O perigo do ativismo judicial para o Estado Democrático de Direito

Há algum tempo se discute a mutação constitucional feita em algumas decisões do Supremo Tribunal Federal que contrariam a legislação vigente e a própria Constituição Federal. A prisão de Delcídio Amaral dividiu juristas no país, em razão da interpretação extensiva dada ao dispositivo constitucional que garante a imunidade formal dos parlamentares.

Os membros do Congresso Nacional detêm uma série de imunidades, inviolabilidades e prerrogativas que são irrenunciáveis por pertencerem ao cargo e não a pessoa do congressista. Tais garantias visam a preservação da independência do legislativo diante do Judiciário e do Executivo. A questão da prisão de Delcídio envolve a imunidade formal garantida pelo art. 53, § 2º da Constituição Federal.

§ 2º Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.

O parlamentar também poderá ser preso em razão de sentença condenatória criminal transitada em julgado. Estes crimes inafiançáveis estão elencados no art. 323 do Código de Processo Penal e nos incisos XLII, XLIII e XLIV do art. 5º da Constituição Federal.

Art. 323 (…) I – nos crimes de racismo;II – nos crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e nos definidos como crimes hediondos; III – nos crimes cometidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;

Art. 5º (…) XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;

Apesar de Delcídio não ter cometido crime inafiançável, o entendimento dado se voltou para o art. 324 do Código de Processo Penal, que trata de situações em que não será concedida fiança, em quaisquer crimes.Ou seja, foi feito um entendimento que contraria completamente o dispositivo constitucional que trata das imunidades parlamentares. Tendo em vista que o mesmo dispõe que a única exceção para que um congressista seja preso é em flagrante de crime inafiançável.

A discussão relacionada a este caso foi o fato de que tais interpretações permitem que o Supremo Tribunal Federal pode dar qualquer entendimento aos dispositivos constitucionais, não havendo como frear os ministros que compõem a maior corte do país. Isto pode acarretar em insegurança jurídica na medida em que há uma relativização do entendimento da lei.

Algumas temáticas, todavia, trazem um custo político para os congressistas, o que faz com que os mesmos não se manifestem a respeito de determinados assuntos. Todavia, estes problemas sociais são reais e são apresentados ao Judiciário, que não pode se abster de decidir sobre a questão.

Um exemplo cristalino destes temas é o da aquisição, depósito e transporte de drogas sem desacordo com determinação legal para consumo pessoal. Esta questão alcançou o STF no RE 635659, e trouxe, inclusive, uma discussão acerca de uma determinada quantidade que deveria ser legalizada, mas que caberia ao legislativo fazê-lo.

Estas decisões do Supremo que tratam de questões ainda não regulamentadas pelo Congresso em razão do custo político do tema, demonstram que a Corte tem suprido a falta de regulamentação ao trazer para si competência de outros poderes. Tal fato fere o Princípio da Separação dos Poderes, na medida em que o Judiciário passa a legislar sobre matérias que os congressistas preferem se abster de tratar por receio de perder votos.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal manifestou entendimento de não ser crime o aborto realizado durante o primeiro trimestre da gestação. O caso envolvia a prisão de médicos e funcionários de uma clínica de aborto que foram presos preventivamente. Defendeu o Ministro Barroso:

Em temas moralmente divisivos, o papel adequado do Estado não é tomar partido e impor uma visão, mas permitir que as mulheres façam a sua escolha de forma autônoma. O Estado precisa estar do lado de quem deseja ter o filho. O Estado precisa estar do lado de quem não deseja – geralmente porque não pode – ter o filho. Em suma: por ter o dever de estar dos dois lados, o Estado não pode escolher um.

Se não há como controlar a possibilidade de a Corte Suprema violar a Separação de Poderes ou causar insegurança jurídica ao relativizar a interpretação de determinados dispositivos legais, como ficaria a garantia do Estado Democrático de Direito? Para que serve o Congresso Nacional se o mesmo se encontra em um sistema de incentivos que não permite a regulamentação de problemáticas sociais?

O ativismo judicial é uma questão urgente, pois a usurpação do papel destinado ao legislativo pelo Supremo Tribunal Federal está cada vez mais clara. Se faz necessário que o tribunal retorne ao seu papel de guardião das leis e não de formulador destas, na falta de regulamentação sobre a matéria, para garantir a manutenção da Democracia e evitar a insegurança jurídica.

 

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