No processo de recuperação judicial, após a empresa ajuizar o pedido e ter deferido o seu processamento, abre-se um prazo de 60 (sessenta) dias, contados da publicação da decisão de deferimento, para a apresentação do plano de recuperação judicial. Por meio deste documento, a recuperanda apresentará aos credores as medidas de reestruturação a serem implementadas, as condições de pagamento dos créditos sujeitos e a exposição da viabilidade da empresa.
Para que a devedora obtenha a concessão da recuperação judicial, faz-se necessário, contudo, na grande maioria dos casos, que o plano seja aprovado pela assembleia geral de credores, composta, neste caso, por 04 (quatro) classes de credores: Classe I: Créditos Trabalhistas; Classe II: Créditos com Garantia Real; Classe III: Créditos Quirografários, e Classe IV: Créditos de Micro e Pequenas Empresas.
Para a aprovação do plano de recuperação judicial pela assembleia geral de credores, mostra-se necessário que todas as 04 (quatro) classes de credores votem a favor do plano. Nas classes de credores trabalhistas e micro e pequenas empresas, basta que a maioria simples dos credores presentes se manifestem a favor, enquanto que, nas classes de credores com garantia real e quirografários, tanto a maioria simples dos credores quanto a maioria do crédito devem ser contabilizados para a aferição da aprovação.
Em caso de não aprovação do plano de recuperação judicial, em regra, o juiz deverá decretar a falência da empresa, na chamada “convolação em falência”. No entanto, o art. 58, §1º e incisos, da Lei nº 11.101/2005, estipula determinadas condições que, se atendidas, mesmo diante da rejeição do plano de recuperação judicial pela assembleia geral de credores, facultam ao juiz a concessão da recuperação judicial. São elas: (i) o voto favorável de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos presentes à assembleia, independentemente de classes (ii) a aprovação do plano em todas as classes de credores votantes, menos uma [1], (iii) o voto favorável de mais de um 1/3 (um terço) dos credores da classe em que o plano foi rejeitado e (iv) a equivalência do tratamento entre todos os credores da classe em que o plano foi rejeitado.
A concessão da recuperação judicial sob essa modalidade foi inspirada no instituto previsto na Section 1129 (b) do Chapter 11 do Bankruptcy Code norte-americano, popularmente referido como “cram down” (goela abaixo). No Brasil, a doutrina critica a forma em que o “cram down” foi introduzido na legislação, por seu caráter legalista e fechado [2] e sem margem para a apreciação das condições econômicas e financeiras do devedor e de eventual abuso pelo juiz, reduzindo-se a um quórum alternativo de aprovação do plano [3].
Nesse sentido, Sheila C. Neder Cerezetti aponta a necessidade de “redução do rigorismo e a adoção de mecanismos realmente capazes de conceder adequada proteção aos credores, sem permitir que empresas viáveis sejam levadas à falência devido à rigidez de regras que buscam ser protetivas mas podem acabar prejudicando todos os envolvidos na crise empresarial [4]”. A professora ainda indica que, na maioria das legislações estrangeiras que preveem a superação do veto de uma classe de credores, os requisitos estabelecidos se baseiam na necessidade de aprovação do plano por pelo menos uma das classes votantes, na inexistência de tratamento diferenciado entre os componentes da classe que rejeitou o plano (unfair discrimination) e na caracterização do plano como justo e equitativo quanto ao tratamento da classe discordante com relação às demais (fair and equitable rule) [5].
Eduardo Secchi Munhoz, por sua vez, propõe uma espécie de flexibilização dos requisitos para o “cram down”, a partir do reconhecimento da possibilidade de o juiz aprovar um plano de recuperação judicial rejeitado pela assembleia geral de credores, desde que fosse assegurado (i) que nenhum credor recebesse menos do que receberia na falência (best-interest-of-creditors), ou (ii) que os credores que rejeitarem o plano recebessem tratamento semelhante e proporcional ao dispensado à maioria dos credores com crédito da mesma natureza (unfair discrimination) [6].
No âmbito da jurisprudência, o próprio Superior Tribunal de Justiça e diversos Tribunais de Justiça, notadamente o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, já promoveram a flexibilização dos critérios do “cram down” no caso concreto, notadamente quando um só credor detinha a maioria do crédito da empresa [7], quando determinada classe possuísse somente um credor [8] ou quando, por pouco, não se alcançou a maioria necessária [9].
Por fim, é válido ressaltar que a atual redação do Projeto de Lei nº 10.220/2018 [10], que visa à alteração de diversos artigos da Lei nº 11.101/2005, modifica a atual regulamentação do “cram down”, suprimindo a exigência de se verificar votos de “credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos presentes à assembleia, independentemente de classes” e de não haver tratamento diferenciado entre os credores da classe que rejeitou o plano. Em contrapartida, adicionou-se a exigência de que o plano “não imponha aos credores da classe dissidente sacrifício do seu crédito maior do que aquele que decorreria da liquidação na falência, exceto se houver concordância expressa do prejudicado”, aproximando-se da exigência norte-americana de se atender o “best-interest-of-creditors” [11].
Ernani Pinheiro Soares – Coordenador da Sociedade Acadêmica Fran Martins.
[1] Há um intenso debate sobre o tema. Explica-se de forma sucinta. Originalmente, a Lei nº 11.101/2005 não previa uma quarta classe de credores (ME e EPP’s), de modo que, para o “cram down”, havendo credores de três classes, pelo menos duas destas teriam que aprovar o plano; havendo somente duas classes, pelo menos uma deveria aprovar o plano. Ocorre que, após a edição da Lei Complementar nº 147 (que introduziu a Classe IV), não foi alterada a disciplina do “cram down” para prever o quórum necessário quando existentes credores das quatro classes. Para parcela da doutrina, havendo quatro classes, a aprovação em duas seria suficiente; para outra, o juiz somente poderia conceder a recuperação judicial se utilizando do “cram down” se três das quatro classes aprovassem o plano. Filia-se à segunda corrente, contemplada pelo Projeto de Lei nº 10.220/2018 (vide art. 58-A, inc. I).
[2] MOREIRA, Alberto Camiña. Poderes da assembleia de credores, do juiz e atividade do Ministério Público. In: PAIVA, Luiz Fernando Valente de. (Coord.). Direito Falimentar e a Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, pp. 247-274.
[3] MUNHOZ, Eduardo Secchi. Comentários ao art. 58. In: (SOUZA JR., Francisco Satiro; PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes). (Coord.). Comentários à lei de recuperação de empresas e falências: Lei 11.101/2005. 2 ed. São Paulo/SP: Revista dos Tribunais, 2007, p. 289.
[4] CEREZETTI, Sheila C. Neder Cerezetti. A Recuperação Judicial de Sociedades por Ações: O Princípio da Preservação da Empresa na Lei de Recuperação e Falência. São Paulo/SP: Malheiros Editores, 2012, pp. 316.
[5] Ibid, p. 314.
[6] MUNHOZ, Eduardo Secchi. Anotações sobre os limites do poder jurisdicional na apresentação do plano de recuperação judicial. In: Revista de Direito Bancário, ano 10, n. 36, pp. 184-199, p. 198.
[7] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. REsp: 1.337.989/SP 2011/0269578-5. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Data de Publicação: 04/06/2018.
[8] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. AI: 0235995-76.2012.8.26.0000. Relator: Desembargador Enio Zuliani. Data de Publicação: 02/04/2013).
[9] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. AgRg no REsp 1.310.075/AL. Rel. Ministro Paulo De Tarso Sanseverino. Data de Publicação: DJe 10/10/2014.
[10] BRASIL. Projeto de Lei nº 10.220/2018. Altera a Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e a Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, para atualizar a legislação referente à recuperação judicial, à recuperação extrajudicial e à falência do empresário e da sociedade empresária.
[11] Ao comentar tema correlato (abuso de voto), Gabriel Saad Kik Buschinelli aponta que o fundamento legítimo para a rejeição ao plano proposto pode ser encontrado na comparação entre a posição em que estaria o credor na hipótese de falência e na de recuperação judicial. BUSCHINELLI, Gabriel Saad Kik. Abuso do direito de voto na assembléia geral de credores. 2013. Dissertação (Mestrado em Direito Comercial) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013, p. 139. Para uma posição contrária à de Gabriel Saad Kik Buschinelli, notadamente sobre a teoria do abuso de voto, conferir: MARIANO, Alvaro Augusto Camilo. Abuso de voto na recuperação judicial. 2012. Tese (Doutorado em Direito Comercial) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.