Efeito backlash nos EUA: análise de casos práticos

Os Estados Unidos adotam o common law como modelo de sistema jurídico, em decorrência da sua origem britânica. Assim, a principal fonte formal do Direito Estadunidense é o conjunto dos precedentes judiciais produzido pelos tribunais, ao lado da lei e dos costumes.

Neste sistema, há um claro destaque da figura do juiz, diferente da visão do magistrado apenas aplicador da norma exaltada pela doutrina francesa, principalmente, na época da Revolução de 1789 em razão da forte desconfiança para com os juízes por terem-se posicionado a favor da monarquia vigente.

É, nesse contexto, que há margem para uma situação de embate entre o Poder Legislativo e Poder Judiciário, o que pode gerar o efeito backlash como consequência das decisões judiciais polêmicas.

Veja também: O efeito backlash: a reação a decisões judiciais

Com o escopo de compreender o referido efeito, serão analisados a seguir casos práticos em que teria ocorrido backlash.

1 Roe vs. Wade

Norma L. McCorvey (Jane Roe) tentou obter autorização para abortar no estado do Texas, alegando que teria sido estuprada. Ocorre que, como não havia nenhum relato na polícia, comprovando a existência do crime, seu pedido de aborto foi negado. Em decorrência deste cenário, Roe ajuizou uma class action, desafiando a constitucionalidade das leis de aborto do Texas, mantendo a alegação de que teria sido estuprada.

A Suprema Corte decidiu que a mulher, pautada no direito à privacidade presente no due process clause previsto na Décima Quarta Emenda, poderia decidir sobre a continuidade da gravidez. No entanto, esse interesse da mulher poderia ser balanceado com o interesse do Estado na proteção da saúde da mulher e da potencialidade da vida humana.

A questão que circunda a decisão proferida pela Suprema Corte em Roe envolve o fato de que alguns teóricos apontam que a postura ativista da corte teria prejudicado o direito à escolha da mulher, uma vez que ainda existiria muita controvérsia nos Estados Unidos envolvendo o aborto. Diante deste cenário, o uso da decisão pelos Republicanos como uma forma de atrair os eleitores mais conservadores (como exemplo Católicos e Protestantes) teria sido fator essencial de influência nas eleições seguintes a decisão.

Outros estudiosos, contrapondo esta visão pessimista de que a decisão teria causado exclusivamente o backlash, apontam que Roe foi decidido pela Suprema Corte como reflexo do auge do movimento feminista dos EUA e das lutas pelos direitos civis, ou seja, as grandes mobilizações contra e a favor do aborto já existiam antes da decisão.

Neste sentido, muito antes de Roe, os estrategistas, como uma forma de atrair conservadores e os eleitores católicos, os quais tradicionalmente se aliavam aos Democratas, aconselharam Nixon a adotar uma postura contrária ao aborto. Além disso, ele deveria taxar McGovern, seu oponente, como radical, associando-o a movimentos ainda jovens que não dispunham de tanto apoio popular, a exemplo do movimento feminista.

Diante deste cenário, pode-se concluir que a decisão da Suprema Corte envolvendo a temática do aborto não foi a única responsável pela reação ocasionada posteriormente. A bem da verdade, o contexto de mobilização favorável ao aborto e contrária ao aborto já se delineava muito antes do decisum. Sendo assim, Roe decorreu do anseio de parte significativa da população dos Estados Unidos que acreditava no direito à escolha e de livre disposição da mulher.

2 Obergefell vs. Hodges

Em Obergefell vs. Hodges, a Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu que o direito ao casamento é um direito fundamental garantido, também, a casais do mesmo sexo pelo due process clause e equal protection clause da Décima Quarta Emenda à Constituição. Foi determinado, dessa forma, aos estados que reconhecessem a validade destes casamentos.

Nessa senda, importante ressaltar que o presidente da Suprema Corte, justice Roberts, divergiu da decisão majoritária, usando como motivação o posicionamento do justice Ginsburg em Roe, o qual alertou dos riscos das contrarreações a decisões polêmicas. Ocorre que Michael Klarman, o qual defende o Minimalismo Judicial, ou seja, a adoção de uma postura mais cautelosa pelos juízes,discordou da argumentação do justice Ginsburg. Na época de Obergefell, o professor argumentou que a Corte poderia decidir a questão do casamento sem se preocupar com o backlash, pois já havia apoio público majoritário para o casamento.

Com o escopo de entender o posicionamento de Klarman, é essencial realizar um estudo do contexto histórico estadunidense que levou a decisão “menos conflituosa” em Obergefell. Em 1986, a Suprema Corte decidiu em Bowers vs. Hardwick que era permitido aos estados a criminalização de relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Apenas em 2003, a Corte overruled Bowers, decidindo em Lawrence vs. Texas que as leis que criminalizam a sodomia homossexual negam aos gays dignidade, liberdade e igualdade protegidos pela due process clause.

Esta situação de embate entre concessão e retirada de direitos dos homossexuais se prolongou, refletindo-se nas decisões prolatadas pela Corte. Desde a decisão da Suprema Corte do Havaí de 1993, em Baehr vs. Lewin, que preconizava a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo nesse estado, várias medidas de rejeição foram promulgadas.

Em 2003, a Suprema Corte de Massachusetts decidiu em Goodridge vs. Department of Public Health que negar licenças de casamento para casais do mesmo sexo violava a Constituição do referido estado. Os estadunidenses, no entanto, mobilizaram-se, novamente, para bloquear a disseminação do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em resposta à decisão, segundo Siegel, na maioria dos estados, os cidadãos promulgaram uma onda de leis e de emendas constitucionais estaduais que proibiam o casamento deste tipo.

Apesar de todo este contexto com viés fortemente negativo para o casamento entre pessoas do mesmo sexo, é importante observar que à medida que todos esses embates ocorriam, cada vez mais se popularizava a discussão ao redor do samesex marriage, o que possibilitou a diminuição do efeito contrário em Obergefell. Afinal, há mais de 20 anos se discutia nas Cortes Judiciais e nos Parlamentos o direito à igualdade dos homossexuais, demonstrando-se que o casamento gay não acabaria com a família, nem com a religião ou qualquer outra argumentação conservadora extremista.

Considerações Finais

Pode-se, assim, concluir, após a breve análise do contexto histórico das decisões ressaltadas acima, que, embora alguns estudiosos acreditem que o backlash deva ser evitado acima de qualquer possibilidade, haja vista a grande chance de forte reação adversa, ao fim e ao cabo, em decorrência das decisões polêmicas da Corte e, muitas vezes, contramajoritárias, foi que se passou a discutir e a aceitar, nos Estados Unidos, os direitos dos gays.

A arena constitucional pode funcionar, portanto, como um local de lutas por reconhecimento, sendo por meio das discussões relativas às decisões prolatadas que os indivíduos expõem publicamente suas aspirações normativas, possibilitando que mais de uma vertente sobre o caso seja ouvida, não havendo espaço somente para a opinião dominante no tema, o que abre caminho para as mudanças.


Referências:

BUNCHAFT, Maria Eugenia; LIMBERGER, Têmis e CRISTIANETTI, Jessica. O refluxo em Roe versus Wade: uma reflexão à luz do diálogo entre Constitucionalismo Democrático e Minimalismo judicial. Pensar-Revista de Ciências Jurídicas, v. 21, n. 3, p. 987-1011, set./dez. 2016.

ESTADOS UNIDOS. Suprema Corte. Petition for the Writ of Certiorari. Roe v. Wade. 410 U.S. 113 / 1973. Jane Roe, et al., v. Henry Wade, District Attorney of Dallas County. Opinião Majoritária: Harry Blackmun. Washington, District of Columbia. Julgado em 22 jan. 1973;

ESTADOS UNIDOS. Suprema Corte. Petition for the Writ of Certiorari. Obergefell v. Hodges. 576 U.S. James Obergefell, et al., Petitioners v. Richard Hodges, et al. Voto de Justice Kennedy. Opinião Majoritária: Justice Kennedy. Washington D.C. Julgado em 26 jun. 2015.

LOPES FILHO, Juraci Mourão. Os precedentes judiciais no constitucionalismo brasileiro contemporâneo. Salvador: Juspodivm, 2014.

POST, Robert; SIEGEL, Reva. Roe Rage. Democratic Constitutionalism and Backlash. Harvard Civil Rights-Civil Liberties Law Review, 2007; Yale Law School, Public Law Working Paper, nº 131.

SCHACTER, Jane S. Courts and the politics of backlash: Marriage equality litigation, then and now. In: Southern California Law Review. v. 82, p. 1153-1289, 2009.

SIEGEL, Reva. Same-sex marriage and backlash: constitutionalism through the lens of consensus and conflict. The lecture was delivered on 16 March 2016. Disponível em: < http://diana-n.iue.it:8080/handle/1814/41324>. Acesso em 19 mar. 2017.

 

 

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