Expressões como “o sistema carcerário brasileiro está falido” e “as cadeias, na prática, são escolas para formar marginais” não são estranhas às rodas de discussões dos cidadãos brasileiros. É que na realidade essas afirmações retratam a realidade penitenciária no país, justificando assim a sua ineficácia no combate contra criminalidade.
Mediante a situação exposta acima, a credibilidade estatal no que tange ao cumprimento do seu papel de agente exclusivo detentor do poder de punir, passa a ser, constantemente, questionada quanto a sua eficácia. A criminalidade sobe em números alarmantes e a população encontra-se, praticamente, em estado de pânico coletivo.
Nesse contexto, busca-se alternativas inovadoras que saiam da zona de conforto do que já é aplicado atualmente e alcancem resultados com efeitos práticos, nítidos e rápidos. À priori, ressalva-se que não há dúvidas que a medida punitiva realizada no sistema carcerário é uma consequência de inúmeros problemas sociais vivenciado pela população brasileira.
A criminalidade, incontestavelmente, encontra suas origens, em grande parte, na existência da desigualdade social, na precariedade da educação e no alto índice de desemprego somado à inflação crescente. Porém, esses vícios existem na sociedade desde de os seus primórdios e todos demandam transformações estruturais que terão resultado somente a longo prazo, ainda que haja o devido emprego dos recursos e da administração pública para a melhoria desses fatores. Desse modo, a contenção da violência precisa de medidas mais urgentes, que não anulem a necessidade das mudanças básicas, mas que sirvam para acrescentar os meios empregados para solução do problema.
Nessa perspectiva, a ideia de delegação de setores do poder penitenciário para o poder privado surge como uma forma esperançosa de trazer melhorias a esse sistema, de modo que pudesse alcançar ou pelo menos chegar mais perto de alcançar o objetivo primordial da aplicação do sistema carcerário, o qual se define pela criação de um ambiente propício para a (re)educação do preso, de modo que este fique apto para voltar ao convívio em sociedade.
Assim, surge a ideia da aplicação, no âmbito carcerário, de um mecanismo já aplicado em outros setores mantidos pelo poder público, A Parceria Público-privada (PPP), a qual está regulamentada, de forma generalizada, na Lei 11.079. Apesar de esse dispositivo legal não se referir especificamente ao sistema penitenciário, a possibilidade de aplica-lo nesse meio justifica-se pelo fato de tratar-se de um poder que deveria se restringir ao Estado, mas este o delega, com ressalvas, ao poder privado. Nesse ponto, é importante frisar que essa “transferência” não se dá completamente, tendo uma série de restrições e exigindo inúmeros requisitos para que possa ser efetivada, através de licitações.
Observa-se, dessa forma, que em nenhum momento o Estado se desvincula das atividades que forem objeto dessas licitações. As PPPs diferem da privatização neste aspecto, uma vez que no primeiro há um reconhecimento do Estado da necessidade de cooperação com o setor privado para o fornecimento de um serviço de qualidade. Já no segundo, há uma transferência, parcial ou total, da “propriedade” sobre a prestação daquele serviço.
Assim, existem diversos mecanismos impostos pelo poder estatal no intuito de fiscalizar e, consequentemente, garantir o padrão de qualidade por parte das empresas que ganharem as licitações. Além disso, existem atividades que por serem indelegáveis à atividade privada, permanecerão, completamente, sob tutela do Estado.
Nesse contexto, enquadrando o sistema carcerário brasileiro na lei 11.079, é nítido que o objetivo é transferir atividades que não estão sendo bem cumpridas pelo Estado para “alguém” que possa investir e otimizar tal serviço. No caso das penitenciárias, esse serviço terceirizado, em regra, corresponde, por exemplo, à construção de presídios, ao fornecimento de alimentação, vestimenta, assim como a higienização do local e a manutenção do estabelecimento, além da garantia de segurança contra fugas ou rebeliões.
Possibilidade jurídica da Terceirização dos Serviços Penitenciários
A polêmica que circunda tal assunto refere-se a questão da possível inconstitucionalidade da terceirização, uma vez que, segundo os defensores dessa ideia, tal medida aplicada na seara criminal fere a competência exclusiva da jurisdição do Estado.
O argumento reiteradamente utilizado é que a interferência do poder privado no sistema carcerário é incompatível com o art. 24 da Constituição Federal, o qual prevê que dentre as tarefas exclusivas do Estado está presente a questão penitenciária.
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
I – direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;
II – orçamento;
III – juntas comerciais;
(…)
Porém o debate acerca de tal alegação se resolve dentro do próprio texto constitucional do referido artigo, uma vez que este é claro ao afirmar que a exclusividade estatal prevista refere-se a “legislar” sobre o tema. Ora, em nenhum momento contesta-se que essa é uma atribuição que deve ser desempenhada apenas pelo Estado, não sendo diferente no âmbito penitenciário.
Assim, beira ao absurdo querer enquadrar a terceirização nesse dispositivo, visto que em nenhum momento houve a proposta de que o ente privado passasse a ter essa função, ficando sempre bem claro que sua conduta se limita a questões específicas de manutenção dentro dos presídios, não extrapolando em momento algum os limites constitucionais que regem a jurisdição brasileira.
Nessa mesma perspectiva, uma argumentação mais plausível, mas ainda assim bastante digna de contestação, é a que afirma que a exclusividade de punir, em todo a sua completude, limita-se ao Estado, fato que é decorrente da própria essência do Estado Contemporâneo, de modo que qualquer interferência nesse aspecto, ainda que seja apenas no momento da aplicação da pena, é interferir nesse pressuposto.
De fato, o poder de punir deve limitar-se ao Estado, tendo sido essa, sob o prisma jurídico, uma conquista da Era Contemporânea, pela qual se garante certo tipo de segurança, que impede a dominação dos mais fortes sobre os mais fracos.
Corroborando com esse entendimento, Paulo Bonavides, ao se referir do conceito do Estado, cita Max Weber, o qual defendia que cabia ao Estado o monopólio da violência legítima, ou seja, aquela que é aplicada com o ímpeto de manter a ordem da sociedade, visando o bem comum e não a defesa de interesses particulares.
Nesse ponto, à priori, pode ser gerada certa dúvida quanto à viabilidade dessa interferência privada em uma área tão delicada quanto a da execução penal, visto que se trata do poder de punir um indivíduo afetando um dos bens juridicamente tutelados mais precioso, a sua liberdade individual. Porém, essa dúvida pode ser esclarecida ao analisar o que realmente é proposto com a terceirização.
Como foi enfatizado anteriormente neste trabalho, a terceirização não desvincula o Estado da sua responsabilidade perante o sistema carcerário. Pelo contrário, o que acontece é um reconhecimento por parte do ente estatal da sua incapacidade de oferecer o serviço na qualidade exigida por se tratar de uma relação com seres humanos, ou seja, a sua incapacidade de manter uma penitenciária segura, organizada e ressocializadora. Tal constatação possui uma sólida fundamentação fática, a qual não é desconhecida por qualquer indivíduo minimamente envolvido com as mazelas da sociedade.
Assim, por meio da parceria público-privada, o governo, na realidade, vincula o poder privado devidamente legitimado a cumprir com o que fora estipulado no procedimento de licitação. Destarte, fica claro que o poder coercitivo permanece restrito ao Governo, o qual otimiza a execução de tais medidas através de contratação de serviços que são especializadas naquilo, as quais, entretanto, não possuem liberdade para agir em dissonância com o que fora estipulado pelo Estado, de modo que não se trata de um retrocesso na evolução por garantias individuais.
Nesse sentido, com intuito de tornar explícito a possibilidade jurídica da parceria público-privada na seara penitenciária, findando assim o polêmico debate em torno desse assunto, existe o Projeto de Lei Nº 2.825, de 2003, segundo o qual almeja a inserção de dois artigos e a modificação de outro na Lei das Execuções Penais, Lei Nº 7.210. Assim, esse projeto deixa claro que permanecem ressalvados os institutos que garantem a primazia do Estado na tarefa de execução penal, de modo que “os aspectos relativos ao cumprimento da pena continuarão sob a responsabilidade do Estado, por intermédio dos juízos de Execução Penal”.
As discussões sobre tal projeto perduram por mais dez anos, já tendo sido arquivado em 2011 e desarquivado no mesmo ano. Recentemente, mais precisamente em janeiro de 2015, ele foi novamente arquivado, fato que não evidencia sua ineficiência, mas sim a complexidade do tema e do duelo de ideologias que cercam tal questão.
Desse modo, os debates jurídicos acerca da possibilidade de tal medida no sistema carcerário brasileiro irão continuar sendo pauta de discussões, que buscam conciliar a efetiva punição com a garantia dos direitos fundamentais e da primazia do poder estatal.
Referências:
1 BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Lei nº 11.079, de 30 de janeiro de 2004. Lei no 11.079, de 30 de Dezembro de 2004. Brasília, DF.
2 AURIA, Josiane de Lima e Silva. O SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO E AS PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS. 2007. 43 f. Monografia (Especialização) - Curso de Direito e Processo Penal, Avm Faculdade Integrada, S/n, 2007. Disponível em: <http://www.avm.edu.br/docpdf/monografias_publicadas/K208108.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2015.
3 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998. art.24.
4 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 19. ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2012. 502 p.
5 BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 2825, de 2003. Projeto de Lei 2825.
6 BRASIL.. Relatório do Projeto de Lei 2825 de 2009. BRASÍLIA, Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/integras/651441.pdf>. Acesso em: 01 jun. 2015.
7 DEPUTADOS, Câmara dos (Org.). PL 2825/2003: Informações de Tramitação. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=149996>. Acesso em: 05 jun. 2015.