obra barata pelos colonos que aqui se instalavam. Em contrapartida, a Igreja Católica, a qual perdera força e influência com as reformas protestantes, também seria beneficiada diretamente com a catequização desses povos, pois teria mais adeptos e influência.

   Já os indígenas que se rebelavam contra o domínio português eram vistos como “inimigos” da coroa, conhecidos como “bravios”, aos quais a Coroa Portuguesa autorizava o seu massacre ou sua escravização, por meio das “guerras justas” [1].

   Em meio ao contexto de disputas territoriais, à atuação da igreja Católica junto aos povos indígenas amigos/aldeados, e às guerras justas, a Metrópole apresentou o primeiro marco na legislação régia acerca da delimitação das terras indígenas: o Alvará Régio de 1º de abril de 1680. Foi o primeiro diploma legal que reconheceu instituto do indigenato no Brasil, ou seja, legitimou o direito da ocupação indígena sobre suas terras:

[…] E para que os ditos Gentios, que assim decerem, e os mais, que há de presente, melhor se conservem nas Aldeias: hey por bem que senhores de suas fazendas, como o são no Sertão, sem lhe poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhe fazer moléstia. E o Governador com parecer dos ditos Religiosos assinará aos que descerem do Sertão, lugares convenientes para neles lavrarem, e cultivarem, e não poderão ser mudados dos ditos lugares contra sua vontade, nem serão obrigados a pagar foro, ou tributo algum das ditas terras, que ainda estejão dados em Sesmarias e pessoas particulares, porque na concessão destas se reserva sempre o prejuízo de terceiro, e muito mais se entende, e quero que se entenda ser reservado o prejuízo, e direito os Índios, primários e naturais senhores delas.

     Esse direito originário[2] sobre as terras habitadas por indígenas era destinado apenas aos ditos índios “gentis”, aqueles que não colocavam resistência à dominação portuguesa nem à catequização. Na realidade, tratou-se de uma tentativa de diminuir os conflitos com esses povos e ganhar seu apoio ao processo de colonização do Brasil.

   Em meio ao fim do tráfico negreiro e a valorização das terras para cultivo de produtos agrícolas, como o café, surgiu outro marco legislativo importante quanto aos direitos indígenas: a Lei de Terras de 1850 (Lei 601), a qual gerou sérias consequências ao direito originário dessas comunidades com relação às terras que ocupavam ou que deveriam vir a possuir.

   Primeiramente, a Lei de Terras impossibilitou o sistema de posse e doação de terras, pois determinou que apenas era possível a aquisição das mesmas através da sua compra, incluindo as “terras devolutas”, que apenas poderiam ser adquiridas por meio da compra junto ao governo. Ressalta-se que muitas comunidades indígenas existiam espalhadas por terras, onde possuíam apenas a posse ou o domínio do lugar, assim, estes não eram considerados legitimados para a propriedade da terra e essas poderiam ser adquiridas por grandes fazendeiros, inclusive, o que ocasionava a expulsão forçada de comunidades indígenas inteiras que possuíam o direito originário sobre aquele território.

   Com isso, o governo pretendia arrecadar mais dinheiro com a comercialização das terras, já que tinha sofrido uma grande perda econômica com o fim do tráfico negreiro.

   O resultado dessa Lei foi o aumento da concentração de terras sob o domínio dos grandes latifundiários, pois apenas eles que possuíam dinheiro suficiente para pagar ao governo pelos grandes lotes de terras, além de deterem grande influência e prestígio junto aos políticos brasileiros, o que colaborava no processo de aquisição.

   Dessa forma, pode-se perceber que a Lei 601 colaborou para a posse de terra nas mãos de poucas pessoas. Os mais humildes não tinham como ter acesso às terras, pois não tinham quantia suficiente para comprá-las. Já com relação aos povos indígenas, estes foram impedidos de permanecer nas terras que tinham “apenas” a posse, muitos sendo mortos violentamente nesse processo de aquisição pelos latifundiários, outros morreram de doenças transmitidas pelo contato com a sociedade, dizimando populações inteiras.

   Após as referidas leis, outras vieram, o direito originário dos povos indígenas passou as ser mencionado nas constituições seguintes; órgãos e fundações foram criados na defesa desses povos; movimentos organizaram-se na luta por garantias constitucionais aos indígenas; porém, apenas com Constituição Federal de 1988 que essa minoria ganhou o destaque merecido e a tutela digna de seus direitos e garantias constitucionalmente.

 3 OS AVANÇOS DOS DIREITOS INDÍGENAS À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

 Constituição Federal de 1988, promulgada em 05 de outubro de 1988, representou um significativo progresso no processo democrático brasileiro, consagrando, em alguns de seus artigos, a temática indígena. A CF/88 inovou em seu conteúdo e soube amparar legalmente as minorias existentes no País, ganhando o título de “Constituição Cidadã” por reconhecer e assegurar direitos antes não tutelados constitucionalmente. Dessa forma, a CF/88 permitiu que o Brasil se enquadrasse como um Estado Democrático de Direito.

A legislação constitucional atual rompe com a ideia de “assimilacionismo”, a qual defende que os costumes, a cultura e os conhecimentos científicos da sociedade nacional devem ser ensinados aos índios, para integrá-los nesse meio social, ideia essa bastante defendida nas décadas anteriores, com amparo em ideais positivistas. É possível perceber esse rompimento de ideias na CF/88, quando esta garante a autodeterminação dos povos, em seu artigo 4º[3]. Com isso, assegura-se às populações indígenas o reconhecimento de sua diversidade cultural, social e política.

No entanto, o grande destaque legislativo presente na Carta Magna quanto ao reconhecimento dos direitos indígenas apresenta-se nos seus artigos 231 e 232.

O artigo 231 da Constituição traz o conceito normativo-jurídico de Terra Indígena e ainda reconhece a cultura, as tradições, as crenças e a organização social dos indígenas, algo inédito nas constituições brasileiras. No seu caput, pode-se verificar isso, o qual afirma expressamente: São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Com o disposto no caput, é reconhecido o povo indígena na sua íntegra, com sua cultura própria, suas crenças e tradições singulares, bem como com sua estrutura organizacional ímpar, pelo Estado Brasileiro. Além disso, ainda reafirma os direitos originários dos indígenas sobre a terra que ocupam e à qual estão intrinsecamente ligados, pois é de onde retiram a sua sobrevivência humana e cultural, motivos estes de séculos de luta dessas comunidades.

Ainda se destaca a responsabilidade da União em realizar o processo de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas, na parte final do caput do referido artigo, cabendo à mesma garantir o respeito aos bens naturais existentes nas terras indígenas. Grande responsabilidade essa adotada pela União e que, devido a interesses particulares de pessoas influentes, à falta de recursos humanos e financeiros, bem como às grandes extensões das reservas indígenas, acaba por ser mal executada, deixando os bens constitucionalmente garantidos aos índios desprotegidos ou fragilizados.

No primeiro e segundo parágrafos do art. 231, pode-se observar, de forma clara e objetiva, a definição atribuída às terras que são objetos dos direitos originários dos indígenas e o que a elas incorporam; por fim, ainda declara, expressamente, o direito dos índios à posse permanente dessas terras:

1º – São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições; § 2º – As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

Pode parecer singela a definição desses conceitos e descrições, no entanto, tais fatos possibilitaram aos povos indígenas possuírem substrato legal na defesa de seus direitos e garantias, algo que é fruto de muitas lutas e reivindicações.

   No parágrafo terceiro[4] do artigo 231 da CF/88, inclui-se o direito de participação dos povos indígenas nas tomadas de decisões que possam atingi-los diretamente. Tal princípio foi influenciado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), mais especificamente em seu artigo 6º, o qual defende que medidas legislativas e administrativas que venham a afetar as comunidades indígenas, devem ser a eles consultadas, de forma prévia e livre, tendo em vista que eles são os principais interessados e os atingidos por essas medidas:

Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:

a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;

b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes;

c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse fim. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas.

Outro grande avanço legislativo para as garantias das populações indígenas, presente no parágrafo quarto do artigo 231 da Carta Magna, foi tornar inalienável e indisponível as terras tradicionalmente habitadas, além de tornar imprescritíveis os direitos a elas resguardados. Isso garante uma maior segurança jurídica aos detentores dessas terras, resguardando o direito deles poderem buscar a guarda do ordenamento jurídico brasileiro na defesa de seus territórios: § 4º – As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. É um importante instrumento de combate ao domínio irregular das terras indígenas por posseiros e latifundiários, bem como sua violação e a de seus bens por aqueles interessados nas riquezas naturais existentes nessas localidades.

Ponto que também merece destaque está disposto no parágrafo quinto do mencionado artigo, pois trata sobre as condições para a retirada dos indígenas de suas terras, ratificando a garantia de regresso desses povos às mesmas, assim que findado o perigo iminente. Revela-se mais uma forma de buscar firmar a posse dessas localidades aos índios:

5º – É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.

   O último parágrafo do artigo 231 vem consolidar a tentativa do Estado em preservar, conservar e zelar pelos direitos originários das comunidades indígenas tratados ao longo de todo o dispositivo aqui analisado, respaldando, inclusive, suas atitudes no Princípio da Boa-fé e fazendo uso dos instrumentos disponíveis no ordenamento jurídico do País para fazer cumprir o que é garantido no texto constitucional a essas minorias:

6º – São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.

Seguindo na análise dos artigos presentes no Capítulo VIII da Constituição Federal de 1988, depara-se com o dispositivo 232, o qual concedeu aos indígenas o direito de ser parte em um processo e de poder atuar processualmente no mesmo, de forma legítima, conforme se pode verificar: os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.

Esse foi um ganho fundamental para o reconhecimento das causas dessa minoria, tendo em vista que garantiu ao índio capacidade plena para ingressar em juízo e requerer a tutela de seus direitos, sem depender de terceiros para pleitear a tutela jurisdicional do Estado na busca e defesa de suas garantias. Isso permitiu que as comunidades indígenas possuíssem maior autonomia no exercício como cidadãos brasileiros.

Destaca-se que o apresentado nesse artigo foi de encontro com o disposto em legislações anteriores, que chegaram, inclusive, a considerar os índios absolutamente incapazes e, com a evolução legislativa, passaram a enquadrá-los ainda como sujeitos relativamente capazes de direitos, precisando de assistentes constituídos para poderem ingressar em juízo.

O artigo ainda incumbe ao Ministério Público, instituição que busca atuar na defesa dos interesses da sociedade, o exercício de prestar amparo judicial, fiscalizando o respeito aos interesses do povo brasileiro, das minorias, bem como das comunidades indígenas. Essa instituição deve intervir nos processos que envolvem a causa indígena, atuando com zelo e presteza nessas demandas judiciais.

O capítulo constitucional aqui tratado foi fruto de anos de luta da causa indígena na busca do reconhecimento de seus direitos como indivíduos e cidadãos brasileiros.

 

4 PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUCIONAL 215 (PEC 215)

A PEC 215 revela-se como um novo desafio para a sociedade e para as comunidades indígenas, pois propõe retirar do Poder Executivo a função de homologar a demarcação de terras indígenas, a qual é realizada, atualmente, com base em estudos feitos por equipes especializadas, seguindo um processo legal e minucioso presente no Decreto nº 1775/96.

Com a aprovação dessa proposta, competirá ao Congresso Nacional a homologação da demarcação das terras indígenas. Ressalta-se que uma grande quantidade de políticos presentes no Congresso estão diretamente envolvidos em questões latifundiárias, as quais abrangem processos de demarcações, o que pode comprometer sua atuação política imparcial.

   A proposta ainda dispõe acerca das indenizações aos que detém o domínio da terra que virá a ser objeto de demarcação, garantindo-a de forma abrangente, ou seja, inclui a terra antes ocupada na quantia a ser paga na indenização, fato este que vai de encontro com o que é praticado atualmente e mostra-se expressamente disposto no §6º, do artigo 231, da CF/88, em que o Estado paga apenas pelas benfeitorias realizadas na posse de boa-fé.

   Outra disposição legislativa da PEC 215 trata acerca da definição de uma espécie de “marco temporal legitimador de direitos”, o qual seria a data de promulgação da atual Carta Magna (5 de outubro de 1988). A partir desse marco, seria considerada terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas aquelas já sobre sua posse à época da promulgação. Assim, os indígenas apenas teriam seu direito originário reconhecido sobre aquelas terras já ocupadas à data de 5 de outubro de 1988.

   A forte crítica à definição desse marco temporal pauta-se no fato de que nessa condição não estão sendo considerados os índios que foram expulsos de suas terras em razão de conflitos ou mesmo de medidas governamentais da época do Estado Novo ou da Ditadura Militar (período difícil para o reconhecimento dos diretos indígenas às suas terras), nem os que sofreram a diminuição de seu território, de forma drástica, em decorrência da expansão da fronteira agropecuária, da ação de madeireiras, garimpeiros ou posseiros.

   É uma medida que acarretará grandes impactos nos direitos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas e que possui o apoio de congressistas com interesses particulares nas questões latifundiárias que circundam essa Proposta. Dessa forma, líderes de comunidades indígenas observam e analisam a PEC 215 com apreensão e receio, acompanhando atentamente os rumos que essa medida legislativa, caso aprovada, proporcionará ao futuro de seus povos e à luta pelos seus direitos.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Ao longo desse trabalho científico, evidenciou-se a forte relação dos índios com sua terra, de onde retiram a base de sua vida, história e cultura. Desde da colonização, esses povos amargaram ver seus direitos e tradições violados, populações inteiras massacradas por aqueles que se diziam “civilizados”.

   A Constituição Federal, de fato, tutelou direitos antes não incluídos nas legislações pátrias, porém, para isso, os índios tiveram que enfrentar preconceitos e ideologias retrógradas, movimentando-se constantemente na esperança de ter, finalmente, seus direitos respeitados, inclusive, legitimados perante o ordenamento jurídico brasileiro.

   Infelizmente, o que se percebe, ao vislumbrar a trajetória desses povos ao longo da História Brasileira recente, é ainda a violação ao que está expressamente garantido no texto constitucional e nos demais diplomas infraconstitucionais. Os interesses dos mais afortunados ainda regem muitas das relações institucionais no Brasil, o que prejudica a defesa dos objetivos das minores existentes no País, fato este que se pode constatar em alguns dispositivos da PEC 215.

   As comunidades indígenas ainda irão enfrentar muitos desafios para se fazerem ser ouvidos, porém contam com apoio de lideranças políticas e governamentais, além de grupos engajados da sociedade civil que buscarão atuar juntos na concretização, dia após dia, dos objetivos dessa minoria.

6 REFERÊNCIAS

ABREU, Aurélio M.G. Culturas Indígenas do Brasil. São Paulo, Traço Editora e Distribuidora Ltda, 1987.

ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 9 ed ver., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

ARAUJO, Luiz Alberto David; JUNÍOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de Direito Constitucional. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

BELFORT, LUCIA FERNANDA INÁCIA. A proteção dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas, em face da convenção sobre diversidade biológica. 2006. 139 f.. Dissertação Mestrado – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2006.

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em: 01 dez. 2016.

CUNHA, Manuela Carneiro da. (org) História dos Índios do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Índios, Cidadania e Direitos (colaborador). In: O Índio e a Cidadania, Brasiliense, 1983.

GUIMARÃES, Paulo Machado. Legislação indigenista brasileira. Coletânea, Assessoria Jurídica do CIMI, Edições Loyola, 1989.

OLIVEIRA, João Pacheco de; FREIRE, Carlos Augusto da Rocha. A presença indígena na formação do Brasil. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.

QUEIROZ, Paulo Eduardo Cirino. A construção da Teoria do Indigenato: do Brasil colonial à Constituição republicana de 1988. <http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,a-construcao-da-teoria-do-indigenato-do-brasil-colonial-a-constituicao-republicana-de-1988,43728.html#_ftn20>. Acesso em: 01 dez. 2016.

_______. Alvará de 1º de abril de 1680. In: Lei de 6 de junho de 1755. Para se restituir aos índios do Pará e Maranhão a liberdade de suas pessoas e bens. Disponível em: <http://iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=102&id_obra=63&pagina=212>. Acesso em: 17/12/2016.

_______. Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais. <https://www.oas.org/dil/port/1989%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20sobre%20Povos%20Ind%C3%ADgenas%20e%20Tribais%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20OIT%20n%20%C2%BA%20169.pdf>. Acesso em: 17 dez. 2016.

_______. Lei Federal n. 5.371, de 05 de dezembro de 1967. Autoriza a instituição da "Fundação Nacional do Índio" e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5371.htm>.

_______. Lei Federal n. 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Dispõe sobre O Estatuto do Índio. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6001.htm>. Acesso em: 20 dez. 2016.

[1] Oriunda do direito de guerra medieval, as “guerras justas” vem das guerras autorizadas pela Igreja Católica e a Coroa Portuguesa para combater os pagãos.

[2] Tal direito – congênito e originário – dos indígenas sobre suas terras, independente de titulação ou reconhecimento formal, consagrado ainda no início do processo de colonização, foi mantido no sistema legal brasileiro, por meio da Lei de Terras de 1850 (Lei 601 de 1850), do Decreto 1318, de 30 de janeiro de 1854 (que regulamentou a Lei de Terras), da Lei nº 6.001/73, das Constituições de 1934, 1937 e 1946 e da Emenda de 1969. Fonte: FUNAI.

[3] Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: [...] III - autodeterminação dos povos.

[4] § 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. [grifo nosso].

Imagem disponível em: <http://www.pom.org.br/apib-divulga-nota-contra-militarizacao-da-funai-e-golpes-nos-direitos-indigenas/>. Acesso em 03 de mai de 2018.

 

Veja mais em:

Indígena que comete homicídio e é punido por sua tribo pode ser novamente condenado pelo Estado brasileiro?

PEC 215: um retrocesso?

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Entenda o que é Nacionalidade em 2024

Redação Direito Diário

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nacionalidade

Toda pessoa tem uma origem que sempre será lembrada, nem que seja somente em seu íntimo. Onde nasceu, onde mora, a terra natal, a que família pertence, enfim, são fatores que influenciam na formação da identidade do indivíduo. Mas afinal, o que é a nacionalidade?

Pelo Dicionário Aurélio, por exemplo, o conceito está relacionado à independência política, à pátria, à naturalidade e ao caráter nacional. Juntando o sentido dessas palavras, podemos conceituar simplesmente como sendo um estado de pertencimento do cidadão a determinada nação.

O que é nação?

Apesar de existir inúmeras formas de conceituação, basicamente podemos sintetizar ao afirmar ser um hiper grupo político individualizado (e soberano), de complexidade imensurável que é definida pela cultura, pelas leis, pelos governos e por inúmeros outros fatores. Sendo assim, participar de um grupo único faz com que seus integrantes também o sejam em relação a outros agrupamentos.

Esse conceito também é aplicado em escalas menores, não tão somente entre as duas partes do globo terrestre (ocidente e oriente), mas, também, entre países, regiões, estados, cidades e assim sucessivamente. A cultura local e inclusive a história, contribuem para isso.

A Nacionalidade

A nacionalidade por estar ligada fortemente ao indivíduo, é exteriorizada por muitas vezes como um sentimento, sendo usada inclusive como ponto de ignição para justificar ou causar determinadas atitudes, como por exemplo, iniciar movimentos revolucionários, participar da política e, até mesmo para alimentar as guerras.

Assim, devido à relevância dessa condição, todos os países a valorizam. Essa valorização é sutil, mas quando é percebida vale a reflexão sobre a sua importância de ser tão mostrada. Em grandes eventos, tais como os esportivos e científicos de grande notoriedade, sempre há um participante que representa sua nação e que faz questão de mostrar a qual país pertence, independente da vitória ou da derrota.

Nacionalidade no Brasil

O Brasil, apesar de ser um país novo em relação aos demais, garante a nacionalidade como um direito constitucional nos artigos 12 e 13 da Constituição Federal.  

Art. 12. São brasileiros:

I – natos:

a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país;

b) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil;

c) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira;

II – naturalizados:

a) os que, na forma da lei, adquiram a nacionalidade brasileira, exigidas aos originários de países de língua portuguesa apenas residência por um ano ininterrupto e idoneidade moral;

b) os estrangeiros de qualquer nacionalidade, residentes na República Federativa do Brasil há mais de quinze anos ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade brasileira.

Também é estabelecido regramento especial para os portugueses, além de estipular que a lei não poderá estabelecer distinção entre brasileiros natos e naturalizados, exceto nos casos previstos na própria Carta Magna, elencar quais os cargos privativos dos brasileiros natos e estipular os casos em que haverá a perda da nacionalidade.

Um caso bastante emblemático que aconteceu nos últimos anos foi a concessão da extradição de uma brasileira que tinha sido naturalizada americana. Você pode ver mais sobre esse assunto aqui.

Além disso, é determinado o idioma oficial, os símbolos da República Federativa do Brasil e ainda diz que o Distrito Federal, os Estados e Municípios podem ter símbolos próprios. Mais uma forma de manifestação da nacionalidade em escala menor.

Diferente de outras nações, o Brasil adota o critério ius solis para determinar a nacionalidade de seus indivíduos. Tal critério tem a territorialidade como referência, fazendo um contraponto a outro método chamado de ius sanguinis, o qual toma como referência o vínculo sanguíneo, independente do lugar onde o indivíduo nasceu. Vamos entender um pouco melhor esses conceitos.

Ius Solis e Ius Sanguinis

Os critérios de nacionalidade “ius soli” e “ius sanguinis” são princípios fundamentais utilizados pelos países para determinar quem são seus cidadãos. Ambos os critérios têm diferentes abordagens para definir a nacionalidade e a cidadania de uma pessoa.

O ius soli, que em latim significa “direito do solo”, é um princípio que confere a nacionalidade a qualquer pessoa nascida no território de um determinado país, independentemente da nacionalidade dos pais. Esse critério é baseado no local de nascimento e é amplamente adotado por países como os Estados Unidos, Canadá e vários países das Américas.

O ius sanguinis, que em latim significa “direito de sangue”, é um princípio que confere a nacionalidade com base na ascendência ou linhagem. Segundo esse critério, a nacionalidade é herdada dos pais, independentemente do local de nascimento. Muitos países europeus, asiáticos e africanos adotam esse critério, como a Itália, Alemanha e Japão.

É possível perceber que o ius soli tende a ser mais inclusivo, pois qualquer pessoa nascida no território do país é considerada cidadã, facilitando a integração de imigrantes, contribuindo para a formação de sociedades mais diversificadas e multiculturais.

Já o ius sanguinis pode ajudar a preservar a identidade cultural e a continuidade de comunidades nacionais além das fronteiras, mas pode envolver procedimentos legais mais complexos para o reconhecimento da cidadania, especialmente para descendentes nascidos no exterior.

É curioso esses critérios, pois observam referências que também integram a nacionalidade: o território e o vínculo sanguíneo (a família). Ambos são fatores que individualizam a pessoa, esta que por sua vez tenta incansavelmente responder a pergunta: “Quem eu sou?”.

Diante disso, depois dessa breve reflexão sobre o conceito da nacionalidade, não resta dúvidas de que ela transcende o espaço-tempo, podendo alcançar escalas ainda maiores e ainda menores. Não por ser apenas um sentimento, mas, também, por ser uma necessidade política (ainda que possa ser amadora), para juntar e ampliar determinado grupo a fim de ganhar força, prestígio e atender às necessidades da figura fictícia do Estado.

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Referências:

AURÉLIO. Dicionário Aurélio. Disponível em: <https://dicionariodoaurelio.com> Acessado em: 31 ago. 2016.BRASIL.

Constituição (1988). Constituição Federal da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado Federal 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869.htm> Acessado em: 31 ago. 2016.

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Constitucional

Reputação Ilibada: Compromisso com a Ética e a Transparência

Redação Direito Diário

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reputação ilibada

Reputação ilibada refere-se a uma reputação que é inteiramente limpa, sem mácula ou mancha. Esse termo é utilizado com frequência em contextos legais e profissionais para descrever um indivíduo cuja conduta é considerada irrepreensível e moralmente íntegra.

No contexto legal, a reputação ilibada é um requisito fundamental para juízes e advogados, cuja integridade é vital para a justiça. Na política, a confiança do público em seus representantes depende fortemente da percepção de sua reputação. Profissionais como médicos e contadores também dependem de uma reputação sem mácula para assegurar a confiança de seus clientes e pacientes.

Em se tratando mais especificamente da realidade jurídica, trata-se de um conceito importante, particularmente no contexto do direito público e privado, figurando como requisito para a investidura em diversos cargos públicos.

Definição de Reputação Ilibada

Não existe especificamente uma definição legal para o termo “reputação ilibada”, de modo que podemos nos perguntar como é possível

A palavra “ilibado” deriva do latim “illibatus”, referindo-se a algo limpo. Segundo o Dicionário Aurélio (2010, online), o termo significa “não tocado”, ou mesmo “puro, incorrupto”.

Manter uma reputação ilibada requer um compromisso contínuo com a ética, a transparência e a responsabilidade. Práticas como a honestidade, o cumprimento das leis e a manutenção de padrões profissionais elevados são essenciais. Além disso, é importante evitar comportamentos que possam comprometer a integridade pessoal e profissional.

Em 1999, em resposta à consulta formulada pelo então presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães, a Comissão de Constituição Justiça e Cidadania (CCJ), elaborou uma definição para o termo. De acordo com a CCJ, no intuito de aclarar o conceito constitucional, “considera-se detentor de reputação ilibada o candidato que desfruta, no âmbito da sociedade, de reconhecida idoneidade moral, que é a qualidade da pessoa íntegra, sem mancha, incorrupta”.

Trata-se de uma condição subjetiva, que se associa à boa fama, ao comportamento público e à respeitabilidade do pretendente. A reputação do candidato deve inspirar a estima de seus pares, ante sua conduta proba, compatível com o cargo (RODRIGUES JUNIOR; AGUIAR, 2009).

O aludido requisito relaciona-se com os princípios da Administração Pública, ante a função a qual se pretende exercer. Vincula-se, principalmente, ao princípio da moralidade, o qual exige a atuação ética dos agentes públicos. Dessa forma, deve-se observar os antecedentes profissionais dos candidatos a cargos públicos, atentando se há máculas em sua atuação pregressa.

Destaque-se que o princípio da presunção de inocência não possui caráter absoluto neste contexto, de acordo com a jurisprudência. Assim, em caso de dúvida fundada sobre a reputação ilibada do candidato, é possível sobrepor o interesse público ao privado. Desse modo, evita-se que um indivíduo, ainda que apenas possivelmente, inapto assuma a função pública.

Reputação Ilibada na Legislação Brasileira

É possível encontrar menção em diversos momentos à reputação ilibada do indivíduo como necessária em certas ocasiões. A Constituição federal menciona a necessidade de “reputação ilibada” nos seguintes casos:

Art. 101. O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de setenta anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada.

[…]

Art. 128 § 1º O Ministério Público da União tem por chefe o Procurador-Geral da República, nomeado pelo Presidente da República dentre integrantes da carreira, maiores de trinta e cinco anos, após a aprovação de seu nome pela maioria absoluta dos membros do Senado Federal, para mandato de dois anos, permitida a recondução.

Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN)

Além da Carta Magna, podemos mencionar legislação infraconstitucional que, apesar de não trazerem literalmente o termo “reputação ilibada”, fazem menção à necessidade de se manter a imagem proba, reforçando o compromisso com a ética.

Assim, podemos citar a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992), que visa proteger o patrimônio público e punir atos de improbidade, sendo que a prática de tais atos pode comprometer a reputação ilibada do servidor público.

Também a Lei de Licitações estabelece critérios para a participação de empresas em licitações públicas, exigindo que as empresas participantes de licitações comprovem sua idoneidade e regularidade fiscal.

Ainda, mencionemos a Lei da Ficha Limpa, uma lei de iniciativa popular, que busca tornar mais rigorosos os critérios de inelegibilidade para cargos eletivos, visando melhorar a moralidade e a ética na política brasileira.

Sobre a Lei da Ficha Limpa, podemos ver aqui algumas mudanças que ela trouxe no ordenamento jurídico pátrio.

Análise Jurisprudencial

A reputação ilibada também é foco de decisões judiciais que buscam pacificar o entendimento sobre quando se considera configurada a reputação ilibada, bem como verificar os critérios objetivos para que se possa esclarecer para a sociedade quando se tem ou não a índole necessária para assumir o cargo público.

Mencionem-se  decisões sobre o assunto:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. NOMEAÇÃO PARA CARGOS ESTATUTÁRIOS DE INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS. REQUISITOS LEGAIS NÃO PREENCHIDOS. RESOLUÇÃO Nº 3041/02-BACEN. REPUTAÇÃO ILIBADA NÃO COMPROVADA. SEGURANÇA DENEGADA. […]

3. O fundamento do ato requestado foi a ausência da reputação ilibada do impetrante em decorrência do fato de sua conduta estar sendo objeto de investigação em processo administrativo, que lhe infringiu uma penalidade. Há que se saber que mesmo não estando concluído o processo, e estando pendente de recurso, com possibilidade de julgamento favorável ao impetrante, ainda assim, a reputação dele estaria maculada, não mais se configurando como ilibada.

4. Não obstante o caráter subjetivo que envolve o conceito de reputação ilibada, ele sempre vai implicar em limpidez de conduta, na ausência de mácula e de impureza para sua configuração. Na hipótese vertente, ante a relevância do cargo a ser assumido pelo postulante, fica evidente que o processo investigatório a que ele está sendo submetido o coloca sob suspeita, o que não se compatibiliza com as exigências legais para o preenchimento do referido cargo. […]

6. Diante das próprias circunstâncias em que se ergue o sistema financeiro nacional, que tem como pilar fundamental a confiança, não se pode prescindir do rigor dos critérios para se analisar o perfil daqueles que vão representá-lo perante toda a sociedade, razão pela qual, não se reveste de ilegalidade o ato apontado como coator. Apelação improvida. (TRF-5, Apelação nº 19236-68.2012.4.05.8300, Relator: Des. Fed. José Maria Lucena, Primeira Turma, Data de Julgamento: 27.03.2014, Data de Publicação: 04.04.2014, grifo nosso).

Ainda, podemos mencionar:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. AUTORIDADES COATORAS. LEGITIMIDADE PASSIVA. CARGOS DE DIREÇÃO EM INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. NÃO HOMOLOGAÇÃO DE NOME DE CANDIDATO ELEITO. REPUTAÇÃO ILIBADA. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. […]

É cediço, na jurisprudência e doutrina pátrias, que o conceito de reputação ilibada é amplo e indeterminado, permitindo uma correlata avaliação discricionária da Administração Pública. Conquanto a prévia condenação criminal transitada em julgado seja imprescindível para o Estado forçar o acusado a cumprir pena privativa de liberdade, tal exigência não se estende à imposição de restrições de outra ordem (não criminal, ou seja, restrições administrativas, creditícias etc.), as quais não se equiparam a ‘execução provisória de decisão condenatória penal’, constituindo, antes, medida de natureza cautelar em prol do interesse público. (TRF-4, Apelação nº 5048060-62.2013.4.04.7000, Relatora: Des. Fed. Vivian Josete Pantaleão Caminha, Quarta Turma, Data de Julgamento: 01.07.2014, Data de Publicação: 02.07.2014, grifo nosso).

Destarte, constata-se que a reputação ilibada trata-se de requisito subjetivo para investimento em cargo público. Portanto, para ser detentor de reputação ilibada, deve-se pautar pela ética exigida para o exercício do cargo pretendido, não se permitindo corromper e nem envolver em escândalos que atentem contra o interesse público.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ILIBADO. In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Eletrônico Aurélio. 5. Ed. Positivo, 2010. Disponível em: <https://contas.tcu.gov.br/dicionario/home.asp>. Acesso em: 29 dez. 2016.

RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; AGUIAR, Alexandre Kehrig Veronese. Vaga no Supremo: Críticas a Toffoli não se sustentam diante da CF. Revista Consultor Jurídico, 23 set. 2009. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2009-set-23/criticas-toffoli-nao-sustentam-diante-constituicao>. Acesso em: 29. dez. 2016.

SENADO FEDERAL. Reputação ilibada é a qualidade da pessoa íntegra, define CCJ. Disponível em: <http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/1999/09/29/reputacao-ilibada-e-a-qualidade-da-pessoa-integra-define-ccj/>. Acesso em: 29 dez. 2016.

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Constitucional

O efeito backlash: a reação a decisões judiciais

Redação Direito Diário

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efeito backlash decisões judiciais

No direito, o efeito backlash, também conhecido como efeito rebote, se refere à reação negativa causada por decisões judiciais, principalmente as decisões que envolvem temas polêmicos e controversos na sociedade.

O termo backlash é definido pelo Dicionário de Cambrigde, de inglês britânico, como “um sentimento forte entre um grupo de pessoas em reação a uma mudança ou a um evento recente na sociedade ou na política”.

Quando a sociedade é confrontada com determinado assunto polêmico, ela tende a se dividir. Parte das pessoas acredita que aquele tema não deveria ser alvo de mudanças legislativas ou judiciais, enquanto outra parcela da população acredita que o tema precisa de revisão, de modo a se adequar a um novo modelo de sociedade, que seria mais justa e igualitária.

Assim, quando o Judiciário busca, por meio de decisões judiciais, modificar o status quo da sociedade, por vezes ocorre uma reação por partes de pessoas que não concordam com a decisão ou discordam da forma como a decisão foi tomada.

O que é o efeito backlash segundo doutrinadores

Em termos jurídicos, para os professores estadunidenses, Post e Siegel, backlash expressa o desejo de um povo livre de influenciar o conteúdo de sua Constituição, mas que também ameaça a independência da lei.

Já Greenhouse e Siegel, apontam que a contra-mobilização e a intensificação de conflitos (muitas vezes referido como backlash) é uma resposta normal ao crescente apoio público à mudança que pode ter uma relação com o judicial review.

Cass Sunstein define o referido efeito como a intensa e contínua desaprovação pública de uma decisão judicial, acompanhada de medidas agressivas para resistir a esta decisão, buscando retirar sua força jurídica.

Dessa forma, pode-se resumir o efeito backlash como uma forma de reação a uma decisão judicial, a qual, além de dispor de forte teor político, envolve temas considerados polêmicos, que não usufruem de uma opinião política consolidada entre a população.

Em decorrência desta divisão ideológica presente de forma marcante, a parte “desfavorecida” pelo decisum faz uso de outros meios para deslegitimar o estabelecido ou tentar contorná-lo. Em suma, backlash relaciona-se com alguma forma de mudança de uma norma imposta.

Observamos esse acontecimento acompanhado do fenômeno conhecido como ativismo judicial. Podemos estudar um pouco mais sobre ele aqui.

O efeito backlash para George Marmelstein

Com o escopo de melhor compreender o efeito backlash, é fundamental destacar um breve resumo feito por Marmelstein, o qual descreve, de forma sucinta, como ocorre o fenômeno.

Segundo George Marmelstein, a lógica do efeito backlash funciona da seguinte forma: há determinada matéria que divide a opinião pública, e cabe ao Poder Judiciário proferir uma decisão liberal, assumindo a posição de vanguarda na defesa dos direitos fundamentais.

Em consequência, como a consciência social ainda não está bem consolidada, a decisão judicial é bombardeada com discursos conservadores inflamados, cheios de falácias com forte apelo emocional. A crítica à decisão judicial acarreta uma mudança na opinião pública, capaz de influenciar as escolhas eleitorais de grande parcela da população.

Desse modo, os candidatos que aderem ao discurso conservador conquistam maior espaço político, conquistando votos. Vencendo as eleições e assumindo o controle do poder político, o grupo conservador consegue aprovar leis e outras medidas que correspondem à sua visão de mundo.

Assim, como o poder político também influencia a composição do Judiciário, abre-se um espaço para a mudança de entendimento dentro do poder judicial. Pode então haver um retrocesso jurídico, que pode prejudicar os grupos que seriam beneficiados com aquela decisão.

Assim, os opositores ao novo regime legal instaurado rejeitam publicamente alguns dos elementos centrais, fundamentando a sua rejeição em afirmações de legitimidade ou superioridade do quadro social-legal anterior, objetivando, consoante exposto acima, deslegitimar o decisum.

Portanto, a decisão judicial, a qual buscava proporcionar direitos às minorias, atinge, muitas vezes, o contrário do que objetivava, gerando, como efeito colateral, insatisfação por parte da população mais conservadora, o que propicia um ambiente possível de derrocar os direitos arduamente adquiridos, tendo como consequência mais forte o retrocesso.

Casos notáveis

Podemos destacar alguns casos práticos em que foi possível observar o efeito backlash no Direito, ou seja, casos jurídicos em que houve uma mudança significativa em determinada norma jurídica.

Nos Estados Unidos, este tipo de reação adversa ocorreu em leading cases como Roe v. Wade (legalização do aborto), Obergefell v. Hodges (casamento entre pessoas do mesmo sexo) e Brown v. Board Education (segregação racial em escolas públicas).

Em tais casos, a bancada mais conservadora tentou reverter as decisões, além de tê-las usado estrategicamente como forma de eleger mais candidatos Republicanos, pois se alegava que os Democratas apoiavam estas decisões “contramajoritárias”, as quais representavam uma ameaça à família tradicional e à religião.

Também no Brasil, podemos elencar a decisão do Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), de forma unânime, equiparou as relações entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres, reconhecendo, assim, a união homoafetiva como um núcleo familiar. A decisão foi tomada no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132.

Também é possível observar o trabalhos das Cortes Internacionais na defesa de direitos fundamentais, como vemos aqui.

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Referências

BACKLASH. Dicionário online de Cambridge. Disponível em < http://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/backlash >. Acesso em 5 abr. 2017.

GREENHOUSE, Linda e SIEGEL, Reva. Before (and after) Roe v. Wade: New questions about backlash. Yale Law Journal, Yale, v. 120, n. 8, 2011. Disponível em: <http://www.yalelawjournal.org/feature/before-and-after-roe-v-wade-new-questions-aboutbacklash>. Acesso em: 15 jan. 2017. p. 2077.

KRIEGER, Linda Hamilton. Afterword: Socio-Legal Backlash. In: Berkeley Journal of Employment and Labor Law, v. 21, n. 1, 2000, p. 476-477.

MARMELSTEIN, George. Efeito Backlash da Jurisdição Constitucional: reações políticas ao ativismo judicial. Texto-base de palestra proferida durante o Terceiro Seminário Ítalo-Brasileiro, proferida em outubro de 2016, em Bolonha-Itália.

POST, Robert; SIEGEL, Reva. Roe Rage. Democratic Constitutionalism and Backlash. Harvard Civil Rights-Civil Liberties Law Review, 2007; Yale Law School, Public Law Working Paper, nº 131, p. 4.

STF. Mês da Mulher: há 12 anos, STF reconheceu uniões estáveis homoafetivas. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=504856&ori=1>. Acesso em 18 mai 2024

SUNSTEIN, Cass R. Backlash’s Travels. Harvard Civil Rights-Civil Liberties Law Review, v. 42, março 2007, p. 436.

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