1 Mudanças históricas acerca da proteção do Meio Ambiente
A história do Direito Ambiental é marcada por modificações no escopo das normas que tratam direta ou indiretamente da matéria ambiental. Enquanto na Antiguidade e na Idade Média o objetivo das normas era permitir a produção de alimentos e a criação de animais, na Idade Moderna, principalmente a partir do marco histórico que representaram as Grandes Navegações, as normas destinaram-se a assegurar que tais explorações fossem feitas no interesse das metrópoles coloniais.
Assim foi no caso do Brasil. As primeiras leis objetivavam restringir a exploração do pau-brasil pela coroa portuguesa, por exemplo, transformando em crime o contrabando de madeira. Tinham, portanto, o claro fim econômico de monopolizar a exploração e o uso da valiosa madeira.
Com o passar do tempo, no entanto, sobremaneira a partir do segundo pós-guerra, a perspectiva de interação do homem com a natureza se modificou. Com o avanço tecnológico incessante desde a Revolução Industrial, a capacidade humana de infligir dano ao Meio Ambiente tornou-se superior à capacidade da natureza de absorver e recuperar-se de tais danos.
Nesse sentido, o início da tomada de consciência a respeito das mudanças climáticas, dos danos ambientais e, principalmente, da poluição se deu com a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, ocorrida em Estocolmo, na Suécia, em 1972. Tal Conferência pode ser referida como principal evento representante de uma mudança paradigmática acerca da visão e das relações humanas com o Meio Ambiente a nível internacional. Assim, configurava-se uma visão em que o antropocentrismo, paradigma surgido na Grécia Antiga e resgatado no Renascimento, seria mitigado por uma visão mais próxima do biocentrismo, na qual o Meio Ambiente representaria um papel mais relevante para a compreensão das relações humanas e para a própria manutenção da vida na Terra.
As mudanças quanto à visão que se tinha do Meio Ambiente como mera fonte de recursos se tornaram expressivas em diversas legislações ao redor do mundo, chegando a ser elevada a nível constitucional, como no caso do Brasil, em que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 225, preleciona:
“Todos têm direito ao Meio Ambiente ecologicamente equilibrado […] impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (BRASIL, 1988).
A nova concepção acerca do Meio Ambiente, descrito como bem de uso comum do povo e elevado a categoria de direito fundamental de terceira dimensão, tornou necessária a sua proteção não mais com o viés e objetivo econômicos de outrora, mas com a intenção de preservá-lo para a humanidade.
Resultado dessa visão adotada com sabedoria pelo legislador constituinte foi a inclusão e enunciação de diversos princípios orientadores do Direito Ambiental como o do poluidor-pagador, plasmado no parágrafo segundo do supracitado artigo constitucional. A par disso, inovações de monta foram introduzidas no ordenamento jurídico brasileiro.
É como uma dessas inovações que a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica, ao lado das responsabilidades administrativa e civil, surge como elemento fundamental para a prevenção e repressão das condutas ilícitas que prejudicam o Meio Ambiente, conforme anuncia o parágrafo terceiro.
2 Interpretação da Constituição e da Lei nº 9605/98 e responsabilidade penal da pessoa jurídica
Acerca da responsabilidade penal, Bitencourt (2015, p. 438) ensina que “desde que o pensamento sistemático se consolidou na dogmática jurídico-penal, a atribuição de responsabilidade penal é entendida como um processo valorativo escalonado de imputação”. Assim, o cerne da possibilidade de responsabilizar penalmente qualquer indivíduo seria sua condição de consciência sobre a prática delituosa, de forma que ser “inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento” (Idem) isenta o autor da conduta ilícita de pena, por força da determinação do artigo 26 do Código Penal.
Prenuncia-se, então, a dificuldade de compreender a possibilidade de responsabilizar o ente dotado de personalidade jurídica, posto que não possui materialização, o que pode levar a crer que a pessoa jurídica não pode ser sujeito ativo de conduta delituosa, uma vez que lhe faltaria elemento fundamental para a constituição do crime, a imputabilidade, excluindo sua culpabilidade. Tal pensamento se traduz nas palavras de Bitencourt (2016, p. 40): “como se poderá exigir que uma empresa comercial ou industrial possa formar a ‘consciência da ilicitude’ da atividade que, por intermédio de seus diretores ou prepostos, desenvolverá?”.
Desconsidera o aludido penalista, no entanto, de teoria antiga do Direito Civil acerca da representação, instituto de suma importância para a compreensão das relações jurídicas que envolvem os entes morais. A dogmática civilista tem como certa a existência de duas vontades distintas no caso da representação: a do representante, que é manifestada para a geração de direitos e obrigações, e a do representado, sobre cuja órbita jurídica produzem efeito as manifestações do representante, tal como ensina Caio Mario da Silva Pereira (2015, p. 514): “a vontade manifestada é a do representante, mas o direito ou a obrigação é do representado”.
Prova clara disso obtém-se da interpretação do artigo 119 do Código Civil, que prevê que
“art. 119. É anulável o negócio jurídico concluído pelo representante em conflito de interesses com o representado, se tal fato era ou devia ser do conhecimento de quem com aquele contratou” (BRASIL, 2002).
Ora, a possibilidade de haver contrariedade de interesses só pode existir se houver pelo menos dois interesses, duas vontades distintas, sendo uma do representado, caso da pessoa jurídica e de incapazes de exprimir vontade, e a outra do indivíduo dotado pela lei ou por contrato do poder de representação.
Assim, a própria legislação civil, responsável por regular a existência jurídica dos entes morais, reconhece a existência, no instituto da representação, de duas vontades distintas. Logo, a tese da incapacidade de intuito ilícito da personalidade jurídica é confrontada pela própria realidade de manifestação de vontade pelas pessoas jurídicas por meio de seus representantes.
Tais manifestações, inclusive, adquiriram, na modernidade, capacidade de produção de efeitos amplamente palpáveis e destrutivos na realidade, como no caso da cidade mineira de Mariana, no qual a má condução de suas atividades tornou uma empresa mineradora responsável por um dos maiores danos ambientais da história do país. Destarte, não faz sentido que as pessoas jurídicas, capazes de tais feitos, permaneçam incapazes de sofrer responsabilização penal.
Assim é que a Constituição Federal estabelece, no parágrafo terceiro de seu artigo 225, a possibilidade de responsabilização, não somente administrativa e civil, mas também penal, da pessoa jurídica além daquela que couber à pessoa física (BRASIL, 1988). Faz-se clara a intenção do legislador constituinte, capaz de inovar com profundidade a ordem jurídica, de conferir maior proteção ao Meio Ambiente por meio da penalização das condutas identificadas em lei e imputadas à prática delituosa de entidades dotadas de personalidade jurídica.
Em consonância com as determinações constitucionais, a Lei nº 9605/98, que dispõe sobre os crimes e a responsabilidade penal cabível, prevê, em seu artigo terceiro, que
“art. 3. As pessoas jurídicas serão responsabilizadas […] penalmente […], nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade” (BRASIL, 1998).
Assim, fica consolidada a possibilidade de responsabilização penal da entidade jurídica não só em face da proteção constitucional como também da legislação infraconstitucional, aplicando-se à pessoa jurídica penas compatíveis com sua realidade nos termos da referida lei. Assim inova-se inclusive em relação à teoria da pena, expondo a falibilidade da malfadada pena de prisão como esperança maior de sanção às condutas ilícitas.
3 Imputação simultânea da pessoa jurídica e da pessoa física: necessidade?
A partir da análise de decisões do Superior Tribunal de Justiça, percebe-se que o já debatido tema da possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica ganha outro ponto polêmico quando se trata da necessária ou desnecessária imputação concomitante da entidade moral e da pessoa física.
Sobre isso o Sodalício já se pronunciou pela necessidade:
EMENTA: PROCESSUAL PENAL. RESCURSO ESPECIAL. CRIMES CONTRA O MEIO AMBIENTE. DENÚNCIA REJEITADA PELO E. TRIBUNAL A QUO. SISTEMA OU TEORIA DA DUPLA IMPUTAÇÃO. Admite-se a responsabilidade penal da pessoa jurídica em crimes ambientais desde que haja a imputação simultânea do ente moral e da pessoa física que atua em seu nome ou em seu benefício, uma vez que “não se pode compreender a responsabilidade do ente moral dissociada da atuação de uma pessoa física, que age com elemento subjetivo próprio” cf. Resp n° 564960/SC, 5ª Turma, Relator ministro Gilson Dipp, DJ de 13/06/2005 (Precedentes). Recurso especial provido. ( REsp nº 889528/SC, 5ª Turma, Relator Ministro Felix Fischer, julgado em 24/11/2009, DJ de 18/06/2007, p. 303).
No entanto, tal entendimento dificulta a penalização da entidade moral como autora das condutas ilícitas, já que atribui o elemento subjetivo apenas à pessoa física, considerando que a pessoa jurídica, diferentemente do que acima se destacou acerca da representação, não possui vontade.
Ora, além de criar um empecilho técnico para a responsabilização penal da pessoa jurídica, o que dificultaria a proteção ao Meio Ambiente, pode-se entender, a partir da interpretação do parágrafo terceiro do artigo 225 da Constituição Federal, acima referido, que tal decisão não encontra fundamentação constitucional, uma vez que não foi exigência do legislador constituinte atrelar as pessoas físicas e jurídicas no momento de sua penalização, o que se justifica por toda a vontade constitucional de conferir ao Meio Ambiente a máxima proteção possível.
No mesmo sentido, vem a disposição infraconstitucional presente na Lei nº 9605/98, que, no parágrafo único de seu artigo terceiro, estabelece que “a responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato” (BRASIL, 1998). A interpretação do dispositivo leva a crer que o legislador considerou distintas as responsabilidades da pessoa física e jurídica, não sobrando justificativa para a necessária responsabilidade concomitante das duas.
O próprio Tribunal já se pronunciou nesse sentido, em outra decisão:
EMENTA: PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA POR CRIME AMBIENTAL: DESNECESSIDADE DE DUPLA IMPUTAÇÃO CONCOMITANTE À PESSOA FÍSICA E À PESSOA JURÍDICA.- 1 Conforme orientação da 1ª turma do STF, “O artigo 225, § 3°, da Constituição Federal não condiciona a responsabilização penal da pessoa jurídica à simultânea persecução penal da pessoa física em tese responsável no âmbito da empresa. A norma constitucional não impõe a necessária dupla imputação”. (RE 548181, Relatora Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 6/8/2013, acórdão eletrônico DJe-213, divulg. 29/10/2014). 2- Tem-se, assim, que é possível a responsabilização penal da pessoa jurídica por delitos ambientais independentemente da responsabilização concomitante da pessoa física que agia em seu nome. Precedentes desta Corte. 3- A personalidade fictícia atribuída à pessoa jurídica não pode servir de artifício para a prática de condutas espúrias por parte das pessoas naturais responsáveis pela sua condução. 4-Recurso ordinário a que se nega provimento. (RMS 39173/BA, 5ª Turma, Relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 06/08/2015, DJe 13/08/2015).
O entendimento do Supremo Tribunal Federal e a interpretação constitucional e legal leva a crer, portanto, que esta segunda decisão do Superior Tribunal encontra guarida no melhor dos posicionamentos acerca da imputação penal da pessoa jurídica, dissociando-a da cabível à pessoa física e permitindo maior proteção ao Meio Ambiente.
Referências BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral 1/ Cezar Roberto Bitencourt - 21. ed. rev., ampl. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2015. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial 2: crimes contra a pessoa/ Cezar Roberto Bitencourt - 16. ed. rev., ampl. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2016. BRASIL. Constituição Federal (1988). Vade Mecum compacto / obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Luiz Roberto Curia, Lívia Céspedes e Fabiana Dias da Rocha - 15. ed. - São Paulo: Saraiva, 2016. BRASIL. Código Civil, Lei nº 10406 de 2002. Vade Mecum compacto / obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Luiz Roberto Curia, Lívia Céspedes e Fabiana Dias da Rocha - 15. ed. - São Paulo: Saraiva, 2016. BRASIL. Lei nº 9605 de 1998. Vade Mecum compacto / obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Luiz Roberto Curia, Lívia Céspedes e Fabiana Dias da Rocha - 15. ed. - São Paulo: Saraiva, 2016. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Atual. Maria Celina Bodin de Moraes. - 28. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2015. Créditos da imagem: https://pt.wikipedia.org/wiki/Meio_ambiente. 325 x 217