Nós aprendemos que o lar é o canto mais seguro que conhecemos. É nele que sossegamos e que ficamos distante dos perigos que ocorrem nas ruas. Entretanto, nem sempre isso é uma certeza. Às vezes o perigo, ou pelo menos o seu potencial, reside numa festa, em zona residencial, numa casa.
Bem ao lado da sua.
Os sons ensurdecedores, as algazarras e as festas que viram a noite passaram a fazer parte do roteiro da vida dos brasileiros. Depois de uma semana cansativa, ainda temos que aturar um cidadão criar uma carinhosa playlist para nós, pronta para ecoar pelos sábados e domingos.
Ter um vizinho desprovido de bom senso é, sem dúvidas, um potencial para nascer um problema gigante. Se ele for daqueles que grunhem, então pode se preparar, porque você vai ter disponível duas opções: ou seguir o budismo ou resolver a situação.
O assunto é sério. Não é apenas “um som alto”. Casos dessa natureza, se não forem dados atenção, poderão dar espaço para crimes. Homicídio, por exemplo. Facilmente encontrarmos em noticiários o cidadão que, após várias tentativas em resolver a situação pelos meios legais, ceifou a vida do “cara chato” por não ter aguentado mais a omissão das autoridades. Sim, maldita autotutela que é extremamente inflamável.
A Constituição Federal garante a saúde, o sossego e a paz como direitos fundamentais e indisponíveis para todas as pessoas. O reflexo disso está no Artigo 23, inciso VI:
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
[…]
VI – proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; (BRASIL, 1988, online)
O Código Civil também reforça em seu Artigo 186: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”
Como se não bastasse, o mesmo código também cuida exclusivamente dos Direitos de Vizinhança no Artigo 1.277 até o 1.313. Temos, além disso, o Artigo 42 da Lei das Contravenções Penais, que trata do sossego e penas sobre seu desrespeito.
A Lei nº 9.605/98 dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente:
Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora:
Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa. (BRASIL, 1998, online)
A OMS (Organização Mundial de Saúde) considera que ondas sonoras acima de 70 decibéis causam prejuízos à audição humana.
Mas, mesmo com todo esse arsenal jurídico disponível, o rapaz simplesmente os atropela com seu paredão sonoro. O que fazer? Analisando a situação atual, é realmente difícil lidar com esse tipo de problema. Falta grande preparação por parte do Estado em seu poder de polícia, além do rigor da fiscalização penal.
A maioria das pessoas acredita que: quando o vizinho aciona sua “turbina de avião cantarolante”, mesmo que o ofendido denuncie à polícia, esta não poderá entrar na residência do pobre rapaz, simplesmente porque não há ordem judicial. Vejamos os argumentos do ilustre Agapito (2009):
Há quem diga que a Polícia, no caso do art. 42 das Contravenções penais, não pode ingressar no domicílio alheio para deter os delinqüentes, mormente à noite, senão com ordem judicial, ou seja, nada pode fazer.
A CF/88, no art. 5º, XI permite, excepcionalmente, e sem ordem judicial, a qualquer hora, mesmo à noite, que se ingresse na residência alheia, quando ali está a ocorrer um flagrante delito; se o morador consentir; no caso de desastre ou para prestar socorro.
A ordem judicial, portanto, só autoriza a entrada na casa alheia, fora das referidas situações, e tão somente, durante o dia. (AGAPITO, 2009, online)
Geralmente as algazarras só acontecem à noite. Então, como fica a situação? Agapito continua:
Se, no caso de altíssimos barulhos/algazarras que perturbam o sossego e a tranqüilidade de várias pessoas, a polícia não puder adentrar, à noite, no domícilio onde esses fatos estão ocorrendo, e o juiz, como vimos, só poderá autorizar a entrada durante o dia, cria-se então uma situação inusitada.
Ou seja, um verdadeiro direito absoluto do delinqüente que poderá abusar, constantemente, dos excessos de barulho durante as noites e, antes do por do sol, acabar com sua farra, retornando ao silêncio, e nada lhe acontecerá.
Não importa o horário, a autoridade policial tem o dever legal de adentrar ao domicílio, apreender o aparelho sonoro e encaminhar os delituosos à delegacia. Se voltar a se repetir a conduta, o crime de desobediência, Artigo 330 do CP, restará configurado.
Ah, se fosse assim!
A questão é: compensa criar uma inimizade, que more bem ao seu lado, para o resto de sua vida? Compensa perder o gosto de morar em sua casa? O desgaste é enorme.
Embora concorde com o entendimento de Agapito, é fácil observarmos que a sociedade brasileira não está preparada para isso, mas gostaria de estar. Nem mesmo a polícia tem o devido preparo nessas situações. Geralmente, quando se abre ocorrências nesses casos, a autoridade policial poucas vezes comparece ao local e, quando comparece, apenas conversa com o infrator para que abaixe o som, nada adiantando.
Afinal, “a casa é dele e ele faz o que quiser”, ou melhor: ele comprou o final de semana e precisa terminar as duzentas cervejas.
Resta aos institutos da mediação e conciliação preencherem o vazio que a lei não consegue diante da situação. Situação que deixa o cidadão de mãos atadas e um sentimento frustrante de violação do seu direito.
Pois é… É difícil, pois nem mesmo o brutamonte consegue conversar, tampouco saber apreciar o som no privado. Palavras como “não” e sinônimos de “diminuir” não fazem parte de seu vernáculo.
Somente uma carta de citação ensurdecedora pelas entrelinhas silenciosas e frias da escrita computadorizada para fazê-lo escutar bem, dentro de sua mente, que é réu de uma ação judicial.
REFERÊNCIAS
AGAPITO, Machado. Sossego e a ação policial. Diário do Nordeste. Fortaleza, 2009. Disponível em: <http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/opiniao/sossego-e-a-acao-policial-1.540798>. Acesso em: 27 ago. 2015.
BRASIL. Código Civil (2002). Código Civil Brasileiro. Brasília, DF: Palácio do Planalto Presidência da República, 2002. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 27 ago. 2015.
______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Palácio do Planalto Presidência da República, 1988. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 27 ago. 2015.
______. Lei dos Crimes Ambientais (1998). Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Brasília, DF: Palácio do Planalto Presidência da República, 1998. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9605.htm>. Acesso em: 27 ago. 2015.