Não é novidade que as família brasileiras, em grande parte, não possuem a educação financeira necessária para que os seus gastos não venham a superar os seus rendimentos. Em tese, o segredo é simples: “se ganho ‘X’, não posso gastar ‘2X’”, porém o impulso consumista muitas vezes acaba falando mais alto. O resultado não poderia ser outro senão dívidas e mais dívidas que crescem a exemplo de uma bola de neve descendo a colina.
Recentemente, em 24/01/2017, a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) divulgou os resultados da Pesquisa Nacional de Endividamento e Inadimplência do Consumidor 2016 (Peic). Segundo este levantamento, mais da metade das famílias do Brasil (58,7%), em maio de 2016, declararam-se endividadas. Além disso, a pesquisa demonstrou que a origem da maior parte dessas dívidas (77%) reside nos cartões de crédito, repetindo a tendência dos anos anteriores.
Todavia, se por um lado as famílias brasileiras padecem de um verdadeiro descontrole das suas finanças, nem de longe se pode cogitar que as instituições financeiras estão eximidas de qualquer responsabilidade quanto a essa situação caótica. Com relação aos bancos fornecedores dos cartões de crédito, em particular, lembre-se que estes aplicam taxas de juros elevadíssimas toda vez que o valor da fatura não é pago em sua totalidade, isto é, quando somente parte – ou nem sequer uma fração – da dívida é adimplida, o saldo devedor remanescente é refinanciado a juros extorsivos: o famoso “crédito rotativo”. E é nesse ponto que reside o foco desta matéria.
Porém, antes de iniciar a discussão propriamente dita, é oportuno mencionar que está em vigor, desde 03 de abril de 2017, a Resolução nº 4.549¹, do Conselho Monetário Nacional, órgão superior do Sistema Financeiro Nacional, que modificou sensivelmente as regras concernentes às dívidas oriundas de cartão de crédito, visto que algo precisaria ser feito diante do crescimento alarmante dos juros decorrentes dessas operações.
Em suma, a norma determina que o consumidor só poderá se valer do pagamento mínimo da fatura – e, por consequência, fazer uso do crédito rotativo – uma única vez, pois, no mês subsequente, a instituição financeira ficará obrigada, caso o cliente não possa adimplir integralmente o seu débito, a fornecer uma linha de crédito mais vantajosa que o rotativo, a fim de que o consumidor pague sua dívida parceladamente a juros mais baixos. Veja-se o que diz o novo regramento:
Art. 1º O saldo devedor da fatura de cartão de crédito e de demais instrumentos de pagamento pós-pagos, quando não liquidado integralmente no vencimento, somente pode ser objeto de financiamento na modalidade de crédito rotativo até o vencimento da fatura subsequente.
[…]
Art. 2º Após decorrido o prazo previsto no caput do art. 1º, o saldo remanescente do crédito rotativo pode ser financiado mediante linha de crédito para pagamento parcelado, desde que em condições mais vantajosas para o cliente em relação àquelas praticadas na modalidade de crédito rotativo, inclusive no que diz respeito à cobrança de encargos financeiros.
[Grifo nosso]
Contudo, se a origem da dívida é remota, isto é, anterior a 2017, é pouco provável que os bancos, por pura liberalidade, apliquem a Resolução nº 4.549, o que implica dizer que, nesses casos, o consumidor continuará sujeito ao superendividamento. Dessa forma, é importantíssimo estar atento aos procedimentos que seguem.
Primeiramente, cabe destacar que o serviço de cartão de crédito é matéria albergada pela Lei nº 8.078/90 ou, como é mais conhecida, Código de Defesa do Consumidor (CDC)², senão vejamos:
Art. 3° […]
§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.
[Grifo nosso]
Não obstante a disposição clara da Lei, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ainda editou, em 2004, a súmula 297, segundo a qual “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras”. Como consectário lógico, aos consumidores de cartões de crédito são garantidos todos os direitos individuais e coletivos previstos no diploma consumerista.
Uma dessas garantias, elencada como básica pela própria Lei, é o direito à informação. Portanto, o dever de informar dos fornecedores de produtos e serviços “é mais do que um simples elemento formal, afeta a essência do negócio, pois a informação repassada ou requerida integra o conteúdo do contrato […], ou, se falha, representa a falha (vício) na qualidade do produto ou serviço oferecido” (BENJAMIN, MARQUES, BESSA, 2008, p. 57). A exata previsão legal, no CDC, do direito básico à informação é a que segue:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
[…]
III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;
[Grifo nosso]
Entretanto, o que se verifica no dia a dia é diametralmente oposto aos ditames legais. Não raro são os casos em que o consumidor sequer assina formalmente um contrato, tornando verdadeiramente impossível tomar conhecimento dos detalhes que circundam a contratação do serviço de cartão de crédito. Porém, ainda que haja a anuência formal do consumidor, lembre-se que tais negócios são do tipo adesão, isto é, “aquele cujas cláusulas tenham sido […] estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo”, conforme art. 54, CDC, o que, por si só, já põe o contratante em situação de extrema vulnerabilidade, uma vez que em nada influi nas disposições contratuais.
Como se não bastasse a já demonstrada vulnerabilidade, os consumidores muitas vezes ainda são obrigados a suportar o “jogo de sedução” praticado por prepostos das instituições financeiras, que, ávidos por firmar o maior número de contratos possível, tratam de enaltecer tão somente as vantagens do serviço de cartão de crédito, sem explicar os riscos e demais pormenores do negócio, isso quando informações enganosas não são transmitidas.
No final das contas, o consumidor quase nunca tem conhecimento das consequências advindas do inadimplemento total ou do “pagamento mínimo da fatura”, ou seja, não é informado a respeito de um elemento fundamental desse tipo de contrato: a taxa de juros.
O próprio CDC, prevendo toda essa circunstância de vulnerabilidade e desvantagem a que é submetido rotineiramente o consumidor, dispõe de mecanismos para atenuar tal conjuntura desfavorável. Atente-se aos seguintes dispositivos do mencionado diploma normativo:
Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
[…]
V – exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
[…]
IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade;
[Grifo nosso]
Contudo, surge o seguinte questionamento: como aferir a abusividade de uma cláusula e o excesso de determinada vantagem? Ou melhor, trazendo para o assunto deste artigo em específico, qual o parâmetro para que seja definida a taxa de juros adequada às dívidas de cartão de crédito?
Para responder tal indagação, Superior Tribunal de Justiça (STJ) já firmou jurisprudência acerca do tema, veja-se:
CIVIL – AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL – CARTÃO DE CRÉDITO – INEXISTÊNCIA DE TAXA MÉDIA APURADA PELO BANCO CENTRAL – UTILIZAÇÃO DA TAXA DE CHEQUE ESPECIAL – IMPOSSIBILIDADE – DECISÃO MANTIDA – 1- A Segunda Seção desta Corte pacificou entendimento segundo o qual, para se verificar a alegada abusividade da taxa de juros remuneratórios, deve-se observar a taxa média cobrada para operações da mesma espécie. 2- Agravo regimental a que se nega provimento.
(STJ – AgRg-AG-REsp. 628.818 – (2014/0317164-4) – 4ª T. – Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira – DJe 21.03.2016 – p. 987)
AGRAVO INTERNO INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DO NOVO CPC – RECURSO ESPECIAL – CONTRATO DE CARTÃO DE CRÉDITO – AÇÃO REVISIONAL – JUROS REMUNERATÓRIOS – LIMITAÇÃO – ABUSIVIDADE DA TAXA CONTRATADA EM RELAÇÃO À TAXA MÉDIA DE MERCADO DAS OPERAÇÕES DE CHEQUE ESPECIAL – LIMITAÇÃO DOS JUROS À TAXA DAS OPERAÇÕES DA ESPÉCIE – ANÁLISE DAS DEMAIS QUESTÕES DISCUTIDAS NO RECURSO PREJUDICADA 1 – A limitação da taxa de juros remuneratórios pactuada no contrato de cartão de crédito à taxa média de mercado aplicada aos contratos de cheque especial é inviável em razão da diversidade da natureza jurídica das operações. 2- A alteração da taxa de juros remuneratórios pactuada em contrato de cartão de crédito depende da demonstração cabal de sua abusividade em relação à taxa média do mercado apurada nas operações da espécie. 3- Prejudicada a análise das questões alusivas à comissão de permanência, configuração da mora e sucumbência até a verificação da taxa de juros aplicada à espécie e constatação da abusividade. 4- Agravo interno desprovido.
(STJ – AGInt-REsp 1.399.511 – (2013/0277215-9) – 3ª T. – Rel. Min. João Otávio de Noronha – DJe 30.08.2016 – p. 3398)
[Grifo nosso]
Conforme se depreende da leitura dos julgados, o STJ considera a taxa de juros média de mercado como o “termômetro” para rotular a taxa aplicada no cálculo da dívida de cartão de crédito como adequada ou abusiva. A fim de reafirmar a solidez desse entendimento, o próprio STJ, em maio de 2015, editou súmula a respeito da matéria. Ipsis litteris, o teor da súmula 530 é o seguinte:
Nos contratos bancários, na impossibilidade de comprovar a taxa de juros efetivamente contratada – por ausência de pactuação ou pela falta de juntada do instrumento aos autos – aplica-se a taxa média de mercado, divulgada pelo Bacen, praticada nas operações da mesma espécie, salvo se a taxa cobrada for mais vantajosa para o devedor.
[Grifo nosso]
Pela inteligência da supracitada súmula, já se sabe, inclusive, a fonte responsável por propalar a dita taxa média de mercado: o Banco Central do Brasil (Bacen). Mensalmente, o Bacen divulga, em seu sítio eletrônico, a referida taxa (SGS – Sistema Gerenciador de Séries Temporais: Indicadores de crédito > taxas de juros > Taxas de juros – % a.a. > Taxas de juros com recursos livres > Taxa média de juros-Pessoas físicas-Cartão de crédito total). Assim, preenchendo o campo destinado ao período em que se deseja investigar a taxa média de juros com o mês e o ano em que a dívida teve início, é possível conhecer a taxa de juros que deveria ser aplicada ao débito oriundo do cartão de crédito.
Diga-se de passagem que, na grande maioria dos casos, a discrepância entre as taxas de juros contratuais – que podem ser facilmente visualizadas no verso da fatura – e as médias do mercado é imensa. Assim, através de cálculos feitos por profissional habilitado (contador), é possível encontrar um saldo devedor bem menor do que aquele que é cobrado pelos bancos.
Dessarte, para fazer valer o direito garantido pelo CDC e por todo o arcabouço jurídico aqui exposto, sobretudo pela súmula 530 do STJ, o que se indica é o ingresso na Justiça por meio de ação revisional cujo fito seja a declaração de nulidade da cláusula contratual atinente à taxa de juros abusiva, fazendo com que esta seja substituída pela taxa de juros média do mercado correspondente ao mês do início da dívida, medida essa através da qual se espera que o consumidor venha a obter um significativo proveito econômico.
Referências: [1] Disponível em: <https://www.bcb.gov.br/pre/normativos/busca/downloadNormativo.asp?arquivo=/Lists/Normativos/Attachments/50330/Res_4549_v1_O.pdf>. Acesso em: 06 jul. 2017. [2] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078compilado.htm>. Acesso em: 06 jul. 2017. [3] BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078compilado.htm>. Acesso em: 30 jan. 2017. [4] ______. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no Recurso Especial nº 1.399.511/RS. Relator: Min. João Otávio De Noronha. Brasília, DF, 18 de agosto de 2016. Dje. Brasília, 30 ago. 2016. Disponível em: <http://online.sintese.com/pages/core/coreDocuments.jsf?guid=I3B4A7A6469D18C8BE05330B5DE0A8AE9¬a=1&tipodoc=06&esfera;=&ls=2&index=1#highlight-3>. Acesso em: 01 fev. 2017. [5] ______. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no Agravo em Recurso Especial Nº 628.818/MS. Relator: Min. Antonio Carlos Ferreira. Brasília, DF, 15 de março de 2016. Dje. Brasília, 21 mar. 2016. Disponível em: <http://online.sintese.com/pages/core/coreDocuments.jsf?guid=I2E8F252790625857E05330B5DE0A1FF9¬a=1&tipodoc=06&esfera;=&ls=2&index=1#highlight-3>. Acesso em: 01 fev. 2017. [6] ______. Superior Tribunal de Justiça. Súmula n° 297, de 12 de maio de 2004. O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras. In: Vade mecum Saraiva. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. [7] ______. Superior Tribunal de Justiça. Súmula n° 530, de 13 de maio de 2015. Nos contratos bancários, na impossibilidade de comprovar a taxa de juros efetivamente contratada – por ausência de pactuação ou pela falta de juntada do instrumento aos autos - aplica-se [...]. In: Vade mecum Saraiva. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. [8] Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo. Pesquisa Nacional de Endividamento e Inadimplência do Consumidor 2016. Disponível em: <http://cnc.org.br/sites/default/files/arquivos/analise_peic_maio_2016.pdf>. Acesso em: 30 jan. 2017. [9] MARQUES, Cláudia Lima. A Lei 8.078/90 e os direitos básicos do consumidor. In: BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. Cap. 2. p. 44-64.
Esclarecedora: É como devo rotular a pertinente matéria diante das circunstâncias econômicas vivenciadas pela (58%) maioria dos brasileiros economicamente ativos.
Muito bom!
Prezado Bernardo,
Excelente texto. Na verdade, poucos textos na internet conseguem ser tão precisos. Na verdade, poucas pessoas (inclusos alguns peritos) fazem uso correto do SGS. Parabéns.
Só faço uma observação: quando você diz que o profissional habilitado para fazer esse tipo de perícias é o contador essa informação está incompleta. Legalmente podem fazer esse tipo de trabalho tanto contadores quanto economistas e administradores. Apesar de existir um número maior de contadores fazendo perícias financeiras, outros profissionais também fazem esse tipo de trabalho.
Espero ter ajudado.