A Megera Domada de Shakespeare no direito das obrigações

O Direito está inserido dentro da realidade das relações humanas. Quando colocado no contexto social e jurídico dessas relações, o homem estabelece valores a tudo aquilo que está presente ao seu redor. A relação jurídica surge exatamente por conta desses valores.

Inicialmente, o Direito das Obrigações em si não existia, o mesmo surgiu das relações jurídicas relacionadas a negociações e comércios. Somente no Direito Romano que nos deparamos com um Direito Obrigacional mais elaborado, no qual existe uma ligação entre credor e o devedor. Porém, existia a possibilidade de o devedor responder o cumprimento da obrigação com o próprio corpo, o que tornava-o comprometido e dava poder total ao credor com relação ao contrato estabelecido entre ambos. Além disso, o formalismo excessivo predominava perante a manifestação de vontade. Somente em 428 a.C. que essa execução a cerca do devedor foi revogada pela Lex Poetelia Papiria. Essa mudança também fez com que o formalismo primitivo desse espaço à manifestação de vontade.

Até os tempos atuais, o Direito das Obrigações evoluiu ainda mais, equilibrando os direitos do devedor com os direitos do credor. O direito das obrigações é um complexo de normas, as quais são serventia para reger as relações jurídicas de ordem patrimonial, contendo nessas relações uma prestação de um sujeito com relação a outro. Ou seja, o direito obrigacional surgiria da existência de uma dívida que alguém tem para com outro.

Será aqui tratado, mais especificamente, uma situação na qual ocorre uma celebração de contrato entre dois personagens de uma das obras de William Shakespeare.

“A Megera Domada” é uma comédia escrita pelo dramaturgo inglês William Shakespeare. A peça se passa na cidade de Pádua, situada no nordeste da Itália, e narra a história de Catarina, uma das filhas do senhor Batista Minola. O senhor Batista é um viúvo de grande fortuna que tem duas belas filhas, as jovens Catarina e Bianca. Catarina, a primogênita, é vista por todos como uma fera indomável, daí o título da obra, ela é uma pessoa de gênio difícil, inflexível e brava; enquanto que Bianca, a mais nova, é meiga, doce e gentil.

Devido a fama de boa moça, diferentemente de sua irmã mais velha, Bianca atrai muitos pretendentes que gostariam de casar-se com ela, contudo, para o azar de todos eles, o pai das jovens decide seguir a tradição de casar a filha mais velha primeiro. Sendo que Catarina não demonstra interesse em casamento e dificilmente aparecem pretendentes para a “diaba”, por esta ser tão insolente. A fim de atingir o desejo de casar-se com a bela Bianca, os pretendentes Grêmio e Hortênsio iniciam, separadamente, uma busca para encontrar alguém que aceite encarar o desafio de desposar a fera da irmã mais velha.

Eis que, no desenrolar da trama, Hortêncio encontra um velho amigo chamado Petrúquio que parece estar disposto a enfrentar a empreitada de desposar a primogênita de Batista, pois, ao perguntar sobre a possibilidade de tal ato, Petrúquio respondeu-lhe: “Vim arranjar em Pádua um casamento rico: se o casamento é rico, estou feliz em Pádua.” Mesmo depois de ser alertado por Hortêncio da fama de Catarina em toda a cidade de Pádua, Petrúquio decide encontrar-se com Batista. Os dois conversam e o pai da megera informa Petrúquio sobre o dote que receberá caso venha a desposar sua filha. Assim, depois de conhecê-la, Petrúquio não teme seu mau gênio, pois já tem em mente o que fará para “domá-la”.

A relação jurídica encontrada na obra shakespeariana que está voltada para o Direito das Obrigações é o contrato celebrado entre Petrúquio e Batista relacionado ao dote de Catarina. Segue a celebração do contrato:

Petrúquio: Signior Batista, meu negócio me toma o tempo todo e não posso vir diariamente aqui, fazer corte a sua filha. O senhor conheceu bem meu pai e, por conhecer meu pai, conhece a mim, herdeiro de todos os seus bens e terras, heranças que não esbanjei, antes ampliei. Diga-me então; se eu conseguir o amor de Catarina, que dote receberei quando casar com ela?

Batista: Quando eu morrer, metade destas terras e, no momento, vinte mil coroas.

Petrúquio: Bem. E em troca eu asseguro que, se ela enviuvar, sobrevivendo a mim, ficará com todas as minhas terras e mais arrendamentos. Redigiremos, pois, um contrato, afim de que esta combinação fique garantida para ambas as partes.

Batista: Sim, quando for conseguida a coisa principal, ou seja, o amor de minha filha: pois isso é, afinal, o tudo do total.

Com este trecho da obra, é possível observar a forma como o contrato foi celebrado, assim como as cláusulas contratuais a serem cobradas para a satisfação da dívida. Compreende-se, então, que a obrigação em questão é uma obrigação condicional.

A obrigação condicional ocorre quando o efeito do negócio está subordinado a uma condição para que possa produzir efeitos. Ou seja, o negócio somente produzirá efeitos a depender de um futuro incerto, que poderá ou não ocorrer. (GONÇALVES).

No artigo 121 do Código Civil está disposto o seguinte: “Considera-se condição a cláusula que, derivando exclusivamente da vontade das partes, subordina o efeito do negócio jurídico a evento futuro e incerto.” A condição deve ser necessariamente um evento futuro, pois, caso a condição já tiver ocorrido ou esteja ocorrendo ao tempo da celebração do negócio, não existirão circunstâncias que poderão modificar os efeitos deste negócio, tornando a obrigação pura e simples. Esse evento deverá ser de futuro incerto, pois não é admissível que se estabeleça, como cláusula condicional da obrigação, um evento futuro certo, já que dessa forma o que se terá é uma obrigação a termo. A obrigação não existe quando ainda está subordinada a condição acordada entre as partes, assim, o credor não pode exigir o seu cumprimento, pois o que ele possui é um direito eventual.

Na obra de Shakespeare, fica clara que há uma condição para que a relação obrigacional possa produzir efeitos jurídicos. O personagem de Batista Minola expressa de forma explícita e clara para Petrúquio que ele deverá conseguir o “sim” de Catarina para receber o dote. Nas palavras de Batista: “Sim, quando for conseguida a coisa principal, ou seja, o amor de minha filha: pois isso é, afinal, o tudo do total.” Ou seja, a condição para que Petrúquio venha a receber o dote é casar-se com a filha mais velha de Batista. Como não é possível saber se Petrúquio terá sucesso na sua empreitada de conseguir convencer Catarina a casar-se com ele, este é um evento futuro incerto e condição necessária para que a obrigação gere efeitos.

Ocorre ainda uma segunda obrigação na situação apresentada. Quando Batista determina as condições da prestação do dote, Petrúquio lhe diz “E em troca eu asseguro que, se ela enviuvar, sobrevivendo a mim, ficará com todas as minhas terras e mais arrendamentos.” Aqui ocorre uma obrigação condicional que surge da obrigação já mencionada. Casando-se com Catarina, Petrúquio terá direito ao dote, e, caso venha a falecer antes da mesma, deixando-a viúva, todo o seu patrimônio irá para ela, como estabelecido pelo próprio Petrúquio.

A cláusula que subordina os efeitos desse ato jurídico é que Petrúquio venha a falecer antes de Catarina, este evento futuro é incerto, pois, mesmo que seja de conhecimento de todos que Petrúquio irá, de fato, falecer algum dia, a condição é que isto aconteça antes de alguém especificado no contrato, sua mulher Catarina.

Para que a primeira obrigação se resolva, é necessário o acontecimento do casamento entre Petrúquio e Catarina, pois esta é a cláusula que subordina o efeito do ato jurídico. Somente haverá obrigação, se houver casamento, é uma condição para a eficácia do negócio jurídico. Para a extinção da segunda obrigação, aquela na qual os bens de Petrúquio possam ficar para Catarina, é necessário que ele venha a falecer antes de sua mulher. Esta terá direito aos bens daquele, como acordado entre Petrúquio e Batista ao tempo da celebração do negócio.

A obrigação condicional somente irá gerar efeitos quando a cláusula, a qual a obrigação está subordinada, que foi estabelecida entre as partes, vier a acontecer. Uma vez ultrapassada esta condição, o direito do credor deixa de ser eventual e o devedor passa ter a obrigação de cumprir com a prestação anteriormente acordada.

REFERÊNCIAS

 BARROS, Washington Monteiro de. Curso de Direito Civil – Vol. 04. São Paulo: Saraiva – 2008.

BRASIL. Código Civil: Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Brasília: Câmara dos deputados, Edições Câmara – 2012.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Vol. 02. São Paulo: Saraiva, 2003.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil – Obrigações. Volume 2. Saraiva. 13ª Edição – 2012.

GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito civil: Obrigações. São Paulo: Atlas, 2008.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Sinopses Jurídicas - Direito das Obrigações (Parte Geral). Volume 5. Editora Saraiva. 8ª Edição - 2007.

MELO, Marcelo A. V. de. O mercador de Veneza e as obrigações. 24 de janeiro de 2010. Disponível em: < http://marceloavmelo.blogspot.com.br/2010/01/o-mercador-de-veneza-e-as-obrigacoes.html> Acesso em: 03 de novembro de 2012.

MENEZES, Rafael de. Aula 09 - Direito Civil 2 - Unicap - Modalidades de obrigações (continuação). Disponível em: <http://rafaeldemenezes.adv.br/assunto/Direito-das-Obrigacoes/4/aula/9> Acesso em: 03 de novembro de 2012.

ROSA JÚNIOR, Faustino da. As modalidades de obrigações no direito civil brasileiro: comentários acerca das normas previstas no Código Civil acerca das obrigações. JurisWay em 11/3/2011. Disponível em: <http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=5540> Acesso em: 03 de novembro de 2012.

SHAKESPEARE, William. A Megera Domada. Tradução Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2010.
Teremos o maior prazer em ouvir seus pensamentos

Deixe uma Comentário

Direito Diário
Logo