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Aborto, zika vírus e microcefalia. Vamos conversar?

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 por Ingrid Carvalho
Após quatro anos do julgamento da ADPF 54 – que levou o STF a apreciar a questão do aborto de fetos anencefálos, buscando uma interpretação do Código Penal (CP) conforme a Constituição e sem redução de texto, deixando o fato de constituir o crime de aborto capitulado pelo Código Penal – o tema parece ganhar destaque novamente com o possível surto dos casos de microcefalia no país.
O Código Penal brasileiro, ao tipificar como crime a conduta tendente à interrupção da gravidez antes de seu tempo normal, com ou sem a expulsão do feto, espontâneo ou provocado (aborto), protege a vida humana em sua fase mais prematura, incipiente, de formação embrionária (do feto).
O que se preserva a título constitucional é a garantia fundamental à vida (CF, art. 5º, caput), ainda que esta se apresente sob formação, em potencial constitutivo de personalidade. Essa proteção é solidificada pelo constituinte originário e não poderá ser abolida ou diminuída ainda que por via de emenda à Constituição (CF, art. 60, p.4, IV).
Note-se, porém, que o próprio CP traz hipóteses especiais de excludentes da ilicitude para o referido crime (CP, art.128, I e II). Estas possibilidades abrangem o aborto necessário ou terapêutico que na lição de Cezar Roberto Bitencourt (2013, 174) é compreendido como aquele em que se encontra, simultaneamente, a ameaça à vida da gestante e a insuficiência de outro meio para salvá-la, senão com a realização do aborto.
A segunda hipótese abarcada pelo CP é a do aborto humanitário ou ético, quando a gravidez resulta de situação atentatória à dignidade sexual da mulher, que é o caso de gestação decorrente de estupro.
As observações introdutórias, apontadas acima, são apenas para que compreendamos com maior facilidade a discussão que pretendemos tomar doravante. As questões analisadas a partir de agora são aquelas indagações que envolvem uma série de preceitos éticos, jurídicos, religiosos, sociais, morais ou emocionais.
O tema e suas possíveis complicações foram amplamente discutidos pelo Supremo Tribunal Federal em sede de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54).
Na oportunidade o STF julgou procedente, nos termos do voto do Ministro Marco Aurélio (Relator), o pedido formulado na inicial, para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, do Código Penal.
O eminente Ministro destacou, na concessão de medida liminar, que “a vida é um bem a ser preservado a qualquer custo, mas, quando a vida se torna inviável, não é justo condenar a mãe a meses de sofrimento, de angústia, de desespero”1 (Grifo nosso).
O aborto de fetos anencéfalos já é uma questão pacificada pelo Supremo, conforme demonstrado, ocorre que justamente essa decisão é base para uma nova discussão. Seria possível também permitir o aborto para casos em que o nascituro fosse acometido com a microcefalia?
A médica obstetra brasileira Suzanne Serruya – nomeada, desde janeiro, chefe da área de microcefalia criada em esquema de urgência na Organização Mundial da Saúde (OMS) – em entrevista à Revista ÉPOCA afirmou que a disseminação rápida da contaminação com o zika vírus e sua relação com os casos de microcefalia torna impreterível a discussão sobre o aborto.
Questionada se em casos de infecção pelo zika o aborto deveria ser permitido legalmente, a médica defendeu que:
Os casos de zika vão pressionar o debate sobre os direitos reprodutivos. A interrupção da gravidez, em qualquer situação, é uma decisão da mulher. […] Enfrentar a discussão do aborto é inevitável, com tudo que ela traz. A interrupção da gestação é uma questão de saúde pública, envolve morte materna.
O alto comissário da ONU para Direitos Humanos, Zeid Ra’ad Al Hussein, também se manifestou sobre a questão, ressaltando que a defesa aos direitos humanos das mulheres é crucial em uma resposta imediata as complicações trazidas pelo vírus zika. O chefe de Direitos Humanos das Nações Unidas afirmou ainda que:
Serviços integrais de saúde sexual e reprodutiva devem ser garantidos a todas as pessoas, sobretudo às mulheres – como a contracepção (incluindo a de emergência), cuidados de saúde materna e serviços de aborto seguro em todo o alcance da lei. Muitas da questões-chave têm a ver com a falta de capacidade dos homens em garantir os direitos das mulheres e das meninas.
Os números mais recentes apontados pelo Ministério da Saúde indicam que, dos mais de quatro mil casos suspeitos de microcefalia notificados, 270 foram confirmados e 460 descartados. O combate ao mosquito transmissor virou prioridade da saúde pública no Brasil e nos EUA, tendo sido, neste último país, diagnosticadas 24 pessoas com o zika vírus, todas infectadas no exterior.
Toda essa preocupação motivou, segundo informações da BBC Brasil, um grupo de advogados, acadêmicos e ativistas – o mesmo que fez parte da articulação da discussão sobre aborto de fetos anencéfalos no Supremo Tribunal Federal, acatada em 2012 – a prepararem uma ação similar para pedir ao STF o reconhecimento do direito ao aborto em gestações de bebês com microcefalia.
Justamente por isso o debate sobre a ampliação das hipóteses de desqualificação do aborto como crime tendem a ser retomadas. Como foi destacado quando se fez menção ao voto do Ministro Marco Aurélio na ADPF 54, a inviabilidade da vida extrauterina foi crucial para a permissão do aborto legal nos casos de gestações de anencéfalos.
Como apontado pelo Pleno durante a discussão da Arguição, a anencefalia consiste:
[…] em uma malformação do tubo neural, caracterizando-se pela ausência parcial do encéfalo e do crânio, resultante de defeito no fechamento do tubo neural durante a formação embrionária. O anencéfalo, tal qual o morto cerebral, não tem atividade cortical, embora apresente respiração e batimento cardíaco. Letal, quando o diagnóstico é correto, a anencefalia exclui toda e qualquer potencialidade de vida em 100% dos casos. Quem não tem cérebro não tem vida. Resultado: a anencefalia é incompatível com a vida. O anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. Não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura. O fato de respirar e ter batimento cardíaco não altera essa conclusão, até porque a respiração e o batimento cardíaco não excluem o diagnóstico de morte cerebral2.
Isso a difere totalmente da microcefalia. Enquanto uma inviabiliza por completo a possibilidade de vida, a outra caracteriza-se pela redução do perímetro da cabeça (de acordo com padrões estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde – OMS) podendo causar, dentre outras consequências, o atraso no desenvolvimento neurológico, psíquico e/ou motor.
Para elaboração do presente artigo, este autor entrou em contato com Lucélia Maria Freitas, administradora de uma página3 no Facebook que orienta mães de crianças com microcefalia. Lucélia é mãe de uma criança microcefálica, o filho dela tem hoje 14 anos de idade. O problema do filho de Lucélia não está relacionando com o vírus zika. Para ela, receber o comunicado do diagnóstico da microcefalia foi algo assustador, a falta de informação concreta sobre como lidar com a situação dificulta a sua aceitação, nas suas palavras:
Ao receber o diagnóstico sempre é assustador, pelo fato de não saber como lidar com a situação, por não ter informações suficientes para compreender melhor a patologia. Não estamos preparados para cuidar de uma criança com limitações e isso é sim algo que nos amedronta a ponto de muitas famílias desistirem por pensar que não conseguirão. A aceitação é o primeiro passo e a troca de experiências com outras mães e familiares.
Questionada sobre qual a sua opinião frente a possibilidade de permissão do aborto em casos de microcefalia, Lucélia disse que esse tipo de proposta representa uma ofensa para quem acolhe o filho independente das suas limitações.
Meu filho sorri, chora, come, ouve música, ver (sic) TV, brinca do jeito dele, passeia etc., nada é diferente de qualquer outra criança, apenas suas limitações, mas essas começam a serem superadas quando eles são aceitos e inclusos, começando da própria família. Então em nenhum momento pensei em aborto – disse Lucélia.
A informação foi apontada por Lucélia como aspecto fundamental para conviver com a microcefalia. A execução correta do tratamento que envolve terapias e estímulos faz com que a criança desenvolva a cada dia novas habilidades, para a mãe “as limitações de seu filho não o torna menos vivo do que ela”.
Considerando estas objeções, não parece razoável compreender o aborto em casos de microcefalia no rol de otimização do direito constitucional a preservação da vida. Nesse sentido:
Por exemplo: nascituros portadores de deficiências físicas, de enfermidades psíquicas, de deformações corporais não podem ser submetidos ao aborto, porque se estaria permitindo que os pais e os médicos empreendessem uma espécie de seleção natural. Aqui sim a norma que consagra o princípio constitucional do direito à vida seria flagrantemente desrespeitada (CF, art. 5ª, caput), colocando em xeque os vetores da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º lII) e da isonomia (CF, art. 5º, caput). O mesmo se diga quanto ao aborto praticado para impedir o estado de hipossuficiência da gestante (aborto social ou econômico) e do aborto realizado em virtude de gravidez extraconjugal (aborto honoris causa)4.
Óbvio é que a autonomia da vontade e a consequente garantia do direito de decidir da mulher devem ser preservados, sendo da competência do Estado apenas informar e prestar o devido apoio médico e psicológico – conforme o texto da “Convenção de Belém do Pará”5.
Todavia, deve ser observado o princípio da proporcionalidade e a proeminência do direito à vida sobre a autonomia da vontade. Não se pode cogitar no chamamento às garantias constitucionais de se tutelar apenas um dos sujeitos da relação.
Portanto, o feto acometido de microcefalia, sendo comprovado na grande maioria dos casos a possibilidade de vida em condições amplamente viáveis, não pode ter seu direito de viver cerceado. Conclui-se, então, que esse tipo de aborto está normalmente tipificado pelos arts. 124, 125 e 126 do CP, não encontrando guarita nas hipóteses de exclusão da ilicitude do art. 128, incisos I e II, do mesmo diploma.
No aspecto constitucional, de tudo que se falou, é conclusivo sustentar que não se pode cogitar pela admissão desse tipo de aborto, pelo menos nos atuais parâmetros de que se tem conhecimento da potencialidade da microcefalia, seria flagrantemente atentatório ao direito à vida, pois ainda que com deficiências físicas e/ou neurológicas o feto não pode simplesmente ser desqualificado, descartado, como se pretendesse realizar uma verdadeira espécie de seleção natural.
Como ficou claro neste artigo, não se vislumbra defender que a garantia do caput do art. 5º é absoluta, como também não são todas as demais, porém é preciso interpretá-las com respeito as margens da razoabilidade e proporcionalidade. Quanto ao Estado, cabe a este viabilizar mecanismos fortes e eficazes em forma de políticas públicas capazes de combaterem a disseminação e a transmissão de “epidemias”6 nefastas como esta, a microcefalia.
Referências
1 STF, ADPF 54 – MC/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, decisão de 1º-7-2004, DJU de 2-8-2004.
2 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional – 9 ed. rev. e atual. de acordo com a Emenda Constitucional n. 83/2014, e os últimos julgados do Supremo Tribunal Federal – São Paulo: Saraiva, 2015, p. 546.
3 Eu amo alguém com microcefalia - https://www.facebook.com/Eu-amo-algu%C3%A9m-com-microcefalia-777281732376675/?fref=ts
4 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional – 9 ed. rev. e atual. de acordo com a Emenda Constitucional n. 83/2014, e os últimos julgados do Supremo Tribunal Federal – São Paulo: Saraiva, 2015, p. 548.
5 Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também conhecida como " Convenção de Belém do Pará", ratificada pelo Estado brasileiro em 27 de novembro de 1 995, cujo art. 4º que inclui como direitos humanos das mulheres o direito à integridade física, mental e moral, à liberdade, à dignidade e a não ser submetida a tortura.
6 O termo EPIDEMIA está destacado com aspas pois não há, ainda, cientificamente comprovado um surto da patologia no país e de sua relação com o vírus da zika, no que pese os vários casos já identificados.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa – 13. ed. rec., ampl. e atual. de acordo com as Leis n. 12.653, 12.720, de 2012 – São Paulo, Saraiva, 2013, 537 p.
http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2016/01/ministerio-da-saude-divulga-novos-numeros-do-zika-virus-no-brasil.html
http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2015/11/microcefalia-saiba-o-que-e-o-que-causa-e-como-identificar.html
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=204863
http://epoca.globo.com/vida/noticia/2016/01/o-zika-torna-inevitavel-o-debate-sobre-o-aborto-diz-suzanne-serruya-da-oms.html
TODOS OS ACESSOS A ENDEREÇOS ELETRÔNICOS FORAM REALIZADOS EM 30 DE JANEIRO DE 2016.
Créditos da imagem: disponível em www.conexaojornalismo.com.br, acesso em 31.01.2016 às 15:55.
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Vilipêndio a cadáver é um crime que reflete a relação da sociedade com a dignidade humana, mesmo após a morte. Desde tempos antigos, civilizações atribuem um valor sagrado aos rituais fúnebres e ao corpo dos falecidos, entendendo que o respeito a esses aspectos é essencial para honrar não só a memória dos mortos, mas também a paz e a moral dos vivos.
Assim, leis surgiram para proteger essa dignidade, garantindo que o corpo e o descanso do falecido sejam preservados de qualquer ataque ou tratamento desrespeitoso. Vamos entender um pouco mais sobre isso.
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Abordagem histórica do vilipêndio ao cadáver
O sentimento que o homem tem em relação aos seus pares atravessou os séculos, gerações e a seleção natural. É uma característica intrínseca ao homo sapiens a capacidade de se afeiçoar aos outros de sua mesma espécie, permitindo que laços sejam criados como forma de facilitar a convivência em sociedade.
É por meio dele que se constroem os pilares das relações humanas, que vão guiar os homens por toda a vida e permitir que eles se unam com base tanto pela relação sanguínea quanto pela afetiva.
Esse sentimento não desparece após a morte de um ente querido, pelo contrário. Não são raras às vezes em que a dor da perda é responsável por unir e aproximar. O ritual fúnebre é a forma pelo qual as pessoas se despedem e isso é característica de todos os povos, independente de raça ou religião.
É nesse momento em que se cultua sua memória, integridade, história e imagem, de forma que esses valores transcendam sua morte. Além de ser uma forma de preservar a imagem do morto, também é o meio encontrado para acalentar os familiares pela dor da perda, que é sempre inevitável.
O culto aos mortos é comum a quase todas as épocas e quase todos os povos, vindo da Grécia antiga o costume de guardar luto, acender velas, levar coroas e flores. Segundo relato de Freud, o luto é uma forma de sobrevivência. É a forma usada pelos os que sobrevivem para lidar com a perda de alguém que continuará a ser querido, mesmo que não se encontre mais presente junto aos demais.
Se cadáver é o corpo humano que viveu, então o respeito que se deve aos mortos é consequência da vida que eles tiveram, da sua memória e do que fizeram em vida.
Vilipêndio ao cadáver e o Direito
No sentido tanto de proteger tanto a memória do morto quanto preservar os seus familiares nesse momento delicado, o Código Penal traz, em seu Título V, os crimes contra o sentimento religioso e o respeito aos mortos.
O legislador uniu essas duas espécies de crimes em um só Título por conta da afinidade entre eles, já que o sentimento religioso e o respeito aos mortos consistem valores éticos e morais que se assemelham, posto que o tributo que se dá a eles advém de um caráter religioso que se propagou ao longo dos séculos, abordando, assim, o vilipêndio ao cadáver.
O artigo 212 do referido diploma legal apresenta a tipificação relacionada ao vilipêndio ao cadáver ou suas cinzas, cominando pena de detenção de um a três anos, além de multa. O bem jurídico tutelado nesse caso é o sentimento de respeito aos mortos, já que o de cujus não é considerado titular de direito.
Assim, tutelar esse direito possui um caráter social e por isso que o sujeito passivo dos crimes contra o respeito aos mortos também é o Estado, já que ele é a personificação da coletividade e tem a missão de protegê-la como um dos seus interesses primordiais. O vilipêndio ao cadáver, segundo Rogério Sanches da Cunha, em Manual de Direito Penal – Parte Especial. Ed Jus Povivm, 7ª Ed. P. 433, se define como:
É crime de execução livre, podendo ser praticado pelo escarro, pela conspurcação, desnudamento, colocação do cadáver em posições grosseiras ou irreverentes, pela aposição de máscaras ou de símbolos burlescos e até mesmo por meio de palavras; pratica o vilipêndio quem desveste o cadáver, corta-lhe um membro com propósito ultrajante, derrama líquidos imundos sobre ele ou suas cinzas (RT 493/362).
Assim, a tipificação legal do vilipêndio é clara em nosso ordenamento jurídico e não deixa margem para dúvidas quanto a sua interpretação. Todavia, com o advento da internet e da rápida disseminação de imagens e informações, o vilipêndio ao cadáver ganhou novas formas de ser praticada.
Vilipêndio ao cadáver no mundo digital
O compartilhamento de fotos e vídeos que claramente desrespeitam a imagem do morto se propaga de firma assombrosa pela rede mundial de computadores em questão de minutos. Em casos de acidentes ou crimes brutais, muitas vezes as imagens chegam às redes sociais antes mesmo que as autoridades policiais e locais sejam comunicadas do ocorrido.
Este fato acaba gerando empecilhos às investigações, já que na tentativa macabra de registrar o ocorrido, as pessoas acabam contaminando a cena do crime e, consequentemente, prejudicando as investigações, tudo em prol de um motivo injustificável.
Não se pode alegar, entretanto, que essa forma de cometer o vilipêndio ao cadáver é uma das mazelas do século XXI. Antigamente a prática já existia, mas como as informações não se propagavam tão rapidamente, as imagens eram armazenadas em disquetes ou CD’s e levavam anos para serem expostas.
Hoje, ao contrário, a facilidade com que os arquivos digitais podem ser compartilhados, copiados e propagados atropela as ponderações sobre o certo e errado, bem e mal, engraçado e depreciativo.
Não é raro o internauta se deparar com imagens de corpos completamente desfigurados, que circulam pelas redes sociais de forma incessante, em um claro desrespeito à memória do morto e ao sentimento de pesar da família.
Assim, a família, além de ter que lidar com a dor da perda, ainda precisa suportar a situação vexatória de ver imagens do ente querido expostas aos olhos do mundo. Um momento provado torna-se público da pior maneia possível, gerando traumas e danos de difícil reparação.
O vilipêndio ao cadáver que acontece por meio do compartilhamento das fotos ou vídeos, entretanto, apesar de ser fato atípico para o Direito Penal, se insere na seara do Direito Civil e gera ilícito, já que quem provoca dano a outrem é obrigado a repará-lo, conforme se depreende dos artigos 186 e 927 do Código Civil (BRASIL, 2002), os quais seguem transcritos:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
O dano em questão trata-se, no caso do vilipêndio, da situação vexatória que a família do morto sofre ao se deparar com fotos ou vídeos do ente querido sendo compartilhados indiscriminadamente como se fossem motivo de diversão aos olhos de um público que se satisfaz com o sofrimento alheio. Este é o motivo pelo qual a conduta de divulgar merece tanto repúdio quanto a de quem fornece as imagens.
Dessa forma, busca o Estado, na sua qualidade de protetor da sociedade, preservar a memória do morto e evitar a situação vexatória pela qual a família passa. Quando isso não se configura possível, deve o Estado reparar o sofrimento causado à família da vítima como forma de modelo corretivo para evitar que tais condutas continuem a ser praticadas.
A atitude de quem divulga e compartilha tais imagens é reprovada jurídica e socialmente, com punições para ambos os casos. Não é por a internet ser um território aparentemente livre e onde todos podem expor suas opiniões que os direitos perdem as suas garantias fundamentais, motivo pelo qual se torna necessário ponderar antes de compartilhar e facilitar a propagação de qualquer conteúdo, e em especial os que são visivelmente prejudiciais e vexatórios. As responsabilizações cíveis e criminais, dependendo da conduta, existem e são aplicadas, mas a maioria das pessoas infelizmente só dá conta disso quando já é tarde demais.
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Referências:
BRASIL. Código Penal Brasileiro (1940). Código Penal Brasileiro. Brasília, DF, Senado, 1940.
BRASIL. Código Civil Brasileiro (2002). Código Civil Brasileiro. Brasília, DF, Senado, 2002.
SOUZA, Gláucia Martinhago Borges Ferreira de. A era digital e o vilipêndio ao cadáver. Disponível em: <http://gaumb.jusbrasil.com.br/artigos/184622172/a-era-digital-e-o-vilipendio-a-cadaver>. Acesso em 05 de janeiro de 2016.
CUNHA, Rogério Sanches da. Manual de Direito Penal – Parte Especial. Ed Jus Povivm, 7ª Ed. P.433
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A Convenção de Nova York e a necessidade de atualizações

Publicado
5 meses atrásem
1 de setembro de 2024
A Convenção de Nova York foi instituída em 1958 e, desde aquela época, o seu texto não foi modificado de forma direta. Somente em 2006 foi reunida uma Assembleia Geral que emitiu um documento explicitando como deveria ser a interpretação de alguns dispositivos jurídicos deste tratado à luz do desenvolvimento tecnológico das últimas décadas.
Esta atualização, entretanto, em nenhum momento fez menção ao artigo 1º da Convenção de Nova York, sendo este justamente o dispositivo jurídico que impediria a aplicação deste tratado para as sentenças arbitrais eletrônicas. Alguns defendem que este acordo não necessitaria de atualizações. Na verdade, o que seria mandatório era a instituição de uma nova convenção voltada exclusivamente para a arbitragem eletrônica.
Apesar da clara dificuldade de este acordo vir a ser elaborado, e da esperada demora para que a convenção venha a ser reconhecida amplamente na comunidade internacional, a Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional tem defendido essa tese para as arbitragens envolvendo relações consumeristas. Em 2013, este órgão internacional publicou um documento em que defendia essa posição:
The Working Group may also wish to recall that at its twenty-second session, albeit in the context of arbitral awards arising out of ODR procedures, it considered that a need existed to address mechanisms that were simpler than the enforcement mechanism provided by the Convention on the Recognition and Enforcement of Foreign Arbitral Awards (New York, 1958), given the need for a practical and expeditious mechanism in the context of low-value, high-volume transactions.1
Pode-se perceber, portanto, que esta não é a solução que melhor se alinha com o pleno desenvolvimento da arbitragem eletrônica na seara internacional. O melhor, portanto, seria atualizar o art. 1º da Convenção de Nova York para que o mesmo passe a abranger o processo arbitral eletrônico.
Outro artigo da Convenção de Nova York que necessita de atualização é a alínea d do seu artigo 5º, que assim estipula:
Article V. Recognition and enforcement of the award may be refused, at the request of the party against whom it is invoked, only if that party furnishes to the competent authority where the recognition and enforcement is sought, proof that:
(…)
(d) The composition of the arbitral authority or the arbitral procedure was not in accordance with the agreement of the parties, or, failing such agreement, was not in accordance with the law of the country where the arbitration took place;2
No âmbito da arbitragem eletrônica, caso as partes não tenham definido como o procedimento será regulado, pode ser muito difícil discernir se o processo arbitral esteve de acordo com a lei do local da arbitragem. Afinal, conforme tratou-se em outra parte deste trabalho, a definição desta pode ser extremamente dificultosa.
Logo, na prática jurídica, a solução mais viável atualmente seria obrigar as partes de um processo arbitral eletrônico a sempre definirem da maneira mais completa possível como a arbitragem irá proceder.
Esta obrigatoriedade pode prejudicar a popularidade daquela, pois, com isso, cria-se mais uma condição para que este tipo de processo venha a ocorrer de modo legítimo, dificultando, pois, a sucessão do mesmo. Apesar disso, esta solução seria a que causaria menos dano para a arbitragem eletrônica no âmbito internacional.
Além disso, a Lei-Modelo da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional estipula em seu artigo 20:
Article 20. The parties are free to agree on the place of arbitration. Failing such agreement, the place of arbitration shall be determined by the arbitral tribunal having regard to the circumstances of the case, including the convenience of the parties.3
Logo, segundo esta lei-modelo, é perfeitamente cabível às partes escolherem o local em que o processo arbitral ocorrerá, havendo, portanto, a aplicação do que parte da doutrina chama de forum shopping, ou seja, a escolha do foro mais favorável por parte do autor (Del’Olmo, 2014, p. 398).
É válido ressaltar, ainda, que a lei-modelo da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional serve como base para a lei de arbitragem de mais de 60 países, estando presente em todos os continentes (Moses, 2012, p. 6-7). Com isso, demonstra-se que a necessidade da escolha do local do processo arbitral eletrônico estaria de acordo com o atual estágio de desenvolvimento da arbitragem internacional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BROWN, Chester; MILES, Kate. Evolution in Investment Treaty Law. 1ª ed. London: Cambridge University Press, 2011;
DEL’OLMO, F. S. Curso de Direito Internacional Privado. 10.ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
EMERSON, Franklin D. History of Arbitration Practice and Law. In: Cleveland State Law Review. Cleveland,vol. 19, nº 19, p. 155-164. Junho 1970. Disponível em: <http://engagedscholarship.csuohio.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=2726&context=clevstlrev> Acesso em: 18. mar. 2016.
GABBAY, Daniela Monteiro; MAZZONETTO, Nathalia ; KOBAYASHI, Patrícia Shiguemi . Desafios e Cuidados na Redação das Cláusulas de Arbitragem. In: Fabrício Bertini Pasquot Polido; Maristela Basso. (Org.). Arbitragem Comercial: Princípios, Instituições e Procedimentos, a Prática no CAM-CCBC. 1ed.São Paulo: Marcial Pons, 2014, v. 1, p. 93-130
GRINOVER, Ada Pellegrini; CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
HERBOCZKOVÁ, Jana. Certain Aspects of Online Arbitration. In: Masaryk University Law Review. Praga, vol. 1, n. 2, p. 1-12. Julho 2010. Disponível em: < http://www.law.muni.cz/sborniky/dp08/files/pdf/mezinaro/herboczkova.pdf> Acesso em 19. mai. 2016;
HEUVEL, Esther Van Den. Online Dispute Resolution as a Solution to Cross-Border E-Disputes an Introduction to ODR. OECD REPORT. Paris, vol. 1. n. 1. p. 1-31. Abril de 2003. Disponível em: <www.oecd.org/internet/consumer/1878940.pdf> Acesso em: 10 abril. 2016;
KACKER, Ujjwal; SALUJA, Taran. Online Arbitration For Resolving E-Commerce Disputes: Gateway To The Future. Indian Journal of Arbitration Law. Mumbai, vol. 3. nº 1. p. 31-44. Abril de 2014. Disponível em: < http://goo.gl/FtHi0A > Acesso em 20. mar. 2016;
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O que é uma Associação Criminosa para o Direito em 2024

Publicado
6 meses atrásem
27 de agosto de 2024
A associação criminosa, no direito brasileiro, é configurada quando três ou mais pessoas se unem de forma estável e permanente com o objetivo de praticar crimes. Esse tipo de associação não se refere a um crime isolado, mas à criação de uma organização que visa à prática de atividades ilícitas de maneira contínua e coordenada.
Veja-se como está disposto no Código Penal, litteris:
Art. 288. Associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.
Parágrafo único. A pena aumenta-se até a metade se a associação é armada ou se houver a participação de criança ou adolescente.
Elementos Característicos da Associação Criminosa
Em primeiro lugar, para configurar a associação criminosa, é necessário que haja a participação de, no mínimo, três pessoas. Se o grupo for formado por apenas duas pessoas, pode caracterizar-se como “concurso de pessoas” em vez de associação criminosa.
Outro aspecto essencial para que seja possível a tipificação é que a associação criminosa deve ter como finalidade a prática de crimes. A existência de um propósito comum e a estabilidade do grupo são fundamentais para a configuração do delito.
Além disso, diferente da mera coautoria em um crime específico, a associação criminosa exige uma relação contínua e duradoura entre os membros, com a intenção de cometer crimes de forma reiterada.
Concurso de Pessoas, Organização Criminosa e Associação Criminosa
É importante diferenciar a associação criminosa de outros crimes semelhantes, como o crime de organização criminosa, previsto na Lei nº 12.850/2013.
A organização criminosa, além de exigir um número maior de participantes (mínimo de quatro pessoas), envolve uma estrutura organizada, com divisão de tarefas e objetivo de praticar crimes graves, especialmente aqueles previstos no rol da lei de organizações criminosas.
No caso da associação criminosa, como já observamos, não é necessário uma organização minuciosa, bastando um conluio de pessoas que tenham por objetivo comum a prática de crimes de maneira habitual.
Ademais, outra importante diferença que possa ser apontada entre o crime de associação criminosa e concurso de pessoas; é que na associação criminosa pouco importa se os crimes, para os quais foi constituída, foram ou não praticados.
Além do vínculo associativo e da pluralidade de agentes, o tipo requer, ainda, que a associação tenha uma finalidade especial, qual seja, a de praticar crimes, e para a realização do tipo não necessitam serem da mesma espécie. Insista-se, os crimes, para que se aperfeiçoe o tipo, não necessitam que tenham sido executados, haja vista que a proteção vislumbrada pelo tipo é a da paz pública.
Para o Superior Tribunal de Justiça, é essencial que seja comprovada a estabilidade e a permanência para fins de caracterização da associação criminosa, veja-se:
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE DROGAS. ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE. VÍNCULO ASSOCIATIVO ESTÁVEL E PERMANENTE NÃO DEMONSTRADO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
1. De acordo com a jurisprudência desta Corte Superior, para a subsunção do comportamento do acusado ao tipo previsto no art. 35 da Lei n. 11.343/2006, é imperiosa a demonstração da estabilidade e da permanência da associação criminosa.
2. Na espécie, não foram apontados elementos concretos que revelassem vínculo estável, habitual e permanente dos acusados para a prática do comércio de estupefacientes. O referido vínculo foi presumido pela Corte estadual em razão da quantidade dos entorpecentes, da forma de seu acondicionamento e do tempo decorrido no transporte interestadual, não ficando demonstrado o dolo associativo duradouro com objetivo de fomentar o tráfico, mediante uma estrutura organizada e divisão de tarefas.
3. Para se alcançar essa conclusão, não é necessário o reexame do conjunto fático-probatório constante dos autos, pois a dissonância existente entre a jurisprudência desta Corte Superior e o entendimento das instâncias ordinárias revela-se unicamente jurídica, sendo possível constatá-la da simples leitura da sentença condenatória e do voto condutor do acórdão impugnado, a partir das premissas fáticas neles fixadas.
4. Agravo regimental desprovido.
(AgRg no HC n. 862.806/AC, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 19/8/2024, DJe de 22/8/2024.)
Interessante observar um pouco mais sobre as diferenças entre organizações criminosas e associações criminosas aqui.
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Outros Aspectos Importantes
O art. 8° da Lei 8.072/90 prevê uma circunstância qualificadora, que eleva a pena de reclusão para três a seis anos, quando a associação visar a prática de crimes hediondos ou a eles equiparados.
Importante, ainda, não confundir o crime previsto no Código Penal com o estipulado na Lei de Drogas (Lei n. 11.343/2006) e na Lei n. 12.830/13 (art. 1º, parágrafo 2º). A Lei 11.343/2006, no seu art. 35, pune com reclusão de 3 a 1 0 anos associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, o tráfico de drogas (art. 33) ou de maquinários (art. 34). Nas mesmas penas incorre quem se associa para a prática reiterada do crime definido no art. 36 (financiamento do tráfico).
A Lei n° 12.850/13 define, em seu art. 1 °, § 2°, a organização criminosa como sendo a associação de quatro ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos, ou que sejam de caráter transnacional.
No art. 2°, referida Lei pune, com reclusão de três a oito anos, e multa, as condutas de promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa.
Por fim, como já foi dito, é imprescindível observar com atenção cada uma das elementares típicas dos crimes aqui narrados. O art. 288 traz uma previsão geral para o crime de associação criminosa, enquanto que nos demais tipos da legislação esparsa vislumbra-se a aplicação específica em situações peculiares, ainda que possam guardar semelhanças, esses são tipos que possuem elementares diversas.
Importante atentar-se sempre para o princípio da especialidade e as situações fáticas de cada caso concreto para que se amolde ao tipo penal mais adequado.
Não esqueçamos que o bem jurídico tutelado pelo tipo do art. 288 do CP é a paz pública. A pena cominada ao delito admite a suspensão condicional do processo (Lei 9.099/95). A ação penal será pública incondicionada.
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Organizações e Associações Criminosas
REFERÊNCIAS:
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa – 13. ed. rec., ampl. e atual. de acordo com as Leis n. 12.653, 12.720, de 2012 – São Paulo, Saraiva, 2013, 537 p.
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