Quais as distinções entre o crime de maus-tratos e o de tortura-castigo?

É bem frequente que, no âmbito do direito penal, sejam vistos delitos aparentemente bem similares, onde aspectos por vezes sutis se encarregam de diferenciá-los. Pois bem, os crimes de maus-tratos e tortura-castigo podem ser confundidos com certa facilidade, fazendo-se necessária uma breve explanação acerca das principais características de cada um desses delitos.

Inicialmente, veja-se o que diz o Código Penal sobre o crime de maus-tratos, litteris:

Art. 136 – Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina:

Pena – detenção, de dois meses a um ano, ou multa.

§1º – Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave:

Pena – reclusão, de um a quatro anos.

§2º – Se resulta a morte:

Pena – reclusão, de quatro a doze anos.

3º – Aumenta-se a pena de um terço, se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (catorze) anos.

Conforme Guilherme de Souza Nucci, “expor, neste contexto, significa colocar em risco, sujeitar alguém a uma situação que inspira cuidado, sob pena de sofrer um mal.” Impende mencionar que:

“[…] é preciso destacar que tudo gira em torno da finalidade especial do agente, tratando do elemento subjetivo do tipo específico, de ter alguém sob sua autoridade, guarda ou vigilância, maltratando-a. Por isso, o tipo faz referência ao que pode ser usado para esses objetivos, mencionando a privação da alimentação ou dos cuidados indispensáveis e a sujeição a trabalho excessivo ou inadequado.”

Destarte, vê-se que o dolo presente no tipo penal de maus tratos é de expor a perigo. Seria, por exemplo, um pai tentando “ensinar uma lição” ao seu filho deixando-o trancado no quarto por um dia apenas com pão e água. Além disso, no crimes de maus-tratos, qualquer resultado além da mera exposição a perigo é considerado culposo. Logo, caso os maus-tratos resultem em lesão corporal grave ou homicídio, haverá aumento de pena por este resultado preterdoloso. Ademais, no tocante aos sujeitos ativo e passivo, aquele precisa ser detentor de autoridade, guarda ou vigilância em relação a este. Não pode ocorrer este crime entre cônjuges, por exemplo.

A seu turno, o delito de tortura-castigo apenas foi tipificado com o advento da Lei nº. 9.455/97, comumente denominada Lei da Tortura, a qual preconiza que:

Art. 1º Constitui crime de tortura:

II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena – reclusão, de dois a oito anos.

Com efeito, o dolo presente na tortura é o de dano. A intenção não seria expor a perigo, mas sim causar o dano em si. O elemento subjetivo não é apenas maltratar, é causar dor ou sofrimento intenso com o objetivo de punir.

Não obstante, há quem opte por diferenciar ambos os delitos pela intensidade da punição. Logo, em consonância com quem defende este entendimento, a tortura-castigo seria uma modalidade mais incisiva de maus-tratos. Há decisões neste sentido, colha-se:

APELAÇÃO CRIMINAL. IMPUTAÇÃO DE TORTURA-CASTIGO. DESCLASSIFICAÇÃO PARA O CRIME DE MAUS TRATOS. DISTINÇÕES ENTRE MAUS TRATOS, TORTURA E LESÃO CORPORAL NO CONTEXTO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. CONFIGURAÇÃO, NO CASO, DE LESÃO CORPORAL NO ÂMBITO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. PRELIMINARES REJEITADAS. (…). Diretrizes para juízo de adequação típica na constelação fática que envolve violência nas complexas relações socioafetivas entre pais/mães e filhos: (i) o crime de maus tratos, no abuso dos meios de correção (art. 136, § 3º, do CP), é de incidência excepcionalíssima e de aplicação subsidiária, para situações de meras vias de fato no âmbito doméstico ou lesões de baixo conteúdo de injusto, evidenciado e pertinente o fim educativo; (ii) o crime de tortura (art. 1º, II, e § 4º, II, Lei nº 9.455/97), tipifica-se nos casos em que o domínio parental, orientado para castigar ou prevenir condutas filiais e externalizado por meio de violência ou grave ameaça, substancia-se em resultado de intenso sofrimento físico ou mental; (iii) quando materializadas lesões corporais na atuação dos pais sobre os filhos, mas não na extensão e/ou intensidade exigíveis para o gravoso patamar da tortura, a desclassificação primária ocorre para lesão corporal no contexto de violência doméstica (art. 129, § 9º, CP). Diferenças, quanto ao art. 1º da Lei nº 9.455/97, entre as figuras do inciso I (tortura-de-finalidade-hedionda) e do inciso II (tortura-castigo/prevenção). A segunda abarca fins eventualmente pedagógicos, em situações socioafetivas sutis e complexas, a aumentar, na ponderação, as exigências típicas, para densificar maior conteúdo de injusto. Não é a finalidade educativa (elemento subjetivo) que diferencia a tortura-castigo dos maus tratos, e sim a gravidade objetiva da conduta, a par do elemento normativo intenso sofrimento, que vai discernir se o mesmo fenômeno (determinada lesão, v.g.) vai plantar raízes numa ponta ou noutra do espectro tipológico, ou permanecer a meio termo, na órbita das lesões-violência doméstica. E a finalidade transcendente (para castigar/educar) não é incompatível com motivação banal ou desproporcional e tampouco anula o dolo de lesão. (…). (Apelação Crime Nº 70058020322, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jayme Weingartner Neto, Julgado em 29/05/2014) (TJ-RS – ACR: 70058020322 RS, Relator: Jayme Weingartner Neto, Data de Julgamento: 29/05/2014, Terceira Câmara Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 03/07/2014)

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APELAÇÃO CRIME (GENITORA). TORTURA CONTRA CRIANÇA. ART. 1º, INC. II, C/C § 4º, INC. II, DO ART. 1º, AMBOS DA LEI 9.455/97 C/C 61, ALÍNEA E, DO CÓDIGO PENAL (1º FATO) E ART. 1º, INC. II, § 3º C/C § 4º, INC. II, DO ART. 1º, AMBOS DA LEI 9.455/97 C/C 61, INC. II, ALÍNEA E DO CÓDIGO PENAL (2º FATO), C/C ART. 71, DO CÓDIGO PENAL C/C ART. 2º, DA LEI Nº 8.072/90. PRETENSA DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO DE MAUS-TRATOS. IMPOSSIBILIDADE. CONDUTA PRATICADA PELA GENITORA INCOMPATÍVEL COM O MERO ABUSO DOS MEIOS DE CORREÇÃO. PEDIDO DE AFASTAMENTO DA CONTINUIDADE DELITIVA. IMPOSSIBILIDADE. PROTRAINDO-SE O SOFRIMENTO DA VÍTIMA NO TEMPO, POR MEIO DA CONTINUIDADE DAS AGRESSÕES, RESTA EVIDENCIADA A FORMA CONTINUADA. (…). APELAÇÃO CRIME (GENITOR). CRIME DE TORTURA POR OMISSÃO. DELITO COMETIDO PELO PAI QUE SE OMITE, CONSCIENTEMENTE, EM RELAÇÃO ÀS AGRESSÕES REITERADAS SOFRIDAS PELO FILHO. CONFIGURAÇÃO DA CONDUTA TÍPICA PREVISTA NO § 2º, INC. II, DO ART. 1º, DA LEI 9.555/97. (…). (TJ-PR 9135680 PR 913568-0 (Acórdão), Relator: Macedo Pacheco, Data de Julgamento: 22/11/2012, 1ª Câmara Criminal)

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APELAÇÃO CRIMINAL – TORTURA – PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO – PROVAS SEGURAS – ANIMUS CORRIGENDI OU DISCIPLINANDI – DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO DE MAUS-TRATOS – RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (TJ-MS – ACR: 9124 MS 2007.009124-6, Relator: Des. Gilberto da Silva Castro, Data de Julgamento: 15/05/2007, 1ª Turma Criminal, Data de Publicação: 05/06/2007)

Em suma, vê-se que a diferença entre os tipos penais jaz no dolo de cada delito: no crime de maus-tratos, é de expor ao perigo, na tortura-castigo, é de dano. Além disso, há quem aponte que a tortura-castigo seria uma forma mais incisiva e intensa de maus-tratos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas – Vol. 2. 8ª Edição, 2014. (acessado em 29/06/2016)
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 14ª Edição, 2014. (acessado em 29/06/2016)
http://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/126287842/apelacao-crime-acr-70058020322-rs (acessado em 16/06/2016)
http://tj-pr.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22787200/9135680-pr-913568-0-acordao-tjpr (acessado em 16/06/2016)
http://tj-ms.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/4051902/apelacao-criminal-acr-9124 (acessado em 16/06/2016)
http://www.radiomargarida.org.br/wp-content/uploads/Violencia_domes.jpg (acessado em 29/06/2016)
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