Uma das mais importantes notícias das últimas semanas veio à tona segunda-feira, dia 27, concernente aos expurgos inflacionários. A Advocacia-Geral da União (AGU) conseguiu reunir a Frente Brasileira dos Poupadores (Febrapo), o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) e a Federação Brasileira de Bancos (Febrapan) para apresentação de um acordo a ser protocolado no Supremo Tribunal Federal (STF), visando solucionar uma das mais longevas e mais abrangentes disputas judiciais no Brasil.
Porém, para muitas pessoas, em especial as mais jovens, essa parece ter sido só mais uma daquelas várias notícias que não parecem fazer muito sentido ou que não as afetam diretamente, de modo a não despertar tanto interesse. Ocorre que esse é um pensamento equivocado, pois o tal acordo trata de um possível desfecho de uma das maiores e mais longas celeumas judiciais e que eliminará uma grande “pedra no sapato” do Judiciário e de muitos cidadãos brasileiros. Frise-se que, segundo o relatório “Supremo em Ação”, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que é de 2017 e adota como base o ano de 2016, sete em cada dez processos sobrestados em todo o Brasil referem-se aos planos econômicos.
Mas o que de fato foi acordado entre a AGU, a Febrapo, o Idec e a Febrapan? Ou, melhor dizendo, o que são expurgos inflacionários?
Os expurgos inflacionários
O Brasil, como qualquer outro país do mundo, viveu períodos bastante conturbados nas últimas décadas. No nosso caso, se em 1985 o povo comemorava o fim do regime militar, ao mesmo tempo tinha que lidar com uma “herança” deixada por este: uma crise econômica aparentemente incontrolável que tendia a crescer.
A principal característica dessa crise foi a tão temida hiperinflação. Esta se caracteriza por apresentar um estado de coisas em que a inflação é tão alta e descontrolada que os preços das mercadorias tornam-se instáveis, aumentando quase que diariamente, e as pessoas reagem evitando reter dinheiro. Assim, se em um dia os produtos básicos custavam “X”, no dia seguinte custariam “X+n”, e no seguinte “X+2n”, e assim sucessivamente. A população, sabendo que amanhã ou na próxima semana os preços provavelmente estariam maiores, consumia seus produtos o mais rápido possível, evitando poupar. Então, o desastre econômico se instala: se as pessoas consomem rapidamente, ocorre uma pressão inflacionária enorme que só estimula o aumento diário dos preços¹. Em outras palavras, o Brasil vivia uma inflação que só gerava mais inflação, de modo que essa evoluía rapidamente e chegava a patamares absurdamente altos.
Obviamente, o Governo precisava adotar alguma medida. A hiperinflação foi o maior “vilão” brasileiro do final dos anos 80 e início dos anos 90. Esse “vilão” só foi derrotado em 1994, com a implementação do Plano Real, que teve como mentores alguns dos melhores economistas do Brasil (pessoas do quilate de André Lara Rezende, Pérsio Arida, Gustavo Franco, Edmar Bacha, Pedro Malan…). Porém, antes dele, vários outros planos econômicos tentaram corrigir o problema: Plano Cruzado, de 1986; Plano Bresser, de 1987; Plano Verão, de 1989; Plano Collor 1, de 1990; e Plano Collor 2, de 1991.
Acredita-se já ser de conhecimento público que todos esses planos fracassaram. Entretanto, além de terem sido um fiasco, geraram um prejuízo ainda maior aos brasileiros. Afetaram diretamente as cadernetas de poupança, alterando o índice de correção do dinheiro nelas depositado (sim, em crises econômicas de um modo geral há uma tendência de as pessoas pouparem menos dinheiro, mas isso não quer dizer que muitos não o fizessem).
Quando os brasileiros depositavam valores na poupança, estava estipulado contratualmente um determinado índice de correção. Porém, quando intervieram os planos econômicos, o índice baixou, de forma que o dinheiro, ao ser sacado, retornava em uma quantia bem menor do que a estipulada contratualmente.
O caso mais sintomático foi o do Plano Collor 1. Um dia após Fernando Collor de Mello ser nomeado Presidente da República, sua equipe econômica anunciou que quaisquer quantias acima de 50 mil cruzados novos que estivessem em depósito bancário, incluindo caderneta de poupança, fossem congeladas e transferidas ao Banco Central. De fato, dois anos depois da medida, os valores foram restituídos aos poupadores, mas reajustados conforme a taxa BTNF, aplicada pelo Banco Central, que era bastante inferior ao Índice de Preços ao Consumidor (IPC), a taxa de inflação à época.
Diante do fato, mais de 1 milhão de brasileiros ingressaram no Judiciário requerendo os expurgos inflacionários, que são justamente a diferença entre a quantia que os poupadores esperavam sacar (poupança remunerada pelo índice previsto no contrato, anterior a cada plano econômico) e o valor que eles de fato receberam (corrigido pelos planos econômicos). Alegam, para tanto, quebra de contrato, enquanto os bancos acionados, que teriam se apropriado dos expurgos inflacionários, alegam que estavam apenas seguindo determinações do Governo e que, portanto não deveriam ser responsabilizados.
Devido à inflação galopante da época, pode-se perceber o tamanho do prejuízo que tantos brasileiros tiveram. É lógico que muitos sofreram danos relativamente pequenos, mas mesmo assim isso mostra como planos econômicos desastrados podem gerar prejuízos financeiros diretos a tantas pessoas e por tanto tempo.
O acordo
Centenas de milhares de ações sobre o tema tramitam no Judiciário há três décadas. Lógico que houve contratempos durante todo esse tempo. Em 2010, por decisão do Ministro Dias Toffoli, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu todos os processos concernentes aos expurgos inflacionários que estavam pendentes de julgamento. Mais uma má notícia aos poupadores.
Em 2017, houve uma grande reviravolta. Não só o Judiciário sinalizou de forma favorável, como também as associações ligadas aos poupadores e aos bancos intensificaram negociações extrajudiciais para resolver de vez o problema.
A consequência é que a AGU, a Febrapo, o Idec e a Febrapan deram publicidade a um acordo que visa pôr fim a toda essa longeva controvérsia. O pacto não está concluído, de modo que ainda há alguns pontos a serem fechados e algumas novas tratativas podem ser acrescentadas. Porém, está previsto que na próxima segunda-feira, dia 4, a minuta completa já será devidamente assinada e apresentada ao STF para que seja homologada judicialmente e adquira eficácia de título executivo.
Estima-se que mais de R$ 10 bilhões sejam devolvidos aos poupadores. Esse valor já estaria provisionado pelos bancos, sendo R$ 4,6 bilhões apenas do Banco do Brasil. Porém, é provável que o dinheiro gasto para pagar os expurgos inflacionários após o acordo seja bem menor do que o que está provisionado.
Os termos do acordo
Ainda não ficaram claras as principais condições do acordo, pois poucas foram tornadas públicas e algumas ainda estão incompletas. Porém, alguns pontos já podem ser destacados:
– O poupador deve desistir da ação que está em curso contra alguma instituição financeira, devendo haver desistência também de ações coletivas.
– Não é necessário que a conta poupança esteja ativa, mas, caso não esteja, cabe ao poupador o ônus de provar que tinha a conta e a quantidade de dinheiro nela depositada. Trata-se de uma tarefa complicada, uma vez que muitos bancos demandados já não existem mais.
– Até um determinado valor ainda não divulgado o pagamento será feito à vista. Após esse teto o restante devido deverá ser parcelado em até três vezes.
– A correção do valor a ser recebido pelo poupador será fixa de acordo com a quantidade de dinheiro depositada na época de cada plano econômico, de modo que a quantia total a ser recebida deverá ser menor do que receberia o poupador se sua ação fosse julgada procedente. Também há a hipótese de que o valor a ser recebido pelo poupador varie conforme sua idade.
– Os pagamentos estão agendados a ser procedidos em janeiro e fevereiro de 2018.
Alguns outros pontos ainda não foram estipulados, como se o pagamento será em dinheiro vivo ou depósito bancário, e as instituições ligadas aos poupadores ainda estão tentando estipular no acordo a possibilidade de pessoas que não entraram na Justiça dentro do prazo de prescrição possam aderir a ele. Porém, o maior ponto de resistência dos bancos, que era o valor inicial a ser pago, já foi acertado.
Calcula-se que menos de 1 milhão de poupadores que ingressaram com ações individuais beneficiar-se-ão do acordo, pois cerca de 11% não teriam comprovação de extrato bancário ou de declaração de renda, sendo consideradas fraudes. No que tange às ações coletivas, das cerca de 300 ajuizadas, apenas 30 ainda estão em tramitação e deverão ser consideradas para o acordo.
Mas por que essa notícia é tão importante? Quem dela se beneficia?
De fato, todos ganham com isso. Para os bancos a vantagem é óbvia, visto que conseguiram desconto no pagamento da quantia que devem. Aparentemente pagarão bem menos do que haviam provisionado para quitar os expurgos inflacionários em eventual condenação judicial. Ademais, eliminaram um grande fator de risco, pois havia durante muito tempo grandes incertezas acerca do resultado das ações no Judiciário, sendo o ganho de causa dos poupadores até mais provável. Isso foi o bastante para que as ações dos bancos listados na Bolsa de Valores se valorizassem.
Para os poupadores, a vantagem também é clara, pois representa o último capítulo de um longo drama que se estendeu durante três décadas. Finalmente poderão adquirir pelo menos parte dos expurgos inflacionários, aquele dinheiro tão almejado depois de tantas frustrações com os planos econômicos de outrora. Como se diz, “tempo é dinheiro”, e para a maioria das pessoas é mais válido ganhar certa quantia agora do que esperar ganhar uma quantia maior em um tempo imprevisível, indeterminável, em que elas talvez nem mais estivessem vivas.
Até mesmo para a população em geral, mesmo para aqueles que não eram nascidos ou não tinham dinheiro em caderneta de poupança nos anos 80, o acordo é vantajoso. Em termos macroeconômicos, é mais um estímulo à economia. Em um país em que a inflação caiu vertiginosamente e em que o setor produtivo volta a crescer a passos modestos, necessitando de algum estímulo, mais dinheiro na mão dos consumidores gera um aquecimento favorável no mercado. É como se o Governo injetasse R$ 10 bilhões na economia no próximo ano, mas sem gastar um tostão.
O que se conclui é que, de fato, esse acordo foi uma das melhores notícias para o Brasil nesse segundo semestre de 2017. Eliminou uma dor de cabeça de muita gente. Mas o que mais impressiona é que toda essa dor de cabeça foi gerada principalmente por dois velhos problemas bastante conhecidos e que tanto acompanham a nossa história: políticas econômicas desastrosas e lentidão no Judiciário. Para as instituições financeiras, esses dois problemas, nesse caso específico, podem até ter sido vantajosos. Porém, para as centenas de milhares de brasileiros que tiveram suas poupanças pessoais manipuladas pelo Governo, esperar 30 anos (ou quase isso) para a satisfação de um crédito em uma quantia menor da que era devida pode até trazer algum alívio, mas, por outro lado, mostra um pouco do que é Pindorama.
Referências:
¹ Há países, como o Japão, que vivem o que se pode chamar de “hiperdeflação”. É justamente o oposto: como a população tem sempre a expectativa de que os preços de amanhã sejam menores que os de hoje, ela tende a cada vez mais poupar dinheiro, esperando que nos dias seguintes gastem menos. Ou seja: é uma deflação que gera mais deflação. Como não há consumo, o setor produtivo não se desenvolve. Isso faz com que a economia japonesa esteja há mais de 20 anos estagnada.
https://g1.globo.com/economia/noticia/bancos-e-poupadores-chegam-a-acordo-sobre-perdas-de-planos-economicos-das-decadas-de-80-e-90.ghtml
http://www.valor.com.br/brasil/5209173/bancos-fecham-acordo-para-pagar-r-10-bi-poupadores
http://www.valor.com.br/brasil/5209791/menos-de-1-milhao-de-poupadores-podem-receber-por-perdas-com-planos
http://www.valor.com.br/financas/5210645/banco-pode-ganhar-com-acordo-em-planos
Relator de recursos especiais profere voto favorável aos poupadores em caso envolvendo expurgos inflacionários
http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/08/f8bcd6f3390e723534ace4f7b81b9a2a.pdf
SANDRONI, Paulo. Dicionário de Economia do Século XXI. 8. ed. Rio de Janeiro: Record, 2014.
Imagem: https://febrapo.org/2017/07/11/acordo-entre-bancos-e-poupadores-deve-sair-ate-agosto/