Deveres do magistrado ao aplicar o ordenamento jurídico: análise das contribuições do Art. 8º do Código de Processo Civil de 2015

1 INTRODUÇÃO

O Código de Processo Civil de 2015 traz toda uma nova concepção do processo ressaltando sua característica de funcionar como ferramenta apta a resguardar direitos muito mais do que como um fim em si mesmo. Desse modo, o legislador prezou por expressar literalmente diversos valores que devem ser atendidos para a boa prestação jurisdicional e, assim, consequentemente, que sejam capazes de promover a efetiva pacificação social.

O reforço a essa concepção do processo, muito mais do que uma real novidade, é uma necessária retomada para se reafirmar o fim pelo qual o sistema de jurisdição foi criado: manter a ordem da sociedade, mediante a solução de conflitos de acordo com o ordenamento jurídico vigente, através da substituição das partes por um juiz imparcial que tem poder para agir em nome delas.

No contexto do atual Estado Democrático de Direito, as decisões jurídicas proferidas devem encontrar não só na lei, mas, principalmente, no seio dos mandamentos constitucionais a validade para suas formas e para o seu conteúdo. Enquanto a legitimidade das leis, e da própria Constituição, em última instância, provém da democratização na escolha dos legisladores e da capacidade do povo de interferir diretamente na criação legislativa, a legitimidade dos julgadores, a qual confere estabilidade ao Direito e segurança aos jurisdicionados, provém destes serem escolhidos e exercerem seus ofícios conforme estabelecido pelo próprio ordenamento jurídico.1

A recorrência da prolação de decisões fundamentadas fora dos parâmetros do Direito vigente gera não só instabilidade entre as partes, mas afeta toda a estrutura do Poder Judiciário ao ocasionar uma desconfiança generalizada da legitimidade dos julgadores do Estado, os quais, muitas vezes, sem qualquer sanção, baseiam o fundamento das suas decisões nas suas livres convicções pessoais, criando verdadeiros comandos normativos sem quaisquer autorizações legais para tanto.2

É impossível que o magistrado se afaste da solução de um conflito que lhe é proposto, em razão da inafastabilidade da jurisdição, insculpida no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal. Entretanto, muita discussão tem sido levantada já há algum tempo acerca de quais seriam os parâmetros aptos a guiar o processo decisório do julgador, especialmente em decisões que tratem sobre a incidência de princípios constitucionais.

O Código de Processo Civil de 2015, em um dos seus primeiros artigos, dedicou artigo específico para tratar sobre os deveres dos magistrados e os valores que estes devem se pautar para guiar o processo de interpretação e aplicação do ordenamento jurídico, em todas suas fases. Cabe, assim, investigar se há alguma contribuição advinda dessa nova disposição legal, inexistente no código passado, que efetivamente possa auxiliar na redução da discricionariedade judicial no momento de aplicação da lei. Caso não haja grandes contribuições nesse sentido, cumpre perquirir, então, sobre a utilidade prática de se conter esse artigo no novo código e como devemos compreendê-lo à luz da sistemática do Processo Civil Constitucional. São estes os pequenos, mas relevantes questionamentos que este artigo buscará elucidar, partindo de uma análise dogmática das disposições estabelecidas no próprio artigo 8º em si, e, posteriormente, aprofundando-se até as questões filosóficas implicitamente suscitadas por ele. Ao final, em face dos resultados obtidos, visa-se ainda identificar as características de um magistrado que efetivamente já se pode exigir, a fim de minimizar os danos causados pelos conflitos advindos da agregação humana em sociedades cada vez mais complexas, dada à sofisticação e rapidez das mudanças em nossas relações com o outro e com o mundo.

2 DEVERES DO JUIZ AO APLICAR O ORDENAMENTO SEGUNDO O ARTIGO 8ª

O artigo 8º se situa na parte geral do Código, dentro do Livro I que trata das Normas Processuais Civis, especificamente no capítulo I, denominado de Normas Fundamentais do Processo Civil,onde se encontram os artigos de 1º ao 12º.

É importante ressaltar o caráter dessas normas fundamentais. Para Monerrat, (2017, p. 227), as normas fundamentais têm mais o caráter de função pedagógica ou simbólica, do que efetiva capacidade de inovar, acrescentando, ou mesmo detalhando, direitos ou deveres processuais. Esta é também a compreensão de Schmitz (2016, p. 126) quando aborda que essas disposições introdutórias se prestam apenas a orientar, principiologicamente, e através de conceitos indeterminados deliberadamente escolhidos, a atividade dos sujeitos e do Estado dentro do Processo.

Dentre as normas fundamentais, variadas são as que apenas reproduzem princípios e valores constitucionais, como as que reforçam a concepção do modelo constitucional de processo (art. 1º); o princípio da inércia processual (art. 2º); da inafastabilidade jurisdicional (art. 3º); da ampla defesa e do efetivo contraditório (art. 9º); e, ainda, do dever de fundamentação das decisões judiciais (art. 11º), dentre outras.

Quanto ao artigo 8º, especificamente, este traz em sua literalidade os seguintes deveres do magistrado ao aplicar o ordenamento jurídico:

Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.

Percebem-se assim insculpidos diversos parâmetros os quais o julgador não pode ignorar no momento de prestar a jurisdição durante todos os atos do processo, são eles: a atenção aos fins sociais; à exigência do bem comum, à promoção da dignidade da pessoa humana, além da observação à proporcionalidade, à razoabilidade, à legalidade, à publicidade e à eficiência.

Schmitz (2016, p. 130), entretanto, alerta que, em que pese esse dispositivo não guardar paralelo com o código passado, trata-se, na verdade de uma mixagem teórica de diversos conceitos já espalhados no ordenamento jurídico em variados momentos históricos, desde conceitos típicos da Alemanha do final do século XIX, passando pela concepção de dignidade da pessoa humana desenvolvida no pós 2ª guerra mundial, até conceitos desenvolvidos pelos argumentativistas ao longo do século XX, como é o caso da proporcionalidade e a razoabilidade.

Percebe-se de modo cristalino que a primeira parte é uma cópia da quase total literalidade da Lei de Introdução do Direito Brasileiro em seu artigo 5º, alterando-se apenas a palavra “lei”, por ordenamento jurídico, uma vez que hoje se tem bem firme que existem outras fontes do Direito além da fonte legal, todas as quais devem ser levadas em consideração no momento do julgador tomar a decisão no caso concreto. Observe-se:

Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

Nesse aspecto, faz necessária tal atualização, já que a literalidade do artigo acima transcrito data de 1942, em um contexto no qual se acreditava que ao julgador bastava a mera interpretação legal, o que não mais subsiste, principalmente em um contexto de maior força normativa da Constituição, especialmente daquela que possui alta carga valorativa contidas em seus conteúdos principiológicos como a nossa. No que tange aos “fins sociais” e à “exigência do bem comum”, a mera reprodução não parece ter sido tão efetiva para obter qualquer intento específico, visto que, mesmo após mais de 60 anos da primeira vez do ingresso desse texto legal no ordenamento nacional, sequer há qualquer consenso sobre o que esses conceitos venham a significar, ou mesmo indicações de como encontrar o seu sentido no caso concreto.

Em sua segunda parte, o legislador infraconstitucional do atual código de processo civil ressaltou a prevalência da dignidade da pessoa humana, que já é fixado como um dos fundamentos da ordem constitucional de 1988. Didier (2015, p. 75-76) afirma que, por isso, o dispositivo é também aparentemente desnecessário, podendo ser considerado como um “sobreprincípio” constitucional, do qual todos os princípios e regras relativos aos direitos fundamentais seriam derivados, ainda que em intensidade variáveis. Ressalta, porém, que não é uma norma jurídica de fácil aplicação, pois o âmbito de incidência da dignidade da pessoa humana é ainda muito impreciso, exigindo alta carga argumentativa específica no momento de sua utilização – pois há clara interferência ativa do juiz no processo-, devendo, por fim, sempre ser respeitada a liberdade processual das partes, que também é uma expressão da liberdade, que compõe importante dimensão do próprio conceito de dignidade.

Segundo Leonardo Carneiro da Cunha (2016, p. 46-47), além da repetição infralegal de conceito já tão arraigado em sede constitucional, a dignidade da pessoa humana no processo civil seria atendida através do devido processo legal. Apenas na ocasional falta de uma norma específica que tutele determinado direito fundamental, deveria o juiz promover esta proteção com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana. Didier (2015, p.77) comenta quanto ao assunto que, apesar de não conseguir vislumbrar agora diferença nem no âmbito da aplicação nem nas consequências da aplicação entre a dignidade da pessoa humana -no âmbito do processo- e o devido processo legal, seria de bom tom continuar a tratá-los como dois conceitos distintos vez que a referência a tal dignidade pode ajudar na reconstrução de novos sentidos ao devido processo legal, iluminando-o e tornando-o ainda mais humanizado.

Como não fosse suficiente a mixagem de conceitos, a parte final do artigo 8º remete à repetição dos princípios constitucionais que regem a administração pública situados no caput do artigo 37 da CF/88, trazendo explicitamente a necessidade de se preservar a legalidade, publicidade, eficiência no momento de sua atuação, e, ainda, fazendo emergir expressamente conceitos há muito identificados como implícitos, como os da proporcionalidade e o da razoabilidade para ponderar a aplicação da lei.

Apenas não foram repetidos os princípios da pessoalidade e da moralidade administrativa, o que é apontado por alguns doutrinadores em virtude de, no âmbito do processo civil, estes já se encontrarem devidamente contemplados dentro da determinação da proteção do juiz natural e da prevalência da boa-fé e proteção da confiança, respectivamente.

O artigo 8º, portanto, apenas sistematizou, organizou e repetiu conceitos indeterminados que já estavam contidas em outras esferas da lei e, principalmente, da Constituição Federal. Entretanto, a tentativa de operacionalizar uma lista de conceitos a se considerar no momento da decisão não pode servir como artifício para o julgador aproveitar da literalidade do texto legal de vaguíssimo sentido para proferir decisões baseadas unicamente em suas próprias concepções pessoais, destruindo, assim, a ilusão na permanência do Estado Democrático de Direito.

 Desse modo, urge repensar os limites da atuação do magistrado no momento em que este interpreta e aplica o Direito, bem como, repensar estratégias para clarear tais limites, uma vez que o artigo analisado deixou claro não só a possibilidade, mas, em verdade, a inescapabilidade de se lidar com conceitos vagos no momento de solucionar as questões jurídicas, tornando, assim, explícita a necessidade de se pensar sobre a função criativa da jurisdição e os meios de exercê-la dentro de uma concepção democrática em uma sociedade plural como é o Brasil hoje.

 3 OS CINZENTOS LIMITES DA ATUAÇÃO DO MAGISTRADO NO EXERCÍCIO DE SUA FUNÇÃO DE APLICAR O DIREITO E A NECESSIDADE DE CLAREÁ-LOS

O modelo silogístico tradicional, no qual se parte da presunção de conhecimento prévio de uma norma jurídica previamente identificada (premissa maior), para a constatação da ocorrência de um fato (premissa menor), gerando, assim, uma inevitável conclusão apta a embasar a tomada de uma ação específica tem sido rechaçado como meio eficiente para a solução dos conflitos jurídicos. Se antes, no período de maior força das codificações, tal modelo de aplicação da lei parecia ser útil, hoje, no contexto do constitucionalismo moderno, é patente a sua insuficiência. Diversos são os motivos que tornaram possíveis se visualizar de modo claro a necessidade de uma alteração de paradigma no momento de se lidar com as normas jurídicas. Um exemplo desse fator é, não só o excesso de textos legislativos atrelada à falta de critérios válidos para se decidir quais normas deles extraídas deve ser aplicada, mas também, e ainda mais complicado, a dificuldade determinação da norma no caso concreto quando são utilizadas cláusulas com termos ambíguos, conceitos vagos, além da atribuição de poderes indeterminados a outros agentes do executivo ou mesmo do judiciário, como nos alerta Guerra (1992, p. 85-90).

No caso especificamente do artigo 8º, a apresentação de diversos conceitos indeterminados que devem ser levados em consideração no momento de guiar o julgador em sua atividade hermenêutica não dá apenas uma possibilidade de atuação, mas gamas variadas delas. Afinal, como definir quais são os fins sociais? O que significariam as exigências do bem comum? Que condutas promovem, de fato, a dignidade da pessoa humana? O que se entende por algo proporcional? Razoável?  Legal? Acessível ao público? E, ainda, como aferir de modo prático e indubitável o meio mais eficiente para atingir certo fim específico?

É de conhecimento já fixado no meio acadêmico a inescapabilidade do caráter subjetivo do julgador no momento de interpretar e aplicar tais critérios. Não consegue o indivíduo escapar de seu próprio horizonte hermenêutico, não sendo a lei algo estanque e separado daquele sujeito que o julga. Há um horizonte de influência recíproca entre aquele sujeito e o objeto analisado, um influenciando o outro em uma espiral hermenêutica, tornando verdadeiramente difícil a fixação prévia dos sentidos de textos de caráter tão abertos e indeterminados, podendo-se chegar, inclusive, a se afirmar a inesgotabilidade dos possíveis sentidos atribuíveis aos textos investigados. (FALCÃO, 2000).

Os conceitos indeterminados possuem diversas possibilidades de concretude e definição para o caso concreto, sendo que sequer o novo microssistema de precedentes judiciais é capaz de limitar tais possibilidades interpretativas de modo significativos, pelo menos, e em pouco tempo. Isso porque, no máximo, o precedente dirá que na ocorrência de um fato concreto “X” este deve ser encarado como incluído dentro de um conceito indeterminado “Z”, porém não é capaz de definir os contornos e limites do que poderá fazer parte e adentrar neste mesmo conceito no futuro, de modo que a zona interpretativa limítrofe continuará cinzenta para um caso “Y”, que não seja extremamente nem semelhante, nem distinto ao caso “X”, como nos alerta (GUERRA, 2016).

Ronald Dworkin (2014), em sua obra, o Império do Direito, estabelece o conceito do romance em cadeia, no qual os operadores do Direito, no momento de sua interpretação-aplicação devem considerar, não um checklist hermenêutico, como o proposto pelo artigo 8º analisado, mas, devem orientar todos atos praticados e as interpretações dele advindas historicamente, de modo a construir o Direito de modo coerente, sem perder de vista que se deve ter em mente uma leitura moral dos princípios de equidade e justiça escolhidos pela comunidade e dispostos na Constituição. Não se trata de reproduzir as interpretações já realizadas, mas de considerá-las no contexto histórico em que foram proferidas, superando-as se for o caso de mudança deste mesmo contexto. Compõe assim seu conceito de magistrado ideal como o de juiz Hércules, que seria capaz de tomar ciência de todos os atos praticados, em todos os tempos do Direito, e, de modo justo e íntegro, proferiria sua decisão como um romance escrito em cadeia, no qual o próximo capitulo deverá ser escrito pelo próximo intérprete sem desconsiderar o capítulo anterior. O teórico, assim, pressupõe que uma forma correta ao interpretar e aplicar a norma, qual seja, aquela que permite manter o Direito íntegro e coerente com as exigências morais abstratas estabelecidas na Constituição, atendendo, em última instância, o anseio dos titulares do poder, o povo, e legitimando o Estado Democrático de Direito. (Art. 1º, §1º da Constituição Federal).

Entretanto, essa concepção teórica não só é de difícil aplicação prática, mas, também, não confere parâmetros claros de modo a permitir que os receptores da decisão, qual seja, as partes do processo e mesmo o povo em geral consiga aferir a racionalidade de tal ato decisório, visto que muito dificilmente será apreensível de modo claro um único percurso coerente no qual a única resposta correta imponha como aquela imprescindível para a solução do caso.

Há a necessidade urgente de se superar a discussão infrutífera tanto daqueles que confiam toda a ênfase na subjetividade do julgador, bem como àqueles que visualizam a salvação na possibilidade hercúlea de aferir o espírito do povo, sem a necessidade do desenvolvimento de qualquer teoria da argumentação subjacente. É preciso, como alertou Demétrio (2017), unir forças para se pensar em meios eficientes para o controle intersubjetivo da atribuição racional de sentidos a textos normativos, através da busca de uma teoria da argumentação que seja compatível com a base teórica já fornecida pela hermenêutica filosófica e que não ignore o inescapável horizonte hermenêutico do julgador no momento em que este realiza seu papel interpretativo.

 O esforço está apenas começando, como nos alerta Guerra (2017), sendo uma de nossas maiores necessidades não mais nos escondermos em críticas vazias ao ativismo judicial, que tomam por pressuposto a possibilidade de encontrar uma única e necessária resposta correta segundo o Direito vigente, quando hoje já se sabe que a atividade criativa do judiciário já não é só inescapável, mas também se impõe como meio de concretização de valores constitucionais que são, inclusive, replicados em bases infra legais, como o dispositivo 8º ora analisado.

De fato, Didier (2015, p. 157) já nos apresenta em seu curso de processo civil a atividade criativa como uma das características da jurisdição, como bem explica no seguinte trecho:

A jurisdição é função criativa. Essa criatividade é ilimitada. Na verdade mais se assemelha a uma atividade de reconstrução: recria-se a norma jurídica do caso concreto, bem como se recria, muita vez, a própria regra abstrata que deve regular o caso concreto.

Assim sendo, deve-se buscar encarar, mais do que antes, o Direto como um instrumento para a obtenção de certos fins os quais, por sua vez, devem ser claramente identificados e definidos de modo mais plural e democrático possível. E isso deve ocorrer não só no âmbito do processo legislativo, mas, também, impõe-se uma maior participação no âmbito do processo judiciário, onde ocorrem diversos processos decisórios criativos a partir da atribuição de sentido a cláusulas indeterminadas. Estas atitudes, aliadas pesquisas sérias sobre a racionalidade dos argumentos utilizados no âmbito jurídico, parecem ser os únicos meios para se manter a crença na manutenção de um Estado Democrático de Direito. Desse modo, será possível desenvolver um meio mais adequado para controlar o conteúdo das decisões judiciais de modo intersubjetivamente aferível, mas que também tenho por foco não uma concepção formalista, mas a consecução de fins efetivamente justos e amplamente debatidos na sociedade.

4 O MAGISTRADO QUE JÁ PODEMOS ESPERAR

Enquanto isso não ocorre, o que podemos fazer desde já não é rechaçar mais uma vez um suposto ativismo, mas é despertar os juízes para a responsabilidade de sua necessária função criativa, através de uma mudança de postura que estes poderiam e deveriam ter adotado ainda antes da promulgação do novo código, por ser um retorno à postura prudencial que marca o início da história do Direito e, talvez, do próprio homem em seu processo de tomada consciente de decisões.

A prudência é o meio pelo qual o homem consegue discernir a melhor decisão a ser tomada no caso concreto, é o agir com retidão, partindo de uma busca sincera da realidade, para, assim, discernir com o auxílio dos destinatários da norma, acerca do Direito aplicável ao caso. Hervada (2008, p. 239-240) nos relembra que toda norma, por seu caráter abstrato e geral precisa ser adaptada para regular o caso concreto. Essa regulação não é realizada, porém, de modo arbitrário, mas de modo prudencial, avaliando-se os aspectos da realidade. Implica, portanto, a aplicação do Direito estabelecido, porém, adaptado às condições reais da vida social.

Essa concepção está de acordo com o já esposado por Didier (2015, p. 161) sobre os dois limites da atividade criativa do órgão julgador que, por um lado, deve não pode fugir totalmente dos enunciados normativos do direito objetivo (Constituição, leis, regulamento, etc.) e, por outro, deve obedecer aos aspectos da realidade do caso concreto que lhe foi submetido.

Para tanto, desde já percebe a necessidade de o julgador buscar conhecer, no mínimo, a literalidade textos legais do Direito positivo, mantendo-se sempre atualizados, bem como, verifica-se a necessidade de que este persiga o máximo possível a verificação da veracidade dos fatos alegados pelas partes dentro do caso submetido à sua análise, de modo a conhecer melhor a realidade que lhe está sendo apresentada. E isto, muito embora seja algo de simples percepção a nível teórico, é de difícil verificação na prática forense, devendo ser exigida tal postura desde já a fim de viabilizar uma perceptível melhora na prestação jurisdicional.

Mas não apenas isso, as partes também têm o dever e a responsabilidade de auxiliar o julgador de modo cooperativo, para que este consiga aferir os elementos da realidade de modo a construir com as partes o sentido daqueles conceitos vagos para a solução daquele caso concreto específico. Portanto, impõe-se que o julgador adote uma postura de escuta ativa dos interesses da parte, bem como das vozes que ressoam na doutrina e na jurisprudência, para, assim, mais próximo da realidade, conseguir proferir uma decisão mais efetiva para a consecução da pacificação social almejada.

Ainda, o juiz deve sempre lembrar que não julga para si, mas para as partes, como um substituto, e, em última instância, julga para toda a população, a qual se organiza de acordo com o modo como o ordenamento jurídico vem sendo aplicado pelo Poder Judiciário. Não pode, portanto, ignorar o contexto político, social e econômico do local onde será aplicado o Direito devendo levar tais fatores em consideração sempre que possível no momento de sua avaliação prudencial e adequação da norma jurídica ao caso concreto.

Hervada (2008, p. 421), no entanto, alerta que o prudente deve cultivar, entre outros, pelo menos as seguintes características: a experiência, a intuição, o conselho, o bom julgamento e a oportunidade do agir. Como também, a equidade ou virtude da resolução dos casos além das normas comuns.

Vistos que tais requisitos não são fáceis de obter senão após muito treino prático e, principalmente, permanente postura moral elevada, aliada à boa dose de discernimento e sabedoria, é importante que o julgador sempre questione criticamente suas próprias crenças e posições presumidas, desconfiando esperançosamente3 de si mesmo, em busca, sempre, de uma razão ainda melhor para suas conclusões, estando sempre aberto alterá-las quando lhe forem apresentadas novas razões a considerar, mantendo-se em uma postura de humildade.

Muito embora talvez nunca se tenham meios para exigir tal elevado nível de virtude aos julgadores, é possível já exigir que estes façam o melhor que puderem em seu processo decisório e apresentem, de modo pormenorizado, as razões conscientes que os levaram a concluir por determinadas decisões em detrimento de outras, como, inclusive, demanda expressamente o artigo 489, §1º, quando trata da necessidade de tornar explícito a fundamentação das decisões judiciais.

Entretanto, para que isso seja feito de modo mais eficaz possível, não basta a prescrição legal que indique o que não se deve fazer ao fundamentar uma decisão judicial, mas é necessário e urgente que os juristas aprendam efetivamente a realizar de modo claro construções lógicas, objetivas e bem fundamentadas, mediante a utilização do raciocínio crítico e da argumentação jurídica que pressuponham o atual contexto do constitucionalismo o brasileiro contemporâneo. Isso, infelizmente, ainda é pouco levado em consideração dentro do contexto de seleção e formações de magistrados, ou mesmo, antes, no contexto de formação universitária no ensino do Direito Brasileiro.

Assim, enquanto ainda não temos os meios para fortalecer o nosso processo decisório de uma forma plural e democrática, determinando de modo claro os fins almejados no caso concreto, bem como ainda não há acordo quanto à forma adequada de proporcionar um controle intersubjetivo para verificação da correção das decisões judiciais, o que podemos começar a fazer é acordara consciência dos integrantes do processo acerca da necessidade da adoção de um agir mais pautado na ética e na virtude. Ao sair da dormência, e ao começar a se questionar sobre os critérios morais válidos que devem guiar o agir humano no mundo, o jurista estará, enfim, um pouco mais preparado para compreender o outro e, assim, buscar cooperativamente soluções mais efetivas e aptas à promoção da paz e da justiça social.

5 CONCLUSÃO

É possível observar que, pelo caráter vaguíssimo dos conceitos trazidos pelo artigo 8º do Código de Processo Civil não há ainda como saber se este será utilizado para amparar um processo decisório prudencial, com ampla participação das partes e da sociedade, ou como meio de perpetração de voluntariedade e discricionariedade judicial. Entretanto, espera-se que o dispositivo sirva como um alerta, para aqueles que ainda não tinham percebido, no tocante à inescapabilidade da função criadora do magistrado, a qual, por sua vez, não deve ser realizada de modo solitário, mas demanda um esforço conjunto da sociedade, acadêmicos de Direito, professores, doutrinadores, legisladores e juízes para que se possa ser desenvolvido um meio para obtenção de uma sociedade mais ética, justa, fraterna, solidária e promotora da paz social.

Para tanto, é necessário investigar como auxiliar os julgadores a identificar as respostas mais adequadas ao caso, sendo imprescindível que isso seja feito por meio de uma argumentação racional que leve em consideração todos os elementos que se tenham acesso naquela oportunidade.

Assim sendo, mais do que a necessidade de textos normativos melhores, é preciso uma mudança de postura do julgador e das partes envolvidas: as partes passam a ter uma postura mais ativa e cooperativa e o juiz, por sua vez, deve se engajar para buscará de modo ético identificar uma resposta coerente com o contexto decisório, ainda que tal conclusão seja necessariamente provisória e mutável. Ainda que não possamos exigir tudo o que precisamos hoje, um único julgador que assuma uma postura de humildade, que escute as partes e que tenha consciência ética e moral elevada voltada a buscar realmente resolver a questão submetida a sua análise já auxiliará bastante a sociedade a conseguir boa parte do intento almejado em uma prestação jurisdicional célere e efetiva ao servir de exemplo e inspiração aos demais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1 Como já foi apreciado melhor em outro trabalho: Lima, Stephane H. B. Discussões acerca da (im)prescindibilidade do inciso iv, §1º do artigo 489 do Novo CPC no ordenamento jurídico brasileiro: a fundamentação das decisões judiciais a partir da análise de todos os argumentos deduzidos no processo, In Lara Dourado Mapurunga Pereira et all [org] Novo código de processo civil: perspectivas e desafios: estudos em homenagem ao professor Daniel Gomes de Miranda. Rio de Janeiro: Lumen, p. 337-356.

2 Como tantas vezes denunciado por juristas como Lênio Streck, que lidera, na ordem nacional, a crítica ao ativismo judicial, como pode ser facilmente observado rotineiramente em sua coluna “Senso Incomum” no site Cojur.

3 A ideia de uma desconfiança esperançosa foi transmitida em uma aula de graduação da disciplina Teoria Geral do Direito, no âmbito na Universidade Federal do Ceará, pelo professor Marcelo Lima Guerra, em 2017, o qual afirmou que a mera desconfiança da própria crença ou da crença de terceiros paralisa aquele que desconfia; mas aquele que tem a postura de uma desconfiança esperançosa questiona as crenças já preestabelecidas apenas a fim de possibilitar a permanência na busca de outras que possam oferecer, ainda, melhores razões do que a anteriormente adotada.

Imagem disponível em: <https://oab.grancursosonline.com.br/papel-do-magistrado-muda-com-novo-codigo-de-processo-civil-afirmam-operadores-do-direito/>. Acesso em: 26 de dezembro de 2018.
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