Para elucidar a questão levantada no título da matéria, deve-se ter em mente o principal instrumento normativo a respeito do tema: a Lei 11.343/2006 ¹ ou, como é mais conhecida, a Lei de Drogas, a qual, diga-se de passagem, nunca deixou de ser tema de calorosos debates, a despeito dos seus mais de dez anos de vigência.
Primeiramente, é elementar perquirir o que é tido como “droga” para fins de aplicação da lei penal. Aliás, esse termo é uma novidade trazida pela Lei 11.343/2006, vez que a denominação utilizada na legislação revogada (Lei 6.368/1976) era “substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica”². Segundo a Lei de Drogas vigente:
Art. 1o Esta Lei institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e define crimes.
Parágrafo único. Para fins desta Lei, consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União.
—————————————————————————————————————————-
Art. 66. Para fins do disposto no parágrafo único do art. 1o desta Lei, até que seja atualizada a terminologia da lista mencionada no preceito, denominam-se drogas substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outras sob controle especial, da Portaria SVS/MS no 344, de 12 de maio de 1998.
[Grifamos]
Como se percebe, os dispositivos supracitados nos remetem a outras normas para se obter a definição exata do que é considerado droga, no caso, a Portaria n° 344³ da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), um caso típico de norma penal em branco heterogênea⁴. Assim, “ainda que determinada substância seja capaz de causar dependência física ou psíquica, se ela não constar da Portaria SVS/MS 344/98, não haverá tipicidade”⁵.
Fixados os parâmetros para identificar determinada substância como sendo droga para fins de aplicação da Lei 11.343/2006, têm-se condições de adentrar no cerne da questão. Para tanto, é fundamental estar atento à dicção do art. 28 da Lei de Drogas:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I – advertência sobre os efeitos das drogas;
II – prestação de serviços à comunidade;
III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
§ 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
[…]
[Grifamos]
O supramencionado dispositivo é aquele no qual normalmente se enquadra o usuário de substâncias ilícitas. É um exemplo claro de crime de ação múltipla ou de conteúdo variado⁶, cujos núcleos são os seguintes: adquirir, guardar, ter em depósito, transportar e trazer consigo. Então, pergunta-se: o legislador penal inseriu o verbo “consumir”, “fazer uso” ou qualquer expressão equivalente dentre as condutas típicas do art. 28?
A resposta é, logicamente, negativa. Embora a locução “consumo pessoal” seja reiteradamente utilizada ao longo do artigo, essa expressão serve para qualificar a finalidade das ações efetivamente tipificadas, ou seja, o objetivo do agente ao adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo a substância entorpecente deve ser o consumo pessoal, sob pena de incidir norma penal mais gravosa, como o art. 33⁷.
Não obstante seja comum que o usuário, antes de consumir a droga, acabe praticando uma das condutas tipificadas, é possível que o indivíduo faça uso de entorpecente sem incorrer em infração penal alguma.
Basta imaginar um exemplo hipotético no qual um adulto, penalmente imputável, participe de uma festa na qual o organizador, inesperadamente, lhe deixe a disposição uma mesa com certa quantidade de cocaína; o indivíduo, então, aproxima-se da mesa e, sem praticar qualquer outra ação, inala o pó por inteiro. Nos moldes descritos, o rapaz que fez uso da cocaína praticou um ato penalmente indiferente.
Mencione-se que, desde a égide da Lei 6.368/1976, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal é no sentido de inexistir delito na estrita conduta daquele que tão somente faz uso de substância ilícita, admitindo-se, no máximo, a posse incontinenti ao consumo, conforme é evidenciado pela jurisprudência⁸:
ENTORPECENTES – POSSE PARA USO PRÓPRIO – INEXISTÊNCIA DO CRIME OU, DE QUALQUER SORTE, DE PROVA INDISPENSÁVEL À CONDENAÇÃO – HABEAS CORPUS DEFERIDO POR FALTA DE JUSTA CAUSA – 1. É mais que razoável o entendimento dos que entendem não realizado o tipo do art. 16 da Lei de entorpecentes (L. 6.368/76) na conduta de quem, recebendo de terceiro a droga, para uso próprio, incontinenti, a consome: a incriminação do porte de tóxico para uso próprio só se pode explicar – Segundo a doutrina subjacente à lei – Como delito contra a saúde pública, que se insere entre os crimes contra a incolumidade pública, que só se configuram em fatos que “acarretam situação de perigo a indeterminado ou não individuado grupo de pessoas” (Hungria). 2. De qualquer sorte, conforme jurisprudência sedimentada, o exame toxicológico positivo da substância de porte vedado é elemento essencial à validade da condenação pelo crime cogitado, o que pressupõe sua apreensão na posse do agente e não de terceiro: impossível, assim, imputar a alguém a posse anterior do único cigarro de maconha que teria fumado em ocasião anterior, se só se pode apreender e submeter à perícia resíduos daquela encontrados com o outro acusado, em contexto diverso.
[Grifamos]
Com efeito, a atipicidade da conduta descrita no exemplo é uma verdadeira decorrência do princípio da alteridade ou transcendentalidade do Direito Penal, o qual “proíbe a incriminação de atitude meramente interna, subjetiva do agente e que, por essa razão, revela-se incapaz de lesionar o bem jurídico”⁹. Em outras palavras, se uma conduta não atingir ou ameaçar direito alheio, restringindo-se ao âmbito particular do agente, por mais que lhe cause algum dano, não merece ser incriminada.
Dessarte, em resposta à indagação inicial, a exata conduta de consumir ou fazer uso de drogas não é crime, sendo atípico, inclusive, o porte da substância ilícita desde que não se estenda por um período de tempo superior ao estritamente necessário para consumi-la. Porém, cuidado: atos comumente praticados antes do uso de entorpecentes, como adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, ensejam de maneira inequívoca a aplicação do art. 28 da Lei 11.343/2006.
Referências: [1] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm. Acesso em 05 abr. 2017. [2] Art. 2º Ficam proibidos em todo o território brasileiro o plantio, a cultura, a colheita e a exploração, por particulares, de todas as plantas das quais possa ser extraída substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6368.htm. Acesso em 05 abr. 2017. [3] Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/svs/1998/prt0344_12_05_1998_rep.html. Acesso em 05 abr. 2017. [4] De acordo com Cleber Masson (2015), na lei penal em branco heterogênea ou em sentido estrito, “o complemento tem natureza jurídica diversa e emana de órgão distinto daquele que elaborou a lei penal incriminadora”. [5] LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada: volume único. 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 696. [6] Nos crimes de ação múltipla, de condutas variáveis ou fungíveis, “a lei penal descreve duas ou mais condutas como hipóteses de realização de um mesmo crime, de maneira que a prática sucessiva dos diversos núcleos caracteriza um único delito” (MASSON, 2015). [7] Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. [...] [8] STF - HC 79189 - 1ª T. - Rel. Min. Sepúlveda Pertence - DJU 09.03.2001 - p. 00103. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=77996. Acesso em 05 abr. 2017. [9] CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: volume 1, parte geral: (arts. 1º a 120). 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 32 [10] MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado: Parte geral – vol.1. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.