Limitações à liberdade de doação: a ingerência do estado no ato nobre

“quem diz contratual diz justo” Alfred Jules Émile Fouillée

Muito se fala em liberdade, tendo este valor especial contorno dentro dos ramos do Direito. Neste sentido, as leis têm o delicado papel de tentar garantir a liberdade e a autonomia das pessoas, garantindo apenas que estes não extrapolem os limites mínimos da boa convivência, ou seja, que não firam os direitos inerentes àqueles grupos sociais. Daí então, Bastiat (1850, traduzido em 2010), em seu clássico A Lei, nos diz que as normas têm o condão de tão somente garantir os nossos direitos naturais, desta forma, toda limitação só é justa se respeitar a autonomia do indivíduo e servir para garantir o convívio em sociedade com o respeito à liberdade, à propriedade e à vida.

É nesse sentido que se pensa a liberdade de doação como uma das mais sublimes, das mais humanas, sendo daquelas que nos faz lembrar que o homem realmente é a imagem e semelhança de Deus. A doação é ligada a caridade, é o ato de disposição do patrimônio de maneira gratuita, mesmo que eventualmente possa ser onerosa, portanto deve ser conduta incentivada e não rechaçada. Todavia, isso não implica que esta ocorra sem nenhum limite, sem nenhuma segurança. Daí então o código civil traz uma série de limitações a liberdade de doação, previstas entre os artigos 538 à 564 da lei 10.406 de 2002.

De antemão, digo que a lei traz de fato uma série de limitações, e não simplesmente prevê o instituto, porque este de fato não necessitava de previsão. Ocorre que, contratos, por sua natureza e definição, são acordos de vontades que se regem pelo princípio que tudo que não é vedado é permitido. Ademais, os contratos sempre se dão pelo princípio da satisfatividade, ou seja, só se negocia se aceitar aqueles termos que satisfazem mais que não aceitar. É nesse contexto que Fouillée nos trouxe a ideia de “quem diz contratual diz justo”. Não seria diferente no contrato de doação, este é feito pelos acordos de vontade, pelos contratos, regidos pela mais ampla liberdade e só restritos pelas limitações legais, que impelem a interferência o estado no poder de contratar.

Então o que justificaria as limitações à liberdade de doação? Certamente o encontro com outros valores juridicamente albergado, que mereçam a ponderação de analise. Nesse sentido, há basicamente a vedação à doação Universal, prevista no art. 548 do código civil, a doação inoficiosa, prevista no art. 549 do mesmo diploma, e a vedação a doação à concubina, prevista no art. 550. Os outros artigos estabelecem regras gerais aplicáveis a doações e disposições especiais do contrato, que servem como regras supletivas ou mesmo como nortes direcionadores para dirimir eventuais conflitos, como a previsão que o contrato em regra deve ser escrito, podendo ser feito verbal no caso de pequenas coisas.

A limitação à doação universal é aquela na qual se impede que o donatário se desfaça do seu patrimônio sem que lhes seja garantido o mínimo para subsistência. Considerando o Estado intervencionista, é fácil imaginar porque esta seria limitada, afinal considera-se que o Estado deveria arcar com a segurança e o mínimo de dignidade desse indivíduo. Todavia, há questionamentos a se fazer quanto às proibições geradas pelo Estado “Babá”. Para tal, trago a ilustre história de Diógenes, O Cínico.

Contam os livros de história que Diógenes, filósofo pós-aristotélico, tinha como filosofia de vida que não eram necessários bens materiais para viver e ser feliz, finalidade do ser humano, segundo Aristóteles. Assim, dizem que este cidadão romano vivia em um Barril e inspirou muito até mesmo da filosofia contemporânea, das artes e porque não, da vida. Certamente, Chaves, personagem clássico do humor teve inspiração cínica, vivendo num Barril, junto à pobreza, mas sendo feliz. Ora, quer elemento maior da demonstração dessa onda filosófica que os princípios franciscanos, que doou todo seu patrimônio para os pobres.

Pois bem, no Estado democrático de direito em que se vive no Brasil, Francisco de Assis, o santo, Chaves, ou mesmo Diógenes, não poderiam ter realizado seus atos. A filosofia sucumbiria aos ditames da lei e a caridade seria impedida por imposição do Estado. Assim, no que pese existir algum fundamento para as limitações à doação universal, certamente estas não se coadunam com o princípio maior das leis, seja este o de garantir a AUTONOMIA dos indivíduos, pois somente estes é que sabem a melhor forma de dispor da sua vida e, consequentemente, do seu patrimônio, só sendo lícito limita-los com o real prejuízo aos outros indivíduos.

Por outro lado, o Estado veda a doação inoficiosa. Esta é dita como a doação que fere a herança legítima. Talvez este seja um dos pontos interessantes da interferência estatal. No Brasil é vedado a “pacta corvina”, ou seja, é proibido que se negocie sobre os bens que possivelmente serão herdados, enquanto a pessoa ainda é viva. Contrário senso, a pessoa viva não pode dispor de seu patrimônio em valor superior a 50% deste, pois fere o direito dos seus herdeiros de receber alguma parte do seu quinhão. Aqui, diz-se que está protegendo a família, valor fundante do ordenamento, mas que proteção injustificada, sobrepesando a autonomia do individuo e sua liberdade, de maneira que se cria uma série de proibições à regência do seu patrimônio sem que haja de fato um dano ao bem jurídico tutelado, ou seja, não desnatura a família não deixar herança.

Note como é incoerente a limitação à liberdade de doação inoficiosa, pois o cidadão pode até “torrar” todo seu patrimônio. Pode gastar tudo consigo, mas se, por exemplo, Bil Gates fosse brasileiro e seu império fosse situado aqui, ele simplesmente não poderia ter deixado 99% da sua riqueza para instituições de caridade, por disposição sua, em vida, já que ele tem filhos e isso iria ferir a herança legítima. Daí, então, que mais uma vez nota-se que a lei não está albergando aqueles princípios máximos supradescritos.

A vedação à doação à concubina, a proibição em doar para a amante, é outro ponto interessante, vez que representa mais uma limitação com o intuito de proteger a família, certamente com mais fundamento que a vedação à inoficiosa, mas ainda com ponderações a se fazer, no especial tocante de se cabe ao Estado tomar a decisão se este valor é que desse protegido.

Primeiro, há de se lembrar de que o patrimônio do indivíduo pertence somente a este e não a família. Em seguida, que as pessoas tomam as condutas segundo seus critérios de satisfatividade e, terceiro, que só há sentido em limitar as liberdades se estas estiverem ferindo os direitos interentes à vida humana.

Ora, se o indivíduo é autônomo e a concubina é quem o faz feliz, certamente as condutas para beneficia-la são as que garantem a maior satisfatividade deste indivíduo. Em seguida, o direito é quem segue a realidade, e não a realidade que segue o Direito. Portanto, os indivíduos têm amantes já há séculos e não cabe ao Estado interferir nas relações civis, salvo desestruturação social, por fim, se família não é valor a ser albergado por aquele cidadão, o que justificaria a coletividade impor este valor a ele? No que pese a família ser valor extremamente relevante, a autonomia de vida e as liberdades civis também o são, não tendo sentido o estado tentar impor a forma de família que se vive.

Por fim, convém lembrar apenas das disposições acerca da doação aos herdeiros. Caso exista doação em vida de patrimônio que possa ser herdado, por previsão do Código Civil, este patrimônio deve ser colacionado da herança, ou seja, deve ser descontado na hora de herdar. Perceba que isso é mais uma interferência na liberdade civil com seu patrimônio injustificada, afinal, o que te obriga a querer dar maior parte do seu patrimônio para um filho e não a outro? Pode até não ser equânime, pode não ser belo e moral, mas não há razões fundadas para ser ilegal.

Este texto foi apenas um breve esboço acerca das limitações à liberdade de doação, com uma visão crítica acerca da interferência estatal na liberdade humana. De fato, pode ser que o texto não esteja com a perfeição da verdade, mas somente com a busca por esta e com os questionamentos da realidade é que se pode construir um sistema jurídico mais adequado, justo e eficiente.


Referências

Bastiat, Frédéric A Lei / Frédéric Bastiat. – São Paulo : Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.

BARROSO, Vanessa Pinheiro da Silva. Os efeitos da constitucionalização do direito e a função social dos contratos. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 87, abr 2011. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9356>.Acesso em jul 2015.

Von Mises, Ludwig. Ação humana: um tratado de economia. Instituto Ludwig Von Mises Brasil. Ed. 3.1: São Paulo 2010.

PAMPLONA FILHO, Rodolfo. GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo Curso de Direito Civil – Vol. IV – Tomos I e II. 8.º ed. São Paulo: Saraiva, 2006

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume III: contratos e atos unilaterais – 6. ed. rev., São Paulo: Saraiva, 2009.

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