A violência do homem contra seus semelhantes testemunhada pela História, seja nas tomadas de cidades para a expansão de um império, seja nas invasões europeias às américas, reduziu milhões de seres humanos a condição de reles objeto. Porém somente após a Segunda Grande Guerra Mundial, no século XX, buscou-se garantir através da positivação de um princípio kantiano, a integralidade da raça humana.
Apesar de tardiamente exposto, o princípio kantiano foi gerado a partir do século XVIII, quando teve início na Europa o movimento intitulado de Iluminista. Esses pensadores tentavam utilizar a razão como um guia da humanidade. E foi justamente nesse período histórico que Immanuel Kant desenvolveu os conceitos chaves para os Direitos Humanos, o de dignidade e o de pessoa, que desembocariam no princípio da dignidade da pessoa humana, tendo como núcleo dessas definições, a razão.
O princípio da dignidade da pessoa humana está previsto no artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.” Refletiu-se também no artigo 1º da Constituição Federal de 1988: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e d Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos […] III – a dignidade da pessoa humana”.
Para entender sobre os conceitos que este artigo se propõe a analisar, que desembocarão na Dignidade da Pessoa Humana, é preciso deslocar-se à importância da boa vontade e de dever presentes na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes de Kant. Eles estão dispostos no primeiro capítulo desta obra. Para o pensador, somente existe uma coisa que representa a definição de bom: a boa vontade. Ela seria um fim em si mesmo, independente das ações cometidas pelo indivíduo que vão de encontro às suas necessidades pessoais, bem como de uma possível utilidade para aquela ação tomada em nome da boa vontade: “A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão somente pelo querer, isto é, em si mesma” (KANT, 1986, p. 23). Ou seja, a intenção daquele que tenta praticar determinada conduta de maneira boa, é mais importante do que a concretização daquela ação.
Para o filósofo, somente a razão poderia nos frear diante dos instintos naturais, visto que esta já foi posta pela natureza em todos os humanos. Somente ela nos pode fazer praticar um dever pelo simples ato de fazê-lo. Para Kant (1986, p.31), o dever “é a necessidade de uma ação por respeito à lei” (grifo original), por conseguinte, é uma maneira de se comportar em que o indivíduo obedece a uma determinada lei por respeito a ela, e a consequência disto é um comportamento de natureza moral. Para que as leis sejam feitas, é necessário que elas sejam universalizadas, sendo assim, elas devem ser pensadas de acordo com uma lógica abrangente a todos os indivíduos, inclusive àquele que as propõe (KANT, 1986).
Para que o homem comporte-se de uma maneira, existe algo que o impele a isto. Se aquele comportamento foi visando a algo externo, é denominado de imperativo hipotético. Esta ação foi tomada com o intuito de saciar alguma necessidade do homem, portanto não é puramente racional. Ao revés, quando não visa outra finalidade que não a ação em si, tendo por isso, um arcabouço puramente racional, é denominado de imperativo categórico (KANT, 1986).
Dessas premissas conclui-se que somente seres racionais podem agir de maneira a visar um fim em si, portanto, só eles tem a capacidade de criar leis racionais para além das naturais, mas como se fosse pertencente à natureza, bem como de universalizá-las e obedecerem-nas de acordo com o dever e consequentemente, a boa vontade. Destarte, conforme o raciocínio kantiano (KANT, 1986, p. 67-68):
Admitindo […] que haja alguma coisa cuja existência em si mesma tenha um valor absoluto e que, como fim em si mesmo, possa ser a base de leis determinadas, nessa coisa e só nela é que estará a base de um possível imperativo categórico, quer dizer, de uma lei prática. […] O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não só como meio para o isso arbitrário desta ou daquela vontade. […] Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm, contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio […]. (grifo original).
Portanto, pessoa é todo ser racional, capaz de agir visando unicamente a realização daquela ação, e não algo além dela. É, também, legislador universal.
A consequente ilação kantiana para a legislação que abstrairia todo tipo de diferença pessoal, fazendo com que os homens se reconhecessem como semelhantes traz o conceito de reino dos fins, um espelho do reino da natureza, todavia gerado à partir da razão. Segundo o pensador, neste mundo em que a pessoa fosse parte, onde ela legislasse, e ao mesmo tempo fosse submetida às leis criadas, todos teriam de obedecer à uma lei universal: não poderiam tratar uns aos outros como meios, mas somente como fins em si mesmos. Neste reino existiram duas características que iriam distinguir cada uma de suas peças, a dignidade e o preço:
No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr outra em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade. […] aquilo […] que constitui a condição só graças à qual qualquer coisa pode ser um fim em si mesma, não tem somente um valor relativo, isto é, um preço, mas um valor íntimo, isto é dignidade (KANT, 1986, p.77, grifos originais).
O homem, por ser parte do reino dos fins, seu legislador, não possui a característica do preço, e sim, da dignidade.
Destarte, a dignidade da pessoa humana é característica intrínseca de todo homem devido à sua racionalidade. É pessoa, pois é dotado de razão e somente seres racionais são fins em si mesmos, ou seja, a única finalidade para sua existência é a sua vida. É Digno, devido ao fato de que dentro do reino racional é ele legislador, fazendo parte do mundo de maneira insubstituível. É humana pois diz respeito aos seres humanos como um todo. Isto implica que, como já citado, nenhum homem pode agir perante outro como se este fosse um mero objeto, sendo dever de todos o tratamento mútuo igualitário como fins em si mesmos.
A caminhada ascendente da humanidade em busca de uma maior união e consequentemente redução da violência entre semelhantes ganhou, com o filósofo, um novo passo adiante. O conceito de dignidade da pessoa humana e o seu reflexo nos textos jurídicos tanto em nível interno como internacional ampliou a dimensão da perspectiva que o homem tinha de si mesmo, agora são todos iguais em razão e devem se respeitar e se tratar igualmente pelo simples fato de serem humanos.
REFERÊNCIAS: BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, Senado, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 05 jul. 2016. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Portugal, Lisboa: Edições 70, 1986. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Declara%C3%A7%C3%A3o-Universal-dos-Direitos-Humanos/declaracao-universal-dos-direitos-humanos.html>. Acesso em: 05 jul. 2016.