Para além dos fatores ensejadores dos conflitos em si, o Direito Internacional Humanitário, é essencial para compreender a legislação internacional aplicável à ajuda humanitária internacional, a qual orienta a conduta de agentes cruciais na oferta de auxílio a vítimas colhidas em conflitos em seus países, ficando desamparadas por vezes do suporte de seus próprios governos nacionais ou mesmo atacadas pelos próprios.
A guerra que acontece na Síria é um bom parâmetro para compreender a legislação pertinente a ajuda internacional humanitária, bem como certos limites que devem ser observados por todos os países em conflito.
Histórico
Normas que tratam sobre a guerra e os meios de se conduzir as hostilidades existem desde os primórdios da civilização.[1] Todas as culturas possuem tais regras, que foram reproduzidas, em maior ou menor escala, em grandes obras literárias ou religiosas.[2] Entretanto, apesar de não ser algo novo, o Direito Internacional Humanitário como concebemos hoje; universal e em grade parte codificado, é um fenômeno recente, iniciado no século XIX. Esse início deve-se, primordialmente, a Francis Lieber e a Henry Dunant.
Lieber, jurista e imigrante alemão radicado nos Estados Unidos, criou, a pedido do presidente Lincoln, um sistema normativo de regras de condutas destinado às tropas em campanha na Guerra da Secessão, o famoso Código Lieber.[3] Esse manual continha regras sobre todos os aspectos da condução da guerra terrestre, com o principal objetivo de evitar sofrimentos desnecessários e de limitar o número de vítimas em um conflito.
O Código Lieber era um documento de ordem interna, redigido e promulgado unilateralmente, para que fosse aplicado em uma situação de guerra civil. Serviu como uma espécie de fonte material para uma série de esforços normativos que se iniciariam na sociedade internacional, na medida em que, como dito, trazia em seu bojo uma série de disposições relativas à condução das hostilidades, disposições que posteriormente se consagrariam por costumes ou se materializariam em diplomas normativos.[4]
Apesar da grande contribuição de Lieber, quem recebeu o “título” de grande criador do DIH[5] foi Henry Dunant.
Dunant, em seu livro Un souvenir de Solférino, apresenta com horror o que presenciou na batalha entre os franceses, italianos e austríacos, a qual no final do dia deixou a incrível soma de 40.000 vitimas, entre mortos e feridos. Além disso, o autor assinala duas ações que deveriam ser adotadas para que esse tipo de situação pudesse ser evitada: a criação de sociedades de socorro privadas, que atuariam nas áreas de conflito independentemente do vínculo com qualquer das partes; e a aprovação de um tratado internacional que facilitasse sua atuação.
Dessa forma, Dunant funda, com um grupo de 5 pessoas, o chamado “Comitê Internacional de Ajuda aos Feridos”[6], que mais tarde – em 1880 – seria transformado no “Comitê internacional da Cruz Vermelha – CICV”. Em agosto de 1863, o Comitê, com a ajuda do governo suíço, decide convocar uma conferência diplomática que se reúne no ano seguinte e dá origem ao primeiro tratado internacional do DIH: a Convenção de Genebra, a qual zelaria por um melhor cuidado dos militares feridos em campanha.
Tratou-se de um momento excepcional: Estados se haviam colocado de acordo para limitar, em um tratado internacional aberto à ratificação universal, seu próprio poder em benefício do indivíduo. Pela primeira vez, a guerra havia cedido terreno para o direito geral e escrito.[7]
Estava criada a base axiológica e institucional sobre a qual se desenvolveria o direito internacional humanitário.
Objetivo do Direito Internacional Humanitário
Antes de se ter uma melhor compreensão do Direito Internacional Humanitário, na condição de ramo do Direito Internacional, deve-se objetivar a sua área de atuação. Segundo uma definição elaborada pelo CICV, o DIH pode ser entendido como:
As regras internacionais, de origem convencional ou costumeira, que são especificamente destinadas a regulamentar os problemas humanitários decorrentes diretamente dos conflitos armados, internacionais ou não internacionais, e que restringem, por razões humanitárias, o direito das partes no conflito de empregar os métodos e meios de guerra de sua escolha ou que protegem as pessoas e bens afetados, ou que podem ser afetados pelo conflito.[8]
Percebe-se, portanto, que sua criação e sua implementação têm como finalidade limitar os meios e métodos passíveis de serem utilizados em uma situação de enfrentamento armado, estabelecendo desde os armamentos dos quais as partes conflitantes podem valer-se até o tratamento que deve ser dado àqueles indivíduos, combatentes ou não, que estejam nela direta ou indiretamente envolvidos.[9]
A grande questão a se indagar é se há a possibilidade de conciliar, por um lado, os objetivos militares num conflito, e por outro, a proteção ao indivíduo.
Leonardo Borges afirma[10]:
O que se pode afirmar a esse respeito é que o direito internacional humanitário se mostra viável justamente em virtude do fato de ter uma finalidade bem definida: não se deseja, com sua aplicação, tornar um conflito armado mais “justo”. Ele visa simplesmente diminuir ao máximo o sofrimento daqueles que são afetados por essa situação.
O resultado da conjugação entre a necessidade militar e os objetivos humanitários deve ser uma regulamentação que imponha limites efetivos ao poder bélico dos Estados sem, contudo, tornar impossível o exercício legítimo desse poder. Dessa forma, o DIH não atua, pelo menos imediatamente, para que tais conflitos sejam erradicados[11].
Essa afirmação nos leva a fazer outra pergunta: seria então desejável buscar uma mitigação dos efeitos dos conflitos armados? O resultado não seria apenas o de protelar as hostilidades e, nesse sentido, aumentar os terrores por eles causados?
Leonardo Borges traz a seguinte resposta[12]:
A primeira observação que deve ser feita a esse respeito é de ordem fática: em que pesem os recentes esforços da sociedade internacional para a manutenção da paz[13], os conflitos armados se mostram, desde a Antiguidade, uma constante nesse cenário. Dessa forma, conclui-se que, dada a incapacidade de se prover, no sistema internacional, mecanismos efetivos para a erradicação dos conflitos, a criação de um conjunto normativo que vise a diminuição de seus perversos efeitos é algo plenamente justificável.
Resta, portanto, observar que os avanços tecnológicos atuais resultaram na criação de armamentos com elevado potencial ofensivo, sejam eles de índole biológica ou nuclear, que expõem a população envolvida a um sofrimento injustificado, no sentido de que o mesmo efeito prático poderia ser atingido por armamentos com um potencial lesivo consideravelmente menor. O DIH, assim, mostra-se como um instrumento utilizado para impedir que pessoas sejam expostas a um sofrimento irrazoável ou a um estado de “guerra total”.[14]
Princípios do Direito Internacional Humanitário
São, portanto, dois os objetivos essenciais do DIH, quais sejam: proteger aqueles que não participam (por exemplo, os civis) ou que estão impossibilitados de participar (por exemplo, prisioneiros de guerra, enfermos, feridos etc.) de conflitos armados; e limitar o uso da violência ao que seja necessário para de atingir o resultado desejado com o conflito.[15] Nesse ínterim, destacam-se três princípios como de fundamental importância para a consecução dessas finalidades: o princípio da humanidade, o princípio da necessidade e o princípio da proporcionalidade.
O Princípio da Humanidade
O princípio da humanidade é aquele que orienta toda a construção do DIH, na medida em que estabelece o dever de, mesmo em situações conflituosas, buscar-se sempre a preservação da dignidade da pessoa humana. De fato, “ainda que o objeto de um conflito armado seja alcançar a vitória sobre a parte adversária com o menor gasto possível de homens, recursos e dinheiro, princípios de humanidade permanecem relevantes”.
A famosa cláusula Martens é decorrência direta desse princípio. À ocasião da Conferência de Haia de 1899, reconhecendo que não havia sido possível solucionar todos os problemas, os Estados afirmaram que não era sua intenção deixar à apreciação arbitrária dos que comandam os exércitos os casos não previstos, determinando que “as populações e os beligerantes permanecem sob garantia e o regime dos princípios do Direito das Gentes preconizados pelos usos estabelecidos entre as nações civilizadas pelas leis da humanidade e pelas exigências da consciência pública.”.[16]
A importância da cláusula Martens para o desenvolvimento do direito dos conflitos armados foi evidenciada pela Corte Internacional de Justiça no Parecer Consultivo sobre a ilicitude da ameaça ou uso de armas nucleares, onde se determinou que ela “revelou ser um meio eficaz de fazer face à rápida evolução das tecnologias militares”.[17]
O Princípio da Necessidade
A partir do momento em que o DIH determina que os bens de caráter civil não podem ser objeto de ataques ou represálias e somente os objetivos militares, de acordo com a necessidade militar de um Estado beligerante, podem sê-lo, torna-se crucial definir o que vem a ser objetivo militar. Para um bem ser considerado um objetivo militar, ele deve reunir duas características: contribuir efetivamente para a ação militar de uma parte em conflito; e sua destruição, sua captura ou sua neutralização devem oferecer uma vantagem militar precisa à outra parte.[18]
Uma vez que o princípio da necessidade determina que os ataques dos beligerantes devem ater-se a uma finalidade militar específica, sua aplicação tem de ser feita, portanto, de maneira restritiva. Entretanto, “tendo em vista as exigências vitais de qualquer parte em conflito, para a defesa de seu território nacional contra a invasão”, são permitidas derrogações a essa proibição “se necessidades militares imperiosas assim o exigirem”.[19]
O Princípio da Proporcionalidade
Em qualquer conflito armado, o direito das partes em conflito de escolher os meios e métodos de guerra não é ilimitado.[20]Assim, de acordo com o princípio da proporcionalidade, nenhum alvo, mesmo que militar, deve ser atacado se os prejuízos e sofrimento forem maiores que os ganhos militares que se espera da ação.[21]
Ademais, quando for possível a escolha entre vários objetivos militares que proporcionem vantagem militar equivalente, a escolha deverá recair sobre o objetivo cujo ataque parece representar o menor perigo para os civis ou para os bens de caráter civil.[22]
Desse princípio decorre uma série de limitações à condução das hostilidades entre os beligerantes, uma vez que a base para qualquer decisão de ataque proporcional é a constante preocupação em se poupar a população e os bens de caráter civil. Um exemplo dessa limitação está disposto no art. 55 do Protocolo I, que proíbe ataques que possam causar danos extensos, duráveis e graves ao meio ambiente, comprometendo, por esse fato, a saúde ou a sobrevivência da população.[23]
Todavia, em uma situação real de conflito armado, por vezes a distinção entre alvos civis e militares pode-se mostrar problemática, já que propositadamente as partes podem “camuflar” atividades bélicas em meio à população civil.[24] Nesses casos, a opção pelo ataque deve ser feita sempre se conjugando os princípios supracitados, de forma que não se exponha os indivíduos a um sofrimento maior do que o necessário para que se atinjam os objetivos militares.[25]
Por fim, destaque-se que, para o DIH, não há distinção entre os propósitos de um conflito armado. Não se discute, portanto, se o objetivo de qualquer dos beligerantes é (ou não) “justo”. Nesse sentido, as normas são aplicáveis uniformemente a qualquer das partes, independentemente da motivação de cada uma delas.
REFERÊNCIAS: [1] Ver, sobre o assunto, DIALLO, Y. Traditions africaines et droit humanitaire: similitudes et divergences. Genève: CICR, 1976. [2] Por exemplo, o Código de Manu datado do século 1 d.c, que possuía normas de proibição do uso de armas pérfidas, como flechas envenenadas ou em chamas. [3] O nome oficial do Código Lieber é “Instructions for the Government of Armies of the United States in the Field”, publicado em 1863. [4] O primeiro resultado dessa influência é a Declaração de São Petersburgo de 1868, proscrevendo, em tempo de guerra, o emprego de projéteis explosivos e inflamáveis. [5] Direito Internacional Humanitário. [6] O Comitê Internacional de Ajuda aos Feridos, também conhecido como Comitê dos Cinco por reunir cinco personalidades suíças com o objetivo de analisar as proposições humanitárias elaboradas por Dunant, reuniu-se pela primeira vez em 17 de fevereiro de 1863. Além de Dunant, o Comitê reunia dois médicos, Louis Appia e Théodore Maunoir, um jurista, Guastave Moynier, e um militar, o general Guillaume-Henri Dufour. [7] SASSÒLI, M.; BOUVIER, A. A. Um droit dans La guerre? Genève: CICR, v. 1, 2003, p. 129. [8] Cf. GASSER, H. –P. Le droit internacional humanitaire. Institut Henry Dunant, 1993, p. 17. [9] Ver, MELLO, C. D. A. Direitos humanos e conflitos armados, p. 135-137. [10] BORGES, Leonardo Estrela. O Direito Internacional Humanitário. Coleção Para Entender. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. [11] Há uma importante distinção entre jus in bello e o jus ad bellum. O jus ad bellum, ou direito à guerra, manifesta-se nas normas de direito internacional que limitam o uso da força pelos Estados e que os obrigam a resolver suas controvérsias de maneira pacífica, notadamente a Carta das Nações Unidas. Ver, sobre essa distinção, GREENWOOD, C. The relationship between jus ad bellum and jus in bello, p. 221-234; KOLB, R. Sur l´’origine Du couple terminologique ius ad bellum – ius in bello, p. 593-602. [12] BORGES, Leonardo Estrela. Ibidem. [13] Ver por exemplo: http://www.un.org/en/peace/; http://www.icrc.org/por/index.jsp. [14] KALSHOVEN, F.; ZEGVELD, L. Restricciones a La conducción de La guerra, p. 15. [15] De acordo com a Declaração de São Petersburgo de 1868, “o único fim legítimo a que os Estados devem se propor durante a Guerra é o enfraquecimento das forças militares do inimigo”. [16] Preâmbulo da Convenção de Haia relativa às leis e aos usos da guerra terrestre, de 1899. Posteriormente, o Protocolo Adicional às Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949, relativo à proteção das vítimas dos conflitos armados internacionais (Protocolo I), reafirmou esta cláusula e seu art. 1º, 2. [17] CIJ. Parecer Consultivo sobre a ilicitude da ameaça ou uso de armas nucleares, de 8 de julho de 1996. Résumé dês arrêts, avis consultatifs et ordonnances, 1997-2002, p.114. [18] Cf. art. 52,2, do Protocolo I. Ver ROBERTSON, H.B. The principle of the military objective in the Law of armed conflict. International Law Studies. Disponível em: < https://litigation-essentials.lexisnexis.com/webcd/app?action=DocumentDisplay&crawlid=1&doctype=cite&docid=8+USAFA+J.+Leg.+Stud.+35&srctype=smi&srcid=3B15&key=f2a769b307ba1552e0aeb31b1f3f49a1 > Acesso em 05. Jul. 2013. [19] Art. 54, 5, do Protocolo I. [20] Cf. art. 35, 1, do Protocolo I. [21] Cf. BROWN, B. L. The proportionality principle in the humanitarian Law of warfare: recent efforts at codification. Cornell International Law Journal, v. 10, 1976, p. 134-155. [22] Art. 53, 3 , do Protocolo I. [23] Ver BORGES, L. E. Os impactos do terrorismo no meio ambiente. In: BRANT, L. N. C. (Org.). O terrorismo internacional e o direito: perspectivas jurídico- políticas. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 479-509. [24] Ver GEHRING, R. W. Protection of civilian infrastructures. Law and contemporary problems, v. 42 (2), p. 86-139, 1978. [25] De acordo com o art. 52, 3, do Protocolo I, em caso de dúvida, presume-se que um bem que é normalmente consagrado ao uso civil não contribui efetivamente para a ação militar.