Connect with us

Artigos

Audiência de Custódia: uma Análise Crítica sobre a (In)Constitucionalidade da Resolução nº 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça

Redação Direito Diário

Publicado

em


Atualizado pela última vez em

 por Bianca Collaço

Marcelo Gomes de Lima[1]

Ingo Dieter Pietzsch[2]

RESUMO

A audiência de custódia é instrumento processual que visa garantir os direitos fundamentais do indivíduo preso em flagrante delito ou mediante cumprimento a mandado de prisão. No entanto, apesar de prevista em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como o Pacto de São José da Costa Rica e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a audiência de custódia ainda não conta com uma lei própria que a discipline no Brasil. Na tentativa de preencher essa lacuna judiciária o Conselho Nacional de Justiça, em parceria com o Ministério da Justiça e o Tribunal de Justiça de São Paulo, lançou o “Projeto Audiência de Custódia”, que entrou em vigor no ano de 2016, através da Resolução N. 213/2015. Tal resolução, por sua vez, determina que toda pessoa presa seja apresentada à autoridade policial num prazo máximo de 24 horas. Entretanto, muito se tem discutido acerca da constitucionalidade da referida resolução, visto que vários são os dispositivos que dispõem sobre o Processo Penal, em especial o art. 22, inciso I, que estabelece ser de competência privativa da união legislar sobre o direito processual e o direito penal. Dessa forma, o presente artigo pretende analisar o texto da Resolução N. 213/2015 e suas incongruências em relação à Constituição Federal Brasileira e ao Direito Processual Penal Brasileiro.

Palavras-chave: Audiência de Custódia. Constitucionalidade. Resolução N. 213/2015.

 

ABSTRACT

 

A custody hearing is a procedural instrument aimed at guaranteeing the fundamental rights of the individual arrested in the act of committing an offense or following an arrest warrant. However, despite being provided for in international treaties to which Brazil is a signatory, such as the San Jose Costa Rican Covenant and the International Covenant on Civil and Political Rights, the custody hearing does not yet have its own law stipulating it in the Brazil. In an attempt to fill this judicial gap, the National Justice Council, in partnership with the Ministry of Justice and the São Paulo Court of Justice, launched the “Project Audience of Custody”, which came into force in 2016 through the Resolution No. 213/2015. Such a resolution therefore requires that every arrested person be presented to the police authority within 24 hours. However, much has been discussed about the constitutionality of the aforementioned resolution, since there are several provisions that provide for the Criminal Procedure, especially art. 22, item I, which establishes that it is the Union’s exclusive competence to legislate on procedural law and criminal law. Thus, this article intends to analyze the text of Resolution N. 213/2015 and its incongruities in relation to Federal Contitution and Brazilian Criminal Procedural Law.

Keywords: Custody Audience. Constitutionality. Resolution No. 213/2015.

 

INTRODUÇÃO

Enquanto Estado Democrático de Direito, o Brasil tem o dever constitucional de positivar os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos inclusos sob seu território, tendo destaque especial o respeito ao princípio da dignidade humana.

Desse modo, além das disposições legais previstas na Constituição Federal de 1988, o Brasil ainda deve obediência aos tratados internacionais dos quais faz parte, como a Declaração Universal de Direitos Humanos e a Convenção Americana de Direitos Humanos.

Nesse contexto, ambos os tratados têm como base um ramo do direito relativamente novo, o Direito Internacional dos Direitos Humanos, originado após a Segunda Guerra Mundial como respostas às monstruosas violações aos direitos humanos cometidas pelo nazismo, e dispõem sobre à consagração ao direito à liberdade individual, estabelecendo que não deverá, o cidadão,  ser privado de  sua liberdade física ilegalmente ou arbitrariamente.

Os tratados supracitados ainda discorrem acerca do direito do preso, que deve ser conduzido sem demora à presença de um juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade.

No entanto, apesar de estabelecerem diretrizes acerca das garantias judiciais do indivíduo, nenhum dos dois tratados, nem o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos art. 9.º, item 3, nem o art. 7.º, item 5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos criaram o ato processual “audiência de custódia”, de modo que, ambos os dispositivos, apenas limitaram-se a estabelecer um comando, de que toda pessoa presa, detida ou retida seja levada sem demora à presença de um juiz, mas, sem criar institutos jurídicos.

Dessa forma, até muito recentemente, o Brasil não possuía nenhuma legislação específica acerca de audiência de custódia.  De fato, o ato processual “audiência de custódia” foi inicialmente criado por atos de tribunais, como o Tribunal de Justiça de São Paulo, e posteriormente teve sua criação disciplinada e unificada pela Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça.

Passando a vigorar em primeiro de fevereiro de 2016, a referida resolução tem suscitado, até hoje, uma série de discussões acerca sua constitucionalidade, culminando, inclusive no ajuizamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, contra o ato normativo, sustentando sua inconstitucionalidade formal, por suposta usurpação de competência privativa do Congresso Nacional para dispor sobre matéria processual penal, conforme previsto no art. 22, I, da Constituição Federal de 1988.

Assim, o presente trabalho tem o escopo de analisar a evolução histórica da audiência de custódia, finalizando com a análise de sua constitucionalidade mediante à nossa carta política.

 

  1. DIREITO DO PRESO E OS TRATADOS INTERNACIONAIS

 

2.1 CONVENÇÃO NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS

A Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San Jose da Costa Rica, foi assinada em 22 de novembro de 1969, na cidade de San José, na Costa Rica, e ratificada pelo Brasil através do Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992.

Dentre seus diversos fundamentos, o Pacto de San José da Costa Rica estabelece, em seu artigo sétimo, as diretrizes estruturais para a audiência de custódia. A saber:

Art. 7º – Direito à liberdade pessoal:

  1. Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais.
  2. Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas Constituições políticas dos Estados-partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas.
  3. Ninguém pode ser submetido a detenção ou encarceramento arbitrários.
  4. Toda pessoa detida ou retida deve ser informada das razões da detenção e notificada, sem demora, da acusação ou das acusações formuladas contra ela.
  5. Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo. (BRASIL, 1992, p. 03)

Neste contexto, enquanto signatário do Pacto de San José da Costa Rica, o Estado brasileiro tem a responsabilidade e o dever de verificar se os instrumentos de lei estão sendo cumpridos e se seguem as normas internacionais de Direitos Humanos e consequentemente aplicar possíveis sanções aos responsáveis, utilizando de inúmeros recursos de jurisdição.

2.2 PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS DE NOVA IORQUE

O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos foi adotado pela Resolução n. 2.200-A (XXI), da Assembleia Geral das Nações Unidas a 19 de dezembro de 1966, e aprovado pelo Congresso Nacional brasileiro por meio do Decreto Legislativo número 226, de 12 de dezembro de 1991.

O presente pacto, dentre outras garantias, confere ao preso o direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial. Haverá também a garantia, no âmbito do processo legal, aos acusados em geral, ao contraditório e à ampla defesa, sendo que ninguém será processado senão pela autoridade competente.

Por sua vez, o princípio da presunção de inocência, segundo o qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, encontra-se igualmente previsto no Pacto dos Direitos Civis e Políticos (art. 14, 2): “Toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa.”

Mais à frente, em seu artigo 9º, o referido pacto determina que toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais, sendo que ninguém poderá ser preso ou encarcerado arbitrariamente, salvo pelos motivos previstos em lei, revelando-se, portanto, uma verdadeira cartilha de princípios garantistas no que diz respeito à invasão do Estado no direito de liberdade:

  1. Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais. Ninguém poderá ser preso ou encarcerado arbitrariamente. Ninguém poderá ser privado de liberdade, salvo pelos motivos previstos em lei e em conformidade com os procedimentos nela estabelecidos.
  2. Qualquer pessoa, ao ser presa, deverá ser informada das razões da prisão e notificada, sem demora, das acusações formuladas contra ela. (BRASIL, 1992, p. 02)

Finalmente, para efeito dos estudos procedidos para elaboração deste trabalho, o item 3, do artigo nono, dispõe que:

Art. 9. §3. Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência e a todos os atos do processo, se necessário for, para a execução da sentença. (BRASIL, 1992, p. 02)

Dessa forma, o referido pacto estabelece que qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz e terá o direito de ser julgada em prazo razoável.

3 DIREITOS DO PRESO NO BRASIL

3.1 CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A carta Magna de 1988 é o ordenamento maior do sistema normativo brasileiro, dispondo sobre a política, os objetivos, os princípios e as regras que norteiam a estrutura organizacional do país. Em seu artigo 5º, por sua vez, estão previstos uma série de direitos e garantias individuais que são asseguradas a todos os cidadãos.

Dentre os direitos e garantias fundamentais previstos constitucionalmente, está a proteção ao direito dos presos, uma vez que, por estar privado de liberdade, o preso encontra-se em uma situação especial que condiciona uma limitação dos direitos previstos na Constituição Federal e nas leis. No entanto, o indivíduo, apesar de perder o direito à liberdade, não perde sua condição de pessoa humana e a titularidade dos direitos não atingidos pelo ordenamento jurídico, de modo que a execução da pena deve estar em consonância com os fins a ela atribuídos pelo ordenamento jurídico.

O artigo 5˚, presente no Capitulo dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, da Constituição Federal define que:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

III – ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

XLVII – não haverá penas:

  1. a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
  2. b) de caráter perpétuo;
  3. c) de trabalhos forçados;
  4. d) de banimento;
  5. e) cruéis;

Em relação aos direitos do preso, ainda no âmbito do art., 5˚, temos os seguintes incisos:

XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.

LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;

LXII – a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada;

LXV – a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária; 

LXVI – ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança (BRASIL, 1988, p. 0304-, grifos do autor)

Finalmente, tem-se parágrafo segundo e o parágrafo terceiro, do artigo 5˚ versando sobre os tratados internacionais:

  • Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
  • Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (BRASIL, 1988, p. 07)

Dessa forma, a Carta Política de 1988 coloca o Brasil no contexto das diretrizes estabelecidas pelo Pacto de San José da Costa Rica e do Pacto Internacional Sobre Direitos Civis E Políticos De Nova Iorque.

4 AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

A Audiência de custodia, nada mais é, do que a oitiva do agente, pelo juiz, antes de decidir sobre uma das opções do art. 310 do CPP, onde ele ouvirá, também, sobre a legalidade ou abusos cometidos no ato da prisão:

Art. 310. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

I – relaxar a prisão ilegal; ou (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

II – converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

III – conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. (BRASIL, 1941)

De acordo com Paiva, o conceito e a finalidade da audiência de custódia seriam:

O conceito de custódia se relaciona com o ato de guardar, de proteger. A audiência de custódia consiste, portanto, na condução do preso, sem demora, à presença de uma autoridade judicial, que deverá, a partir de prévio contraditório estabelecido entre o Ministério Público e a Defesa, exercer um controle imediato da legalidade e da necessidade da prisão, assim como apreciar questões relativas à pessoa do cidadão conduzido, notadamente a presença de maus tratos ou tortura. Assim, a audiência de custódia pode ser considerada como uma relevantíssima hipótese de acesso à jurisdição penal. (PAIVA, 2015)

Ainda nas palavras de Caio (2015, p. 31), temos que:

A audiência de custódia consiste, portanto, na condução do preso, sem demora, à presença de uma autoridade judicial que deverá, a partir de prévio contraditório estabelecido entre o Ministério Público e a Defesa, exercer um controle imediato da legalidade e necessidade da prisão, assim como apreciar questões relativas à pessoa do cidadão conduzido, notadamente a presença de maus tratos ou tortura (PAIVA, 2015, p. 31).

Apesar de prevista em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, como o Pacto de São Jose da Costa Rica e o Pacto Internacional Sobre Direitos Civis E Políticos de Nova Iorque, a audiência de custódia ainda não detém, no ordenamento jurídico brasileiro, uma lei que a regulamente.

O instituto que mais se aproximou da resolução do CNJ, foi o art. 656 do CPP, acerca do Habeas Corpus, “(…) o juiz, se julgar necessário, e estiver preso o paciente, mandará que este Ihe seja imediatamente apresentado em dia e hora que designar (BRASIL, 1941).

Dessa forma, A principal e mais elementar finalidade da implementação da audiência de custódia no Brasil é ajustar o processo penal brasileiro aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Tal premissa implica considerar que as finalidades da audiência de custódia, ainda que não convençam os seus opositores, não os desobriga de observar o seu cumprimento. Ou seja, o conceito dado à audiência de custódia está totalmente vinculado à sua finalidade, não podendo se confundir com a mera “audiência de apresentação”, porquanto sua previsão nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos já citados, somente se justifica na possibilidade de servir-se como um instrumento de controle judicial imediato da prisão.

Outra finalidade da audiência de custódia está relacionada à prevenção da tortura policial, assegurando, dessa forma, a efetivação do direito à integridade pessoal das pessoas privadas de liberdade. Assim, conforme previsto no art. 5.2 do Pacto de San Jose da Costa Rica: “Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano”.

Uma terceira finalidade da audiência de custódia pode ser identificada no seu propósito de evitar prisões ilegais, arbitrárias ou, por algum motivo, desnecessárias.

Assim, a audiência de custódia tem por escopo assegurar o respeito aos direitos fundamentais da pessoa submetida à prisão, por meio de apreciação mais adequada e apropriada da prisão antecipada pelas agências de segurança pública do estado. Ela garante a presença física do autuado em flagrante perante o juiz, bem como o seu direito ao contraditório pleno e efetivo antes de ocorrer a deliberação pela conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva. Com isso, evitam-se prisões desnecessárias, atenuando-se a superlotação carcerária e os gastos que decorrem da manutenção de presos provisórios indevidamente intramuros. Finalmente, audiências de custódia permitem conhecer e tomar providências diante de possíveis casos de maus-tratos e de tortura.

4.1 RESOLUÇÃO N. 213/2015 DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA

Segundo o último relatório do INFOPEN, lançado em dezembro de 2017, o Brasil é o terceiro país com a maior população carcerária do mundo com 726.712 mil presos e taxa de aprisionamento de 352,6 a cada 100 mil habitantes (DEPEN, 2017).

Com base nesses dados, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) juntamente com o Ministério da Justiça lançou no início de 2015 o projeto “Audiência de Custódia”, buscando evitar a longa permanência na prisão de pessoas sem condenação e, assim, evitar possíveis abusos e maus-tratos, garantindo a dignidade da pessoa humana, além de reduzir os gastos com a custódia dos presos e a superlotação dos presídios.

Vigorando a partir de 1˚ de fevereiro de 2016, o art. 1˚ da Resolução N. 213/2015 conta com a seguinte redação:

Art. 1º Determinar que toda pessoa presa em flagrante delito, independentemente da motivação ou natureza do ato, seja obrigatoriamente apresentada, em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão. (BRASIL, 2015, p.02)

Outras previsões importantes constantes na referida legislação são:

Art. 3º Se, por qualquer motivo, não houver juiz na comarca até o final do prazo do art. 1º, a pessoa presa será levada imediatamente ao substituto legal, observado, no que couber, o § 5º do art. 1º. Art. 4º A audiência de custódia será realizada na presença do Ministério Público e da Defensoria Pública, caso a pessoa detida não possua defensor constituído no momento da lavratura do flagrante. Parágrafo único. É vedada a presença dos agentes policiais responsáveis pela prisão ou pela investigação durante a audiência de custódia. (BRASIL, 2015, p.02)

O Supremo Tribunal Federal, em duas oportunidades, confirmou a constitucionalidade e a importância da implantação da audiência de custódia para a garantia da dignidade da pessoa humana. Ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.240, em sessão plenária do dia 20 de agosto de 2015, os ministros do STF mantiveram as normas que regulamentam a implantação da audiência de custódia no estado de São Paulo. No julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 347, realizado em 9 de setembro de 2015, a Suprema Corte determinou que juízes e tribunais realizassem audiências de custódia, no prazo máximo de 90 dias, a fim de viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária em até 24 horas contadas do momento da prisão, como providência necessária à solução da crise prisional em nosso país.

5 A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

5.1 CONSTITUCIONALIDADE DA RESOLUÇÃO N. 213/2015

Em fevereiro, foi apresentado na Câmara dos Deputados o Projeto de Decreto Legislativo (PDC) nº 317/2016, de autoria do Dep. Eduardo Bolsonaro (PSC/SP), que busca sustar os efeitos do inteiro teor da Resolução 213/2015 do CNJ, ao argumento de que as audiências de custódia teriam sido instituídas por ato normativo do CNJ, agravando a sensação de impunidade que estimularia os criminosos, apavoraria os cidadãos e geraria um sentimento de impotência aos policiais, frente ao retrabalho diário.

Além disso, a audiência de custódia não encontraria guarida no ordenamento jurídico vigente, uma vez que os procedimentos previstos no ato normativo instituído pelo Conselho Nacional de Justiça fariam inovações no arcabouçou jurídico, avançando em competência legislativa do Congresso Nacional, conforme previsto no art. 22, inciso I.

Dessa forma, faz-se oportuno mencionar que o Conselho Nacional de Justiça não faz parte do Poder Legislativo, responsável pela criação de leis e sim, é componente do Poder Judiciário, conforme demonstramos a seguir:

Art. 92. São órgãos do Poder Judiciário:

I – o Supremo Tribunal Federal;

I- o Conselho Nacional de Justiça;

II – o Superior Tribunal de Justiça;

III – os Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais;

IV – os Tribunais e Juízes do Trabalho;

V – os Tribunais e Juízes Eleitorais;

VI – os Tribunais e Juízes Militares;

VII – os Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e

Territórios.  (BRASIL, 1988)

Ou seja, o CNJ detém várias competências, no entanto, estão são de natureza estritamente administrativa, financeira e fiscalizadora, não possuindo a competência legislativa, uma vez que faz parte componente do Poder Judiciário e não do Legislativo.

Ao editar a Resolução nº 213/2015, o CNJ, por todas as razões expostas, ainda incorreu no desvio de finalidade. Sob o pretexto de garantir direitos humanos e aplicar normas internacionais, o Conselho Nacional de Justiça atribuiu novas regras sobre direito penal e processo penal, além de invadir a esfera de competência de outros poderes, caracterizando, assim, grave desvio de finalidade do administrativo, conforme ensinamentos do mestre Hely Lopes Meirelles:

“…O ato praticado com desvio de finalidade – como todo ato ilícito ou imoral – ou é consumado às escondidas ou se apresenta disfarçado sob o capuz da legalidade e do interesse público. Diante disto, há que ser surpreendido e identificado por indícios e circunstâncias que revelem a distorção do fim legal, substituído habilidosamente por um fim ilegal ou imoral não desejado pelo legislador(…) (MEIRELLES, 2010, pg. 115)

Além disso, tal prática adotada pelo CNJ burla o Princípio da Separação dos Poderes, elencado no artigo 2º, da CF/88, que diz: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”, sendo este princípio uma cláusula pétrea, não podendo ser objeto de proposta à emenda constitucional tendente à sua abolição ou restrição, sendo permitida somente sua ampliação.

Dessa forma, para que a audiência de custódia fosse considerada constitucional, seria necessário que a mesma fosse criada e votada pelo Congresso Nacional, seguindo o estabelecido no artigo 22, inciso I, da Constituição Federal, que afirma: “Compete privativamente à União legislar sobre: direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;” (grifo nosso).

5.2 A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

O Supremo Tribunal Federal é o órgão de cúpula do Poder Judiciário, e a ele compete, precipuamente, a guarda da Constituição Federal, destacando, dentre suas principais competências  de julgar a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, a arguição de descumprimento de preceito fundamental decorrente da própria Constituição e a extradição solicitada por Estado estrangeiro”.

Em grau de recurso, sobressaem-se as atribuições de julgar, em recurso ordinário, o habeas corpus, o mandado de segurança, o habeas data e o mandado de injunção decididos em única instância pelos Tribunais Superiores, se denegatória a decisão, e, em recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida contrariar dispositivo da Constituição.

Pedro Lenza (2015, p. 940) menciona que o STF tem competência para rever os atos do CNJ, quando estes não respeitarem os princípios da Administração Pública, conforme apresentado na ADI 3.367:

INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Emenda Constitucional nº 45/2004. Poder Judiciário. Conselho Nacional de Justiça. Instituição e disciplina. Natureza meramente administrativa. Órgão interno de controle administrativo, financeiro e disciplinar da magistratura. Constitucionalidade reconhecida. Separação e independência dos Poderes. História, significado e alcance concreto do princípio. Ofensa a cláusula constitucional imutável (cláusula pétrea). Inexistência. Subsistência do núcleo político do princípio, mediante preservação da função jurisdicional, típica do Judiciário, e das condições materiais do seu exercício imparcial e independente. Precedentes e súmula 649. Inaplicabilidade ao caso. Interpretação dos arts. 2º e 60, § 4º, III, da CF. Ação julgada improcedente. Votos vencidos. São constitucionais as normas que, introduzidas pela Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, instituem e disciplinam o Conselho Nacional de Justiça, como órgão administrativo do Poder Judiciário nacional.

PODER JUDICIÁRIO. Conselho Nacional de Justiça. Órgão de natureza exclusivamente administrativa. Atribuições de controle da atividade administrativa, financeira e disciplinar da magistratura.

Competência relativa apenas aos órgãos e juízes situados, hierarquicamente, abaixo do STF. Preeminência deste, como órgão máximo do Poder Judiciário, sobre o Conselho, cujos atos e decisões estão sujeitos a seu controle jurisdicional. Inteligência dos art. 102, caput, inc. I, letra “r”, e § 4º, da CF. O Conselho Nacional de Justiça não tem nenhuma competência sobre o Supremo Tribunal Federal e seus ministros, sendo esse o órgão máximo do Poder Judiciário nacional, a que aquele está sujeito” (ADI 3.367, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 13.04.2005, DJ de 22.09.2006). (grifo do autor).

Portanto, observa-se que o próprio Pretório Excelso reconhece a importância do CNJ como forma de controle externo do Poder Judiciário, zelando pelo seu bom funcionamento, sem, contudo, autorizar que este exceda as suas competências, ou seja, não há que se falar em esvaziamento do CNJ, mas sim em controle do exercício das suas atribuições.

No entanto, contrariando o seu papel de guardião da Constituição Federal Brasileira, o STF, utilizando-se de técnicas de interpretação para tentar sanar a ausência de legislação sobre o assunto, não respeitando a CF como bússola incontestável para toda a qualquer decisão, o Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5240, além de indicar a adoção da Audiência de Custódia em todos os tribunais.

Dessa forma, diante do que ora fora exposto, conclui-se que a Audiência de Custódia atualmente implantada no Brasil é, materialmente, inconstitucional pois, para a implementação, primeiramente, não se respeitou o que dita a Constituição Federal, base para toda e qualquer decisão, não podendo esta ser desrespeitada e, simplesmente, rejeitada, colocando-se além dela qualquer tratado internacional ou decisões colegiadas quaisquer.

5.3 O PROJETO DE LEI DO SENADO Nº 554/11

De autoria do Senador Antônio Carlos Valadares, o Projeto de Lei do Senado nº 554/11, alteraria o CPP conforme respectiva ementa:

Altera o §1º do artigo 306 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal) para dispor que no prazo máximo de vinte e quatro horas após a realização da prisão, o preso deverá ser conduzido à presença do juiz competente, juntamente com o auto de prisão em flagrante, acompanhado das oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública.. (VALADARES, 2011)

 

Assim, com a implementação da referida audiência, a pessoa detida em flagrante deverá ser apresentada ao juiz em um prazo de até 24 horas, sendo esse o maior contraste com a atual sistemática processual, visto que hoje somente é remetido ao juiz o auto de prisão em flagrante, de modo que o magistrado não tem qualquer contato com a pessoa presa.

Inicialmente, a proposta original de alteração da sistemática da prisão em flagrante trazia tão somente a mudança do §1º do art. 306 do Código de Processo Penal para incluir a obrigação de que a pessoa presa em flagrante fosse apresentada à autoridade judicial no prazo máximo de 24 horas.

No entanto, ao seguir o para a Comissão de Assuntos Econômicos, onde foi totalmente aprovado, seguindo para Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, diversas emendas foram propostas ao projeto, sugerindo alterações em outros dispositivos do Código de Processo Penal, além do art. 306, trazendo alterações relativas à prevenção de torturas, à humanidade no tratamento processual, à efetivação da ampla defesa, à previsão de limites à audiência de custódia e à prevenção de decretação de prisões preventivas desnecessárias.

De acordo com o Projeto de Lei nº 554/11, o substitutivo aprovado em turno suplementar datado de 30 de novembro de 2016 e encaminhado a Câmara dos Deputados no dia 06 de dezembro do aludido ano, traz inovações de grande valia, uma vez que no “caput” do art. 306, inclui a Defensoria Pública no polo de órgãos a serem comunicados após a prisão, haja vista permitir o rápido acionamento de mecanismos de defesa ao acusado, já no §1ª inseriu-se no rol o Ministério Público, objetivando o célere desenvolvimento do Fiscal da Lei, permitindo assim que diligências sejam requeridas se necessário for, bem como o relaxamento ou até mesmo pedido de prisão preventiva se for o caso. Ainda, incluiu ao dispositivo treze novos parágrafos, evidenciando o resguardo da preservação da dignidade da pessoa humana.

Destarte, uma primeira leitura do projeto de lei, tal como se encontra no presente momento, já mostra que, se aprovada, a referida lei tem potencial efetivo para solucionar alguns problemas gerados a partir da prisão em flagrante.

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A audiência de custódia tem como previsão normativa os Tratados Internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil, de forma que tanto a Convenção Americana de Direitos Humanos (também denominada de Pacto de São José da Costa Rica) quanto o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos assinalam a necessidade de qualquer pessoa presa em virtude de crime previsto no Código Penal e em Leis Especiais, como o tráfico de drogas, ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais.

Alinhado a essas previsões normativas, o instituto da audiência de custódia prevê a necessidade da apresentação do preso em flagrante, no prazo de 24 horas após a prisão, a um juiz que analisará a legalidade da prisão. Teria em vista garantir a celeridade da apresentação do preso ao magistrado, para que este decida sobre a manutenção ou não da prisão, e ainda, prevenir a prática de tortura e de maus tratos.

No entanto, com base no exposto no decorrer deste estudo, apesar de a Audiência de Custódia possui previsão expressa em tratados e convenções internacionais do qual o Brasil é signatário e, está subjetivamente introduzida na Constituição Federal, tendo em vista a preservação dos direitos fundamentais inerentes da pessoa humana, a ausência de previsão legal acerca da Audiência de Custódia, dificultou sua aplicação diante do Poder Judiciário, uma vez que apenas os dispositivos dos tratados e convenções internacionais não seriam suficientes para sua introdução e aplicação nos casos em concreto.

No intuito de resolver esse obstáculo, o Conselho Nacional de Justiça, em  parceria com o Ministério da Justiça, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e o Tribunal de Justiça de São Paulo, lançaram o “Projeto Audiência de Custódia”, que busca implementar em todo país a rápida apresentação do preso ao juiz para primeira análise da prisão ou da adoção de medidas alternativas.

No entanto, conforme previsão na Carta Política de 1988, é privativo da União, na forma do Poder Legislativo, legislar sobre o direito penal e o direito processual, de modo que o Conselho Nacional de Justiça é componente direto do Poder Judiciário, não tendo, portanto, competência de legislar para inovar o ordenamento jurídico brasileiro.

Dessa forma, conclui-se que, apesar das intenções positivas do CNJ, a Resolução por ele instruída é materialmente inconstitucional, ferindo a divisão harmônica dos três poderes. Para que a resolução referente às audiências de custódia tivesse obedecesse aos princípios constitucionais do nosso ordenamento jurídico, seria essencial que fosse lei criada e aprovada pelo Congresso Nacional, enquanto componente do Poder Legislativo.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Decreto N˚ 592, de 6 de julho de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decre

to/1990-1994/d0592.htm. Acesso em 10 ago. 2019.

_______. Decreto N˚ 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decre

to/d0678.htm. Acesso em 10 ago. 2019.

_______. Código Penal (1940). Decreto-lei 2848/41. Rio de Janeiro, RJ, 7 de dezembro 1940.

_______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

_______. BRASIL. ADI 5240/SP, rel. Min. Luiz Fux, 20.8.2015. (ADI-5240).

_______. ADI 3.367, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 13.04.2005, DJ de 22.09.2006

_______. RESOLUÇÃO 213, DE 15 DE DEZEMBRO DE 2015. Dispõe sobre a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no prazo de 24 horas. Disponível em https://www.conjur.com.br/dl/resolucao-audiencias-custodia-cnj.pdf. Acesso em 11 ago. 2019.

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Os Sistemas Regionais de Proteção dos Direitos Humanos. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 36ª ed. São Paulo. Malheiros, 2010.

PAIVA, Caio. Audiência de custódia e o processo penal brasileiro. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.

VALADARES, Antônio Carlos. PLS 554/11. Senado Federal. Brasília. Disponível em http://legis.senado.leg.br/mateweb/arquivos/mate-pdf/184798.pdf.  Acesso em 12 ago. 2019.

[1] Graduando do Curso Superior de Direito pelo Centro Universitário Luterano de Manaus – CEULM/ULBRA.

[2] Especialista em Práticas Educacionais Comunitárias pela Faculdade EST, Brasil.

Continuar lendo
Click to comment

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Artigos

O Vilipêndio ao Cadáver na Era Digital

Redação Direito Diário

Publicado

em

vilipêndio ao cadáver

Vilipêndio a cadáver é um crime que reflete a relação da sociedade com a dignidade humana, mesmo após a morte. Desde tempos antigos, civilizações atribuem um valor sagrado aos rituais fúnebres e ao corpo dos falecidos, entendendo que o respeito a esses aspectos é essencial para honrar não só a memória dos mortos, mas também a paz e a moral dos vivos.

Assim, leis surgiram para proteger essa dignidade, garantindo que o corpo e o descanso do falecido sejam preservados de qualquer ataque ou tratamento desrespeitoso. Vamos entender um pouco mais sobre isso.

Veja mais: Direito Digital e LGPD: livros para ficar por dentro em 2024

Abordagem histórica do vilipêndio ao cadáver

O sentimento que o homem tem em relação aos seus pares atravessou os séculos, gerações e a seleção natural. É uma característica intrínseca ao homo sapiens a capacidade de se afeiçoar aos outros de sua mesma espécie, permitindo que laços sejam criados como forma de facilitar a convivência em sociedade.

É por meio dele que se constroem os pilares das relações humanas, que vão guiar os homens por toda a vida e permitir que eles se unam com base tanto pela relação sanguínea quanto pela afetiva.

Esse sentimento não desparece após a morte de um ente querido, pelo contrário. Não são raras às vezes em que a dor da perda é responsável por unir e aproximar. O ritual fúnebre é a forma pelo qual as pessoas se despedem e isso é característica de todos os povos, independente de raça ou religião.

É nesse momento em que se cultua sua memória, integridade, história e imagem, de forma que esses valores transcendam sua morte. Além de ser uma forma de preservar a imagem do morto, também é o meio encontrado para acalentar os familiares pela dor da perda, que é sempre inevitável.

O culto aos mortos é comum a quase todas as épocas e quase todos os povos, vindo da Grécia antiga o costume de guardar luto, acender velas, levar coroas e flores. Segundo relato de Freud, o luto é uma forma de sobrevivência. É a forma usada pelos os que sobrevivem para lidar com a perda de alguém que continuará a ser querido, mesmo que não se encontre mais presente junto aos demais.

Se cadáver é o corpo humano que viveu, então o respeito que se deve aos mortos é consequência da vida que eles tiveram, da sua memória e do que fizeram em vida.

Vilipêndio ao cadáver e o Direito

No sentido tanto de proteger tanto a memória do morto quanto preservar os seus familiares nesse momento delicado, o Código Penal traz, em seu Título V, os crimes contra o sentimento religioso e o respeito aos mortos.

O legislador uniu essas duas espécies de crimes em um só Título por conta da afinidade entre eles, já que o sentimento religioso e o respeito aos mortos consistem valores éticos e morais que se assemelham, posto que o tributo que se dá a eles advém de um caráter religioso que se propagou ao longo dos séculos, abordando, assim, o vilipêndio ao cadáver.

O artigo 212 do referido diploma legal apresenta a tipificação relacionada ao vilipêndio ao cadáver ou suas cinzas, cominando pena de detenção de um a três anos, além de multa. O bem jurídico tutelado nesse caso é o sentimento de respeito aos mortos, já que o de cujus não é considerado titular de direito.

Assim, tutelar esse direito possui um caráter social e por isso que o sujeito passivo dos crimes contra o respeito aos mortos também é o Estado, já que ele é a personificação da coletividade e tem a missão de protegê-la como um dos seus interesses primordiais. O vilipêndio ao cadáver, segundo Rogério Sanches da Cunha, em Manual de Direito Penal – Parte Especial. Ed Jus Povivm, 7ª Ed. P. 433, se define como:

É crime de execução livre, podendo ser praticado pelo escarro, pela conspurcação, desnudamento, colocação do cadáver em posições grosseiras ou irreverentes, pela aposição de máscaras ou de símbolos burlescos e até mesmo por meio de palavras; pratica o vilipêndio quem desveste o cadáver, corta-lhe um membro com propósito ultrajante, derrama líquidos imundos sobre ele ou suas cinzas (RT 493/362).

Assim, a tipificação legal do vilipêndio é clara em nosso ordenamento jurídico e não deixa margem para dúvidas quanto a sua interpretação. Todavia, com o advento da internet e da rápida disseminação de imagens e informações, o vilipêndio ao cadáver ganhou novas formas de ser praticada.

Vilipêndio ao cadáver no mundo digital

O compartilhamento de fotos e vídeos que claramente desrespeitam a imagem do morto se propaga de firma assombrosa pela rede mundial de computadores em questão de minutos. Em casos de acidentes ou crimes brutais, muitas vezes as imagens chegam às redes sociais antes mesmo que as autoridades policiais e locais sejam comunicadas do ocorrido.

Este fato acaba gerando empecilhos às investigações, já que na tentativa macabra de registrar o ocorrido, as pessoas acabam contaminando a cena do crime e, consequentemente, prejudicando as investigações, tudo em prol de um motivo injustificável.

Não se pode alegar, entretanto, que essa forma de cometer o vilipêndio ao cadáver é uma das mazelas do século XXI. Antigamente a prática já existia, mas como as informações não se propagavam tão rapidamente, as imagens eram armazenadas em disquetes ou CD’s e levavam anos para serem expostas.

Hoje, ao contrário, a facilidade com que os arquivos digitais podem ser compartilhados, copiados e propagados atropela as ponderações sobre o certo e errado, bem e mal, engraçado e depreciativo.

Não é raro o internauta se deparar com imagens de corpos completamente desfigurados, que circulam pelas redes sociais de forma incessante, em um claro desrespeito à memória do morto e ao sentimento de pesar da família.

Assim, a família, além de ter que lidar com a dor da perda, ainda precisa suportar a situação vexatória de ver imagens do ente querido expostas aos olhos do mundo. Um momento provado torna-se público da pior maneia possível, gerando traumas e danos de difícil reparação.

O vilipêndio ao cadáver que acontece por meio do compartilhamento das fotos ou vídeos, entretanto, apesar de ser fato atípico para o Direito Penal, se insere na seara do Direito Civil e gera ilícito, já que quem provoca dano a outrem é obrigado a repará-lo, conforme se depreende dos artigos 186 e 927 do Código Civil (BRASIL, 2002), os quais seguem transcritos:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

O dano em questão trata-se, no caso do vilipêndio, da situação vexatória que a família do morto sofre ao se deparar com fotos ou vídeos do ente querido sendo compartilhados indiscriminadamente como se fossem motivo de diversão aos olhos de um público que se satisfaz com o sofrimento alheio. Este é o motivo pelo qual a conduta de divulgar merece tanto repúdio quanto a de quem fornece as imagens.

Dessa forma, busca o Estado, na sua qualidade de protetor da sociedade, preservar a memória do morto e evitar a situação vexatória pela qual a família passa. Quando isso não se configura possível, deve o Estado reparar o sofrimento causado à família da vítima como forma de modelo corretivo para evitar que tais condutas continuem a ser praticadas.

A atitude de quem divulga e compartilha tais imagens é reprovada jurídica e socialmente, com punições para ambos os casos. Não é por a internet ser um território aparentemente livre e onde todos podem expor suas opiniões que os direitos perdem as suas garantias fundamentais, motivo pelo qual se torna necessário ponderar antes de compartilhar e facilitar a propagação de qualquer conteúdo, e em especial os que são visivelmente prejudiciais e vexatórios. As responsabilizações cíveis e criminais, dependendo da conduta, existem e são aplicadas, mas a maioria das pessoas infelizmente só dá conta disso quando já é tarde demais.

Responsabilidade Digital na Era da Informação: Como Pais, Educadores e Jovens podem ser Cidadãos Digitais Conscientes, Verdadeiros e Felizes

R$ 9,90  em estoque
Amazon.com.br
atualizado em 11 de fevereiro de 2025 13:51

Responsabilidade Civil do Estado e Tecnologia - 1ª Ed - 2024: Uma Releitura da Teoria do Risco Administrativo

R$ 144,00
R$ 136,74
 em estoque
9 novos a partir de R$ 86,40
frete grátis
Amazon.com.br
atualizado em 11 de fevereiro de 2025 13:51

Responsabilidade Civil No Direito Digital

R$ 64,97  em estoque
2 novos a partir de R$ 64,97
Amazon.com.br
atualizado em 11 de fevereiro de 2025 13:51

Responsabilidade Civil - Teoria Geral - 1ª Ed - 2024

R$ 494,00
R$ 279,42
 em estoque
5 novos a partir de R$ 279,42
frete grátis
Amazon.com.br
atualizado em 11 de fevereiro de 2025 13:51

Manual de Direito Penal - Volume Único

R$ 400,00
R$ 345,00
 em estoque
4 novos a partir de R$ 345,00
Amazon.com.br
atualizado em 11 de fevereiro de 2025 13:51

Especificações

  • Livro

Manual de Direito Civil - Vol. Único

R$ 383,00
R$ 243,00
 em estoque
10 novos a partir de R$ 243,00
frete grátis
Amazon.com.br
atualizado em 11 de fevereiro de 2025 13:51

Especificações

  • Livro

Referências:

BRASIL. Código Penal Brasileiro (1940). Código Penal Brasileiro. Brasília, DF, Senado, 1940.
BRASIL. Código Civil Brasileiro (2002). Código Civil Brasileiro. Brasília, DF, Senado, 2002.
SOUZA, Gláucia Martinhago Borges Ferreira de.  A era digital e o vilipêndio ao cadáver. Disponível em: <http://gaumb.jusbrasil.com.br/artigos/184622172/a-era-digital-e-o-vilipendio-a-cadaver>. Acesso em 05 de janeiro de 2016.
CUNHA, Rogério Sanches da. Manual de Direito Penal – Parte Especial. Ed Jus Povivm, 7ª Ed. P.433
Image by Dorothée QUENNESSON from Pixabay

Continuar lendo

Artigos

A Convenção de Nova York e a necessidade de atualizações

Redação Direito Diário

Publicado

em

A Convenção de Nova York foi instituída em 1958 e, desde aquela época, o seu texto não foi modificado de forma direta. Somente em 2006 foi reunida uma Assembleia Geral que emitiu um documento explicitando como deveria ser a interpretação de alguns dispositivos jurídicos deste tratado à luz do desenvolvimento tecnológico das últimas décadas.

Esta atualização, entretanto, em nenhum momento fez menção ao artigo 1º da Convenção de Nova York, sendo este justamente o dispositivo jurídico que impediria a aplicação deste tratado para as sentenças arbitrais eletrônicas. Alguns defendem que este acordo não necessitaria de atualizações. Na verdade, o que seria mandatório era a instituição de uma nova convenção voltada exclusivamente para a arbitragem eletrônica.

Apesar da clara dificuldade de este acordo vir a ser elaborado, e da esperada demora para que a convenção venha a ser reconhecida amplamente na comunidade internacional, a Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional tem defendido essa tese para as arbitragens envolvendo relações consumeristas. Em 2013, este órgão internacional publicou um documento em que defendia essa posição:

The Working Group may also wish to recall that at its twenty-second session, albeit in the context of arbitral awards arising out of ODR procedures, it considered that a need existed to address mechanisms that were simpler than the enforcement mechanism provided by the Convention on the Recognition and Enforcement of Foreign Arbitral Awards (New York, 1958), given the need for a practical and expeditious mechanism in the context of low-value, high-volume transactions.1

Pode-se perceber, portanto, que esta não é a solução que melhor se alinha com o pleno desenvolvimento da arbitragem eletrônica na seara internacional. O melhor, portanto, seria atualizar o art. 1º da Convenção de Nova York para que o mesmo passe a abranger o processo arbitral eletrônico.

Outro artigo da Convenção de Nova York que necessita de atualização é a alínea d do seu artigo 5º, que assim estipula:

Article V. Recognition and enforcement of the award may be refused, at the request of the party against whom it is invoked, only if that party furnishes to the competent authority where the recognition and enforcement is sought, proof that:

(…)

(d) The composition of the arbitral authority or the arbitral procedure was not in accordance with the agreement of the parties, or, failing such agreement, was not in accordance with the law of the country where the arbitration took place;2

 No âmbito da arbitragem eletrônica, caso as partes não tenham definido como o procedimento será regulado, pode ser muito difícil discernir se o processo arbitral esteve de acordo com a lei do local da arbitragem. Afinal, conforme tratou-se em outra parte deste trabalho, a definição desta pode ser extremamente dificultosa.

Logo, na prática jurídica, a solução mais viável atualmente seria obrigar as partes de um processo arbitral eletrônico a sempre definirem da maneira mais completa possível como a arbitragem irá proceder.

Esta obrigatoriedade pode prejudicar a popularidade daquela, pois, com isso, cria-se mais uma condição para que este tipo de processo venha a ocorrer de modo legítimo, dificultando, pois, a sucessão do mesmo. Apesar disso, esta solução seria a que causaria menos dano para a arbitragem eletrônica no âmbito internacional.

Além disso, a Lei-Modelo da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional estipula em seu artigo 20:

Article 20. The parties are free to agree on the place of arbitration. Failing such agreement, the place of arbitration shall be determined by the arbitral tribunal having regard to the circumstances of the case, including the convenience of the parties.3

 Logo, segundo esta lei-modelo, é perfeitamente cabível às partes escolherem o local em que o processo arbitral ocorrerá, havendo, portanto, a aplicação do que parte da doutrina chama de forum shopping, ou seja, a escolha do foro mais favorável por parte do autor (Del’Olmo, 2014, p. 398).

É válido ressaltar, ainda, que a lei-modelo da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional serve como base para a lei de arbitragem de mais de 60 países, estando presente em todos os continentes (Moses, 2012, p. 6-7). Com isso, demonstra-se que a necessidade da escolha do local do processo arbitral eletrônico estaria de acordo com o atual estágio de desenvolvimento da arbitragem internacional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
BROWN, Chester; MILES, Kate. Evolution in Investment Treaty Law. 1ª ed. London: Cambridge University Press, 2011; 
DEL’OLMO, F. S. Curso de Direito Internacional Privado. 10.ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
EMERSON, Franklin D. History of Arbitration Practice and Law. In: Cleveland State Law Review. Cleveland,vol. 19,  nº 19, p. 155-164. Junho 1970. Disponível em: <http://engagedscholarship.csuohio.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=2726&context=clevstlrev>  Acesso em: 18. mar. 2016.

 GABBAY, Daniela Monteiro; MAZZONETTO, Nathalia ; KOBAYASHI, Patrícia Shiguemi . Desafios e Cuidados na Redação das Cláusulas de Arbitragem. In: Fabrício Bertini Pasquot Polido; Maristela Basso. (Org.). Arbitragem Comercial: Princípios, Instituições e Procedimentos, a Prática no CAM-CCBC. 1ed.São Paulo: Marcial Pons, 2014, v. 1, p. 93-130 
GRINOVER, Ada Pellegrini; CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 25ª ed.  São Paulo: Malheiros, 2009.

HERBOCZKOVÁ, Jana. Certain Aspects of Online Arbitration. In: Masaryk University Law Review. Praga, vol. 1, n. 2, p. 1-12. Julho 2010. Disponível em: < http://www.law.muni.cz/sborniky/dp08/files/pdf/mezinaro/herboczkova.pdf> Acesso em 19. mai. 2016; 
HEUVEL, Esther Van Den. Online Dispute Resolution as a Solution to Cross-Border E-Disputes an Introduction to ODR. OECD REPORT. Paris, vol. 1. n. 1. p. 1-31. Abril de 2003. Disponível em: <www.oecd.org/internet/consumer/1878940.pdf>  Acesso em: 10 abril. 2016; 
KACKER, Ujjwal; SALUJA, Taran. Online Arbitration For Resolving E-Commerce Disputes: Gateway To The Future. Indian Journal of Arbitration Law. Mumbai, vol. 3. nº 1. p. 31-44. Abril de 2014. Disponível em: < http://goo.gl/FtHi0A > Acesso em 20. mar. 2016;

Continuar lendo

Artigos

O que é uma Associação Criminosa para o Direito em 2024

Redação Direito Diário

Publicado

em

associação criminosa

A associação criminosa, no direito brasileiro, é configurada quando três ou mais pessoas se unem de forma estável e permanente com o objetivo de praticar crimes. Esse tipo de associação não se refere a um crime isolado, mas à criação de uma organização que visa à prática de atividades ilícitas de maneira contínua e coordenada.

Veja-se como está disposto no Código Penal, litteris:

Art. 288.  Associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.  

Parágrafo único.  A pena aumenta-se até a metade se a associação é armada ou se houver a participação de criança ou adolescente.

Elementos Característicos da Associação Criminosa

Em primeiro lugar, para configurar a associação criminosa, é necessário que haja a participação de, no mínimo, três pessoas. Se o grupo for formado por apenas duas pessoas, pode caracterizar-se como “concurso de pessoas” em vez de associação criminosa.

Outro aspecto essencial para que seja possível a tipificação é que a associação criminosa deve ter como finalidade a prática de crimes. A existência de um propósito comum e a estabilidade do grupo são fundamentais para a configuração do delito.

Além disso, diferente da mera coautoria em um crime específico, a associação criminosa exige uma relação contínua e duradoura entre os membros, com a intenção de cometer crimes de forma reiterada.

Concurso de Pessoas, Organização Criminosa e Associação Criminosa

É importante diferenciar a associação criminosa de outros crimes semelhantes, como o crime de organização criminosa, previsto na Lei nº 12.850/2013.

A organização criminosa, além de exigir um número maior de participantes (mínimo de quatro pessoas), envolve uma estrutura organizada, com divisão de tarefas e objetivo de praticar crimes graves, especialmente aqueles previstos no rol da lei de organizações criminosas.

No caso da associação criminosa, como já observamos, não é necessário uma organização minuciosa, bastando um conluio de pessoas que tenham por objetivo comum a prática de crimes de maneira habitual.

Ademais, outra importante diferença que possa ser apontada entre o crime de associação criminosa e concurso de pessoas; é que na associação criminosa pouco importa se os crimes, para os quais foi constituída, foram ou não praticados.

Além do vínculo associativo e da pluralidade de agentes, o tipo requer, ainda, que a associação tenha uma finalidade especial, qual seja, a de praticar crimes, e para a realização do tipo não necessitam serem da mesma espécie. Insista-se, os crimes, para que se aperfeiçoe o tipo, não necessitam que tenham sido executados, haja vista que a proteção vislumbrada pelo tipo é a da paz pública.

Para o Superior Tribunal de Justiça, é essencial que seja comprovada a estabilidade e a permanência para fins de caracterização da associação criminosa, veja-se:

AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE DROGAS. ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE. VÍNCULO ASSOCIATIVO ESTÁVEL E PERMANENTE NÃO DEMONSTRADO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.

1. De acordo com a jurisprudência desta Corte Superior, para a subsunção do comportamento do acusado ao tipo previsto no art. 35 da Lei n. 11.343/2006, é imperiosa a demonstração da estabilidade e da permanência da associação criminosa.

2. Na espécie, não foram apontados elementos concretos que revelassem vínculo estável, habitual e permanente dos acusados para a prática do comércio de estupefacientes. O referido vínculo foi presumido pela Corte estadual em razão da quantidade dos entorpecentes, da forma de seu acondicionamento e do tempo decorrido no transporte interestadual, não ficando demonstrado o dolo associativo duradouro com objetivo de fomentar o tráfico, mediante uma estrutura organizada e divisão de tarefas.

3. Para se alcançar essa conclusão, não é necessário o reexame do conjunto fático-probatório constante dos autos, pois a dissonância existente entre a jurisprudência desta Corte Superior e o entendimento das instâncias ordinárias revela-se unicamente jurídica, sendo possível constatá-la da simples leitura da sentença condenatória e do voto condutor do acórdão impugnado, a partir das premissas fáticas neles fixadas.

4. Agravo regimental desprovido.
(AgRg no HC n. 862.806/AC, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 19/8/2024, DJe de 22/8/2024.)

Interessante observar um pouco mais sobre as diferenças entre organizações criminosas e associações criminosas aqui.

Associação Criminosa - Sentido e Validade dos Crimes Associativos

R$ 161,00
R$ 128,73
 em estoque
8 novos a partir de R$ 90,00
frete grátis
Amazon.com.br
atualizado em 10 de fevereiro de 2025 22:13

Outros Aspectos Importantes

O art. 8° da Lei 8.072/90 prevê uma circunstância qualificadora, que eleva a pena de reclusão para três a seis anos, quando a associação visar a prática de crimes hediondos ou a eles equiparados.

Importante, ainda, não confundir o crime previsto no Código Penal com o estipulado na Lei de Drogas (Lei n. 11.343/2006) e na Lei n. 12.830/13 (art. 1º, parágrafo 2º). A Lei 11.343/2006, no seu art. 35, pune com reclusão de 3 a 1 0 anos associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, o tráfico de drogas (art. 33) ou de maquinários (art. 34). Nas mesmas penas incorre quem se associa para a prática reiterada do crime definido no art. 36 (financiamento do tráfico).

A Lei n° 12.850/13 define, em seu art. 1 °, § 2°, a organização criminosa como sendo a associação de quatro ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos, ou que sejam de caráter transnacional.

No art. 2°, referida Lei pune, com reclusão de três a oito anos, e multa, as condutas de promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa.

Por fim, como já foi dito, é imprescindível observar com atenção cada uma das elementares típicas dos crimes aqui narrados. O art. 288 traz uma previsão geral para o crime de associação criminosa, enquanto que nos demais tipos da legislação esparsa vislumbra-se a aplicação específica em situações peculiares, ainda que possam guardar semelhanças, esses são tipos que possuem elementares diversas.

Importante atentar-se sempre para o princípio da especialidade e as situações fáticas de cada caso concreto para que se amolde ao tipo penal mais adequado.

Não esqueçamos que o bem jurídico tutelado pelo tipo do art. 288 do CP é a paz pública. A pena cominada ao delito admite a suspensão condicional do processo (Lei 9.099/95). A ação penal será pública incondicionada.

Manual de Direito Penal - Volume Único

R$ 400,00
R$ 345,00
 em estoque
4 novos a partir de R$ 345,00
Amazon.com.br
atualizado em 10 de fevereiro de 2025 22:13

Especificações

  • Livro

Manual de Direito Penal - Parte Especial - Volume único

R$ 199,90
R$ 179,90
 em estoque
3 novos a partir de R$ 179,90
Amazon.com.br
atualizado em 10 de fevereiro de 2025 22:13

Organizações e Associações Criminosas

R$ 30,00  em estoque
3 novos a partir de R$ 30,00
Amazon.com.br
atualizado em 10 de fevereiro de 2025 22:13

REFERÊNCIAS: 
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa – 13. ed. rec., ampl. e atual. de acordo com as Leis n. 12.653, 12.720, de 2012 – São Paulo, Saraiva, 2013, 537 p.
Image by Ryan McGuire from Pixabay

Continuar lendo

Trending

Direito Diário © 2015-2024. Todos os direitos reservados.