O termo “crime hediondo”, embora frequentemente mencionado no âmbito jurídico e na mídia em geral, é muito pouco conhecido pelo que realmente é. A maioria das pessoas consegue facilmente associar tal denominação a algo pior que os outros crimes, mas poucos são os que sabem a razão disso.
Inicialmente, vale mencionar que a denominação “hediondo” é atribuída para aqueles crimes cujas circunstâncias (fato gerador, execução do ato, etc.) se mostram mais chocantes e apresentam maior indignação moral por parte da população. A título de exemplo, um latrocínio (roubo seguido de morte) é socialmente mais reprovável que o simples roubo.
Dito isso, deve-se mencionar que é em tal classificação (puramente conceitual) que a maioria da população se detêm ao definir essa classe de crimes. Não sabem, por exemplo, que legalmente esse conceito é muito mais restrito, pois existe uma lei própria (lei 8.072/1990) para definir quais crimes são assim classificados.
Uma abordagem histórica nos motivos que ensejaram a criação dessa lei nos mostra que, da década de 80 até o início dos anos 90, os índices de criminalidade aumentaram vertiginosamente. Roubos a banco, homicídios, estupros e latrocínios eram cada vez mais frequentes, e a população brasileira passou a cobrar soluções dos governantes. Curiosamente, devido ao fato de que eram todos crimes puníveis com base no Código Penal, houve uma maior cobrança no que se refere a punições mais severas, como pena de morte ou prisão perpétua.
A resposta dos criminalistas foi dada na Assembleia Nacional Constituinte em 1987, momento em que o tema foi debatido, e apesar do clamor popular, não se decidiu muito no sentido da punibilidade desses crimes. A Constituição Federal de 1988, por sua vez, em seu art. 5º, XLIII, usou pela primeira vez a expressão “crimes hediondos”, atestando a necessidade de uma legislação diferenciada para determinados tipos de delitos, que seriam inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia. O inciso incluía ainda os crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e terrorismo nessa classe penal.
A lei de crimes hediondos, entretanto, só foi sancionada em julho de 1990, trazendo um rol taxativo dos crimes que, por sua repugnância e reprovabilidade social, foram assim nomeados. Essa lista já foi modificada ao longo de seus 25 anos de vigência, período em que novos tipos penais foram adicionados, enquanto outros foram retirados dessa lista.
Primeiramente, é importante dizer que alguns dos crimes que não mais aparecem no rol do referido art. 1º ainda podem ser considerados hediondos, mesmo se tratando de uma lista taxativa. Isso ocorre porque esses tipos penais foram incorporados a outros crimes que figuram na lista.
Como exemplo, o crime de atentado violento ao pudor, que figurava nessa lista, foi incorporado ao crime de estupro (art. 213 CP), que ao englobar a definição do primeiro em sua própria, tornou desnecessária a existência daquele, já que o crime de estupro também figura no rol dos crimes hediondos. Com efeito, as ações que antes configuravam atentado violento ao pudor ainda são consideradas crimes hediondos, mas agora são enquadradas como estupro.
Dizer que o rol do art. 1º da lei 8.072/90 é taxativo importa afirmar que somente aqueles delitos ali expostos são considerados hediondos. Por mais comum que tenha se tornado a palavra “hediondo”, principalmente na mídia televisiva, muitas vezes ela se não se apresenta em sua concepção jurídica. Nesse sentido, deve-se atentar a algumas características que, ao longo dos anos, essa legislação foi adquirindo, e podem causar certa confusão no intérprete.
Muito se fala da taxatividade atribuída a esta lista de crimes e, dependendo do caso concreto, essa relativa falta de flexibilidade da regra pode ensejar verdadeiras aberrações jurídicas. Esclarecendo: quanto ao crime de vilipêndio a cadáver (art. 212 CP), que trata da violação, desrespeito ao cadáver ou às cinzas, por maior que possa ser o sentimento de repugnância da população e a rejeição social por tal crime (reações que no passado ensejaram a criação da lei 8.072/90), em uma primeira análise ele não é considerado hediondo, uma vez que não figura no mencionado rol do art. 1º.
Apesar dessa relativa rigidez da letra da lei, vale dizer que esta também apresenta suas exceções. Basta dizer que o julgador pode, no caso concreto, optar por retirar de um crime a tipificação de hediondo e vice-versa. Tudo depende das circunstâncias em que o ato é praticado. Não se pode esquecer que o magistrado tem o condão de, considerando os fatos narrados, escolher por atribuir pena mais branda.
Essa ideia se torna visível nos casos de crime privilegiado, em que mesmo restando tipificado o crime hediondo, as circunstancias em que se deu o caso concreto demonstram certo valor moral e menor reprovabilidade no crime em si. Um pai que assassina um homem que estuprou sua filha é certamente um caso que, por mais que ainda enseje punição para o autor do crime, não aduz a mesma indignação social que um homicídio simples, pois foi executado em razão de relevante valor moral, ou outras razões que diminuam a reprovabilidade do delito perante o juiz ou a população em geral.