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Você sabe diferenciar um estupro de uma importunação ofensiva ao pudor?
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 por Ingrid CarvalhoPrimeiramente, destaquemos que tanto o estupro quanto a importunação ofensiva ao pudor dizem respeito a infrações penais contra a dignidade sexual, uma das facetas que compõem a dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III, CF/88)¹.
Entre tais ilícitos penais, a primeira diferença que salta aos olhos é que o estupro é um crime (ou delito), enquanto a importunação ofensiva ao pudor é uma contravenção penal. Quem nos traz essa separação é a Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto-Lei nº 3.914/41)², senão vejamos:
Art 1º Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.
[Grifamos]
Como é possível perceber, as penas de reclusão e detenção são reservadas unicamente aos crimes, ao passo que a prisão simples é destinada às contravenções.
Tal distinção se justifica na medida que as contravenções penais, em linhas gerais, correspondem a atos menos ofensivos aos bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal, por isso a privação da liberdade, quando esta for a sanção imposta ao ilícito, jamais poderá ser cumprida em regime fechado. Observemos o que diz a Lei das Contravenções Penais – LCP (Decreto-Lei no. 3.688/41)³:
Art. 6º A pena de prisão simples deve ser cumprida, sem rigor penitenciário, em estabelecimento especial ou seção especial de prisão comum, em regime semi-aberto ou aberto.
[Grifamos]
Doutra banda, os indivíduos que incorrerem na prática de um delito estarão sujeitos ao cumprimento da sanção em regime fechado, seja desde o início da execução da pena (reclusão) ou posteriormente, durante o cumprimento da sanção, caso houver necessidade (detenção), conforme prevê o Código Penal – CP:
Art. 33 – A pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semi-aberto ou aberto. A de detenção, em regime semi-aberto, ou aberto, salvo necessidade de transferência a regime fechado.
Ademais, uma rápida leitura da LCP demonstrará que as privações de liberdade nunca superam um período maior que seis meses, bem como que as multas representam valores bem menores quando comparadas às sanções pecuniárias do Código Penal.
Contudo, até o presente momento tratamos de aspectos meramente formais ou de como as condutas em tela são classificadas no mundo jurídico. Mais importante é saber se, diante de determinada situação concreta, estamos presenciando um estupro ou uma importunação.
Assim, é fundamental pôr em contraste as definições legais de ambas as condutas. O CP conceitua o estupro da seguinte forma:
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
§ 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
§ 2º Se da conduta resulta morte:
Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
[Grifamos]
Por sua vez, a importunação ofensiva ao pudor é assim caracterizada pelo Decreto-Lei nº. 3.688/41:
Art. 61. Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor:
Pena – multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.
É possível notar, sem grande esforço, que o estupro se opera por meio da violência ou grave ameaça, elementos que não estão presentes na contravenção penal do art. 61 da LCP. A propósito, esta parece ser a nota distintiva fundamental entre as duas infrações, de modo que perceber a mais sutil das violências, inclusive dentre as de natureza moral, torna-se essencial. Os tribunais brasileiros não ignoram tal distinção, como evidencia o seguinte julgado:
APELAÇÃO – PENAL – ESTUPRO – PRETENDIDA DESCLASSIFICAÇÃO PARA A CONTRAVENÇÃO PENAL DE IMPORTUNAÇÃO OFENSIVA AO PUDOR – AUSÊNCIA DE VIOLÊNCIA OU GRAVE AMEAÇA – PROVIMENTO. A desclassificação do crime de estupro (art. 213, do Código Penal) para o delito de importunação ofensiva ao pudor é medida de rigor ante a não comprovação da violência ou grave ameaça exigidos para a configuração do crime mais grave. Apelação defensiva a que se dá provimento com base no acervo probatório, para o fim de desclassificar a conduta imputada.
(TJMS – APL 00095996420118120002 MS, 2ª Câmara Criminal, rel. Des. Carlos Eduardo Contar, j. 05.11.2012)
[Grifamos]
Há ainda, outro importante detalhe: a importunação deve ser praticada em lugar público ou em local ao qual o público tenha acesso, elemento que por sua vez é indiferente para o crime de estupro. Detenhamo-nos à seguinte ementa de acórdão:
APELAÇÃO. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. PALAVRA DA VÍTIMA NOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL. VALIDADE. IMPOSSIBILIDADE DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA A CONTRAVENÇÃO PENAL DA IMPORTUNAÇÃO OFENSIVA AO PUDOR. CRIME CONSUMADO. DOSIMETRIA DA PENA FIXADA DE MODO ESCORREITO. RECURSO DA DEFESA NÃO PROVIDO. […] 3. Impossibilidade de desclassificação para a contravenção da importunação ofensiva ao pudor, pois, no presente caso, além de não se tratar, apenas, de uma simples importunação, julga-se uma real prática de ato libidinoso contra um menor e, de acordo com o art. 61 do Decreto-lei n. 3.688/41, a conduta teria que ser praticada em um “lugar público” ou “acessível ao público”, o que não ocorreu. Ainda que assim não fosse, restou claro pela prova oral judicial, corroboradora da não menos robusta prova oral extrajudicial, que o réu tentou colocar o seu pênis no ânus da vítima, vulnerável, pois possuía 11 anos de idade à época dos fatos, a caracterizar a violência, embora presumida, reclamada pelo tipo penal do art. 217-A, “caput”, do Código Penal. Precedentes do TJSP. 4. Crime de estupro de vulnerável consumado, pois, pese embora não haja prova nos autos de ter havido penetração no ânus da vítima, os atos praticados pelo réu, vale dizer, o de retirar o seu pênis e tentar colocá-lo no ânus da vítima, de fato, caracterizaram, sem qualquer sombra de dúvida, atos libidinosos diversos da conjunção carnal, sendo desnecessário que haja a penetração para fins de tipificação do presente crime. Precedentes do STJ. […] 7. Improvimento do recurso defensivo.
(TJSP – APL 00081165920118260050 SP, 1ª Câmara Criminal Extraordinária, rel. Des. Airton Vieira, j. 21.07.2014)
[Grifamos]
Todavia, as distinções práticas das duas ações não se encerram por ai. Na conduta mais grave, o agente orienta a sua ação, a todo momento, para satisfazer seu desejo sexual por meio da conjunção carnal ou de qualquer outro ato libidinoso, enquanto na importunação, ainda que o autor empregue uma conotação moderada de erotismo e sexualidade em suas ações, não há o objetivo de consumar com a vítima a prática de algum ato sexual. Atentemos à jurisprudência:
PENAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. RECURSO DA DEFESA. ABSOLVIÇÃO. INSUFICIÊNCIA DO CONJUNTO PROBATÓRIO. INADMISSIBILIDADE. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. DESCLASSIFICAÇÃO PARA IMPORTUNAÇÃO OFENSIVA AO PUDOR OU TENTATIVA DE ESTUPRO. IMPOSSIBILIDADE. RECONHECIMENTO DE CRIME ÚNICO. NÃO CABIMENTO. CONTINUIDADE DELITIVA. RECURSO IMPROVIDO. […] 2. A desclassificação pretendida pela defesa não merece acolhimento, pois a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor não condiz com a finalidade lasciva que se evidencia das circunstâncias dos fatos. 3.O crime de estupro de vulnerável se consuma com a conjunção carnal ou prática de outro ato libidinoso com menor de catorze anos. Na hipótese, o delito consumou-se na variante praticar outro ato libidinoso, consistente em toques íntimos e introdução de dedos na genitália da vítima, não havendo que se falar em tentativa. […] 5. Recurso não provido.
(TJDFT – APR 20141210029803, 2ª Turma Criminal, rel. Des. Cesar Laboissiere Loyola, j. 16.04.2015)
[Grifamos]
Vale registrar que, segundo Cleber Masson⁴, entende-se por conjunção carnal “a cópula vagínica, ou seja, a introdução total ou parcial do pênis na vagina”, enquanto atos libidinosos dizem respeito àqueles “revestidos de conotação sexual com exceção da conjunção carnal, tais como o sexo oral, o sexo anal, os toques íntimos, a introdução de dedos ou objetos na vagina, a masturbação etc”.
Ainda de acordo com a lição do mesmo jurista⁵, na contravenção de importunação ofensiva ao pudor, o agente:
[…] limita-se à utilização de palavras ofensivas ao pudor (exemplo: sussurrar no ouvido de mulher desconhecida no interior de ônibus coletivo, convidando-a a ir a um motel), ou então aos atos libidinosos desprovidos de violência ou grave ameaça (exemplo: passar as mãos nas nádegas de mulher que calmamente observava a vitrine de uma loja).
[Grifamos]
Um exemplo de conduta reprovável, até pouco tempo amplamente denunciada pela mídia, que se enquadra adequadamente na contravenção penal em debate, é a chamada “encoxada”, recorrente em transporte públicos, onde aproveitadores se valem do grande número de passageiros e do pouco espaço para encostar propositalmente a genitália no corpo de suas vítimas.
Entretanto, a jurisprudência pátria ainda se mostra oscilante quando da definição de determinada conduta como estupro ou como importunação ofensiva ao pudor. Leiamos os seguintes julgados que reformaram decisões que enquadravam a conduta do réu como crime para serem tomadas como contravenção penal:
Apelação. Atentado violento ao pudor. Denunciado, mediante violência real, agarrou pessoa de 13 anos, beijando-a, passando as mãos em seus seios, costas e nádegas. Fatos comprovados. Contudo, inadequação típica. Importunação ofensiva ao pudor. Desclassificação. (…) Em que pese a credibilidade evidenciada nas palavras da vítima, os fatos em apreço subsumem-se de maneira mais adequada ao tipo penal constante do art. 61 da Lei de Contravenções Penais. A circunstância de ter o recorrente prendido a vítima no quarto, agarrado sua cintura e forçada a beijá-lo configura mera importunação, no sentido de incomodar com a presença física provocadora. Se, por um lado, evidências existem acerca da intenção libidinosa, por outro, condenar o apelante às penas do delito
de estupro é medida sobejamente excessiva. Dessa feita, é cabível considerar a subsidiária subsunção de sua conduta à figura da importunação ofensiva ao pudor”.(TJSP – Ap. 990.10.359693-5, 16.ª C.C., rel. Guilherme de Souza Nucci, v.u.)
PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIME DE ESTUPRO. DESCLASSIFICAÇÃO PARA A CONTRAVENÇÃO PENAL DE IMPORTUNAÇÃO OFENSIVA AO PUDOR. ATOS LASCIVOS SUPERFICIAIS. CURTO LAPSO TEMPORAL. INTERNAÇÃO PROVISÓRIA. PRESENÇA DOS REQUISITOS LEGAIS. MEDIDA CAUTELAR ADEQUADA E NECESSÁRIA. SENTENÇA MANTIDA. 1. Demonstrado que os atos lascivos praticados pelo réu foram superficiais e breves, consistentes em passar a mão sobre a região genital da vítima, por sobre a roupa, correta a desclassificação do delito de estupro para a contravenção de importunação ofensiva ao pudor. 2. Constatada a semi-imputabilidade do réu e presente o risco de reiteração delitiva, mostra-se adequada e necessária a manutenção da medida cautelar de internação. 3. Recursos conhecidos e desprovidos.
(TJDFT – RSE 20131210039203 DF. Rel: Jesuino Rissato. j. 14.08.2014)
A seguir, analisemos os motivos pelos quais os acórdãos abaixo foram elaborados no sentido de considerar incabível a desclassificação do estupro para a importunação ofensiva ao pudor:
APELAÇÃO. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. PROVA ORAL JUDICIAL APTA A MANTER A CONDENAÇÃO DO RÉU. FUNDAMENTAÇÃO “PER RELATIONEM”. POSSIBILIDADE. PALAVRA DA VÍTIMA NOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL. VALIDADE. IMPOSSIBILIDADE DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA A CONTRAVENÇÃO PENAL DA IMPORTUNAÇÃO OFENSIVA AO PUDOR. CRIME CONSUMADO. DOSIMETRIA DA PENA ESTABELECIDA DE MODO ESCORREITO. REGIME FECHADO. IMPROVIMENTO DO RECURSO DA DEFESA. […] 4. Impossibilidade de desclassificação do crime de estupro de vulnerável para a contravenção penal da importunação ofensiva ao pudor, pois no presente caso, além de não se tratar, apenas, de uma simples importunação, julga-se uma real prática de um crime de estupro de vulnerável, sendo impossível reconhecer como “importunação” a investida de alguém, que, valendo-se da condição que ocupava no seio familiar, segura a vítima pelos braços, deita o seu corpo sobre o dela e passa a fazer movimentos de natureza sexual sobre ela (“esfregando-se”), além de ameaçar uma das testemunhas arroladas pela acusação, sob pena de deturpação da inteligência da supramencionada contravenção penal e negativa de vigência do art. 217-A, “caput”, do Código Penal. Assim, independentemente do ângulo pelo qual se analise a questão, descabido o entendimento da defesa do réu sobre a desclassificação do crime de estupro de vulnerável para a tal contravenção penal. Precedentes do TJSP. 5. Crime de estupro de vulnerável consumado, pois, pese embora não haja prova nos autos de ter havido penetração na vítima, os atos praticados pelo réu, vale dizer, o de deitar-se sobre ela e esfregar o seu corpo, com movimentos sexuais, de fato, caracterizaram, sem qualquer sombra de dúvida, atos libidinosos diversos da conjunção carnal, sendo desnecessário que haja a penetração para fins de tipificação do presente crime. Precedentes do STJ. […] 8. Improvimento do recurso defensivo.
(TJSP – APL 00077306320128260577 SP, 1ª Câmara Criminal Extraordinária, rel. Des. Airton Vieira, j. 30.07.2015)
APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL. ESTUPRO QUALIFICADO TENTADO. MATERIALIDADE E AUTORIA DEMONSTRADAS. IMPOSSIBILIDADE DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA A CONTRAVENÇÃO PENAL DE IMPORTUNAÇÃO OFENSIVA AO PUDOR. APENAMENTO REDIMENSIONADO. Consoante se verifica da prova produzida nos autos, especialmente através da palavra da vítima, de crucial importância em delitos deste jaez, não subsiste qualquer dúvida quanto à existência do fato e de seu autor. Incabível a desclassificação para a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor sustentada em defesa, pois que o intento do réu era claramente satisfazer sua própria lascívia, e não importunar a vítima de modo ofensivo ao pudor. Situação que recomenda o redimensionamento da pena-base, com o afastamento da valoração negativa dos vetores (art. 59 do CP) culpabilidade, circunstâncias e consequências do crime. APELAÇÃO PROVIDA, EM PARTE.
(TJRS – Apelação Crime Nº 70050490820, 7ª Câmara Criminal, Rel. Des. José Conrado Kurtz de Souza, Julgado em 18.12.2012)
Os entendimentos conflitantes expostos nas decisões acimas revelam de forma sintomática a dificuldade dos próprios magistrados em encaixar determinado ato ao art. 213 do CP ou ao art. 61 da LCP, sem que injustiças no caso concreto sejam operadas.
Isso se deve ao grande abismo existente entre as punições das infrações em tela. Enquanto a importunação ofensiva ao pudor sequer prevê a privação de liberdade como sanção, mas tão somente multa, o delito de estupro, na sua forma mais simples, estabelece uma pena mínima de seis anos de reclusão.
Em razão desse abismo existente entre as duas penas, por vezes, há a nítida sensação de que determinada conduta é grave demais para ser considerada uma mera importunação ofensiva, mas, por outro lado, não produz uma ofensividade de tal maneira suficiente que justificaria o rigor da punição aplicável ao estupro. Tal incômodo é visível nas próprias decisões das cortes brasileiras:
APELAÇÃO CRIMINAL. PENAL. ESTUPRO. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO CONTRAVENCIONAL DE IMPORTUNAÇÃO OFENSIVA AO PUDOR – POSSIBILIDADE. RECURSO IMPROVIDO. 1. A elementar do crime de estupro deve ser interpretada de acordo com o princípio da ofensividade, aquele que fere, de forma intensa e profunda, a dignidade sexual da pessoa ofendida. 2. É pacífico no sistema jurídico que as penas devem ser proporcionais ao mal social causado pelos crimes, e, consequentemente, sanções de igual monta devem corresponder a lesões jurídicas de mesma intensidade. Na ausência de dispositivo legal que melhor traduza a conduta perpetrada pelo agente, não pode o judiciário valer-se de uma pena desmesurada e desproporcional, sob pena de provocar injustiça e insegurança maiores do que a decorrente do próprio delito. 3. Negado provimento.
(TJDFT – APR 20130510142497, 2ª Turma Criminal, Rel. Des. João Timóteo De Oliveira. j. 03.03.2016)
EMBARGOS INFRINGENTES – ESTUPRO DE VULNERÁVEL – DESCLASSIFICAÇÃO PARA CONTRAVENÇÃO PENAL DE IMPORTUNAÇÃO OFENSIVA AO PUDOR – NECESSIDADE – EXTREMA GRAVIDADE DA CONDUTA NÃO VERIFICADA. Não se revestindo a conduta do réu de extrema gravidade, a ponto de justificar a sua condenação pelo crime de estupro de vulnerável, a desclassificação para a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor é medida de rigor.
(TJMG – Emb Infring e de Nulidade nº 10024110028305002 MG. Rel: Eduardo Machado. j. 16.09.2014)
[Grifamos]
Essa inquietação é igualmente sentida pelo magistrado e doutrinador Guilherme Nucci⁶, o qual advoga a tese de que é necessário um tipo penal intermediário entre o estupro e a importunação ofensiva, que ele chama de “estupro privilegiado”, nos seguintes termos:
[…] há várias situações intermediárias, entre o estupro, envolvendo atos libidinosos, e a importunação ofensiva ao pudor, que mereceriam uma tipificação apropriada. […]
O indicado seria a consideração do cometimento de atos libidinosos, praticados com violência ou grave ameaça, que, sob critério judicial, possam ser captados como privilegiados. Ilustrando, apalpar o órgão sexual, por cima da roupa, de forma coercitiva, configuraria um estupro privilegiado (nem o estupro hediondo, nem a singela contravenção).
Ao nosso sentir, o jurista defende que somente a conduta seriamente invasiva, com contato físico direto do agressor com o corpo da vítima é que ensejaria a aplicação do art. 213, CP, de maneira que toques ou apalpações menos graves, por cima das vestes da pessoa agredida, ainda que revestidos de intenção libidinosa e executados mediante violência ou grave ameaça, configurariam um tipo penal mais severo que a contravenção penal de importunação, porém menos rigoroso que o crime de estupro.
Em uma perspectiva prática, o efeito da ausência de tipificação adequada acaba por desclassificar, como vimos, a conduta de estupro para a simples importunação, tendo em vista as várias garantias fundamentais às quais o réu faz jus.
Importante, igualmente, mencionar que a distinção torna-se ainda mais problemática quando comparamos a aludida contravenção ao crime de estupro de vulnerável, previsto no art. 217-A, CP, vez que neste não se exige a violência ou a grave ameaça como meios de execução do delito. Senão, vejamos:
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caputcom alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
§ 2oVetado.
§ 3o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena – reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.
§ 4o Se da conduta resulta morte:
Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
[Grifamos]
Nesse diapasão, convém esclarecer que “vulnerável”, para os fins de aplicação do dispositivo acima transcrito, é a vítima que se encontra em uma das seguintes situações: ser menor de quatorze anos; não possuir discernimento para prática do ato sexual em razão de enfermidade ou deficiência mental; ou não ter capacidade de oferecer resistência à investida do agente por qualquer causa (p. ex: embriaguez completa).
Consequentemente, temos decisões ainda mais conflitantes nas mais diversas jurisdições do Brasil, a exemplo das seguintes:
Estupro de vulnerável (art. 217-A do Código Penal). Comportamento dirigido à prática de atos libidinosos diversos da conjunção carnal com criança de quatro anos. Sentença condenatória. Reconhecimento da modalidade tentada. Recurso da defesa. Pretendida a absolvição por insuficiência de provas. Impossibilidade. Ocorrência do fato e autoria demonstradas. Agente que, em praça pública, perpassa as mãos sobre a vagina da infante, por cima das vestes. Conduta reprovável que, porém, não configura estupro de vulnerável. Ato de importunação. Desclassificação, de ofício, para a contravenção penal descrita no art. 61 do Decreto-lei 3.668/1941. Recurso conhecido e não provido.
(TJSC – Ap. 2013.090235-7, 3.ª C.C., rel. Des. Leopoldo Augusto Brüggemann, 25.03.2014, v.u.)
Apelação criminal. Crime contra a dignidade sexual. Art. 217-A do CP. Estupro de vulnerável. Desclassificação operada em a r. sentença para o crime de importunação ofensiva ao
pudor, previsto no art. 61 do Decreto-lei 3.688/41. Recurso ministerial. Pleito pela condenação na forma da denúncia. Padrasto que beijou a boca da enteada de 7 anos no interior da prefeitura da cidade. Análise dos autos que leva à conclusão pela caracterização de contravenção penal. Recurso não provido.(TJPR – Ap. 930880-5, 2.ª C.C., rel. Antonio Marrtelozzo, 27.06.2013, v.u.)
APELAÇÃO. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. PALAVRA DA VÍTIMA NOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL. VALIDADE. IMPOSSIBILIDADE DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA A CONTRAVENÇÃO PENAL DA IMPORTUNAÇÃO OFENSIVA AO PUDOR. CRIME CONSUMADO. REFAZIMENTO DA DOSIMETRIA DA PENA. REGIME FECHADO. PARCIAL PROVIMENTO DO RECURSO DA DEFESA. […] 3. Impossibilidade de desclassificação do crime de estupro para a contravenção penal da importunação ofensiva ao pudor, pois no presente caso, além de não se tratar, apenas, de uma simples importunação, julga-se uma real prática de um crime de estupro de vulnerável, sendo impossível reconhecer como “importunação” a investida de alguém, que, se valendo da condição de embriaguez da sua companheira, tirava a sua roupa e a da vítima, passava as mãos no corpo dela e, inclusive, encostava o seu pênis na genitália e no “bumbum” dela, além de ameaçá-la, sob pena de deturpação da inteligência da supramencionada contravenção penal e negativa de vigência do art. 217-A, “caput”, do Código Penal. Assim, independentemente do ângulo pelo qual se analise a questão, descabido o entendimento da defesa do réu sobre a desclassificação do crime de estupro de vulnerável para a tal contravenção penal. Precedentes do TJSP. […] 7. Parcial provimento do recurso defensivo.
(TJSP – APL 00025581320118260372 SP, 1ª Câmara Criminal Extraordinária, rel. Des. Airton Vieira, j. 30.07.2015)
[Grifamos]
Em suma, de fato, apenas o caso concreto, com todos os seus pormenores e circunstâncias, é que nos trará subsídios para afirmar que determinada ação se amolda ao tipo penal referente ao estupro ou à importunação ofensiva ao pudor.
Por outro lado, é certo que existe uma sensível lacuna entre as duas infrações, de modo que uma gama de condutas não se encaixará perfeitamente em nenhum dos dois ilícitos penais, razão pela qual urge a necessidade de criação de uma infração intermediária, tal como propõe o professor Guilherme Nucci.
No entanto, não é de todo insensato estabelecer alguns parâmetros que, ao menos em abstrato, servirão para distinguir o delito de estupro da contravenção de importunação: a violência e a grave ameaça são próprias do estupro, de forma que se torna inviável a configuração da importunação quando presentes; satisfazer a lascívia (ímpeto sexual) é a orientação do estuprador, mas não do importunador, que visa “apenas” incomodar, inquietar a vítima; quanto mais invasivos e ofensivos forem os atos sexuais praticados, mais a conduta se aproxima do estupro e se afasta da importunação; o fato de ação ter acontecido em lugar público ou acessível ao público importa para a contravenção penal, mas é indiferente para o crime.
Repisemos, por fim, que diferenciar a modalidade de estupro contida no art. 217-A do CP da importunação ofensiva ao pudor é tarefa ainda mais difícil, já que a violência e grave ameaça não são requisitos de nenhuma das espécies, embora os demais parâmetros acima elencados também contribuem para esta distinção.
Referências: [1] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana; [...]. [2] Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3914.htm>. Acesso em 17 ago. 2017. [3] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3688.htm>. Acesso em 17 ago. 2017. [4] MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado: Parte especial – vol.3. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2016. p. 10. [5] Ibidem, p. 37. [6] NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
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OAB Diária – Exame de Ordem Comentado – Direito Penal #6
Vilipêndio a cadáver é um crime que reflete a relação da sociedade com a dignidade humana, mesmo após a morte. Desde tempos antigos, civilizações atribuem um valor sagrado aos rituais fúnebres e ao corpo dos falecidos, entendendo que o respeito a esses aspectos é essencial para honrar não só a memória dos mortos, mas também a paz e a moral dos vivos.
Assim, leis surgiram para proteger essa dignidade, garantindo que o corpo e o descanso do falecido sejam preservados de qualquer ataque ou tratamento desrespeitoso. Vamos entender um pouco mais sobre isso.
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Abordagem histórica do vilipêndio ao cadáver
O sentimento que o homem tem em relação aos seus pares atravessou os séculos, gerações e a seleção natural. É uma característica intrínseca ao homo sapiens a capacidade de se afeiçoar aos outros de sua mesma espécie, permitindo que laços sejam criados como forma de facilitar a convivência em sociedade.
É por meio dele que se constroem os pilares das relações humanas, que vão guiar os homens por toda a vida e permitir que eles se unam com base tanto pela relação sanguínea quanto pela afetiva.
Esse sentimento não desparece após a morte de um ente querido, pelo contrário. Não são raras às vezes em que a dor da perda é responsável por unir e aproximar. O ritual fúnebre é a forma pelo qual as pessoas se despedem e isso é característica de todos os povos, independente de raça ou religião.
É nesse momento em que se cultua sua memória, integridade, história e imagem, de forma que esses valores transcendam sua morte. Além de ser uma forma de preservar a imagem do morto, também é o meio encontrado para acalentar os familiares pela dor da perda, que é sempre inevitável.
O culto aos mortos é comum a quase todas as épocas e quase todos os povos, vindo da Grécia antiga o costume de guardar luto, acender velas, levar coroas e flores. Segundo relato de Freud, o luto é uma forma de sobrevivência. É a forma usada pelos os que sobrevivem para lidar com a perda de alguém que continuará a ser querido, mesmo que não se encontre mais presente junto aos demais.
Se cadáver é o corpo humano que viveu, então o respeito que se deve aos mortos é consequência da vida que eles tiveram, da sua memória e do que fizeram em vida.
Vilipêndio ao cadáver e o Direito
No sentido tanto de proteger tanto a memória do morto quanto preservar os seus familiares nesse momento delicado, o Código Penal traz, em seu Título V, os crimes contra o sentimento religioso e o respeito aos mortos.
O legislador uniu essas duas espécies de crimes em um só Título por conta da afinidade entre eles, já que o sentimento religioso e o respeito aos mortos consistem valores éticos e morais que se assemelham, posto que o tributo que se dá a eles advém de um caráter religioso que se propagou ao longo dos séculos, abordando, assim, o vilipêndio ao cadáver.
O artigo 212 do referido diploma legal apresenta a tipificação relacionada ao vilipêndio ao cadáver ou suas cinzas, cominando pena de detenção de um a três anos, além de multa. O bem jurídico tutelado nesse caso é o sentimento de respeito aos mortos, já que o de cujus não é considerado titular de direito.
Assim, tutelar esse direito possui um caráter social e por isso que o sujeito passivo dos crimes contra o respeito aos mortos também é o Estado, já que ele é a personificação da coletividade e tem a missão de protegê-la como um dos seus interesses primordiais. O vilipêndio ao cadáver, segundo Rogério Sanches da Cunha, em Manual de Direito Penal – Parte Especial. Ed Jus Povivm, 7ª Ed. P. 433, se define como:
É crime de execução livre, podendo ser praticado pelo escarro, pela conspurcação, desnudamento, colocação do cadáver em posições grosseiras ou irreverentes, pela aposição de máscaras ou de símbolos burlescos e até mesmo por meio de palavras; pratica o vilipêndio quem desveste o cadáver, corta-lhe um membro com propósito ultrajante, derrama líquidos imundos sobre ele ou suas cinzas (RT 493/362).
Assim, a tipificação legal do vilipêndio é clara em nosso ordenamento jurídico e não deixa margem para dúvidas quanto a sua interpretação. Todavia, com o advento da internet e da rápida disseminação de imagens e informações, o vilipêndio ao cadáver ganhou novas formas de ser praticada.
Vilipêndio ao cadáver no mundo digital
O compartilhamento de fotos e vídeos que claramente desrespeitam a imagem do morto se propaga de firma assombrosa pela rede mundial de computadores em questão de minutos. Em casos de acidentes ou crimes brutais, muitas vezes as imagens chegam às redes sociais antes mesmo que as autoridades policiais e locais sejam comunicadas do ocorrido.
Este fato acaba gerando empecilhos às investigações, já que na tentativa macabra de registrar o ocorrido, as pessoas acabam contaminando a cena do crime e, consequentemente, prejudicando as investigações, tudo em prol de um motivo injustificável.
Não se pode alegar, entretanto, que essa forma de cometer o vilipêndio ao cadáver é uma das mazelas do século XXI. Antigamente a prática já existia, mas como as informações não se propagavam tão rapidamente, as imagens eram armazenadas em disquetes ou CD’s e levavam anos para serem expostas.
Hoje, ao contrário, a facilidade com que os arquivos digitais podem ser compartilhados, copiados e propagados atropela as ponderações sobre o certo e errado, bem e mal, engraçado e depreciativo.
Não é raro o internauta se deparar com imagens de corpos completamente desfigurados, que circulam pelas redes sociais de forma incessante, em um claro desrespeito à memória do morto e ao sentimento de pesar da família.
Assim, a família, além de ter que lidar com a dor da perda, ainda precisa suportar a situação vexatória de ver imagens do ente querido expostas aos olhos do mundo. Um momento provado torna-se público da pior maneia possível, gerando traumas e danos de difícil reparação.
O vilipêndio ao cadáver que acontece por meio do compartilhamento das fotos ou vídeos, entretanto, apesar de ser fato atípico para o Direito Penal, se insere na seara do Direito Civil e gera ilícito, já que quem provoca dano a outrem é obrigado a repará-lo, conforme se depreende dos artigos 186 e 927 do Código Civil (BRASIL, 2002), os quais seguem transcritos:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
O dano em questão trata-se, no caso do vilipêndio, da situação vexatória que a família do morto sofre ao se deparar com fotos ou vídeos do ente querido sendo compartilhados indiscriminadamente como se fossem motivo de diversão aos olhos de um público que se satisfaz com o sofrimento alheio. Este é o motivo pelo qual a conduta de divulgar merece tanto repúdio quanto a de quem fornece as imagens.
Dessa forma, busca o Estado, na sua qualidade de protetor da sociedade, preservar a memória do morto e evitar a situação vexatória pela qual a família passa. Quando isso não se configura possível, deve o Estado reparar o sofrimento causado à família da vítima como forma de modelo corretivo para evitar que tais condutas continuem a ser praticadas.
A atitude de quem divulga e compartilha tais imagens é reprovada jurídica e socialmente, com punições para ambos os casos. Não é por a internet ser um território aparentemente livre e onde todos podem expor suas opiniões que os direitos perdem as suas garantias fundamentais, motivo pelo qual se torna necessário ponderar antes de compartilhar e facilitar a propagação de qualquer conteúdo, e em especial os que são visivelmente prejudiciais e vexatórios. As responsabilizações cíveis e criminais, dependendo da conduta, existem e são aplicadas, mas a maioria das pessoas infelizmente só dá conta disso quando já é tarde demais.
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Referências:
BRASIL. Código Penal Brasileiro (1940). Código Penal Brasileiro. Brasília, DF, Senado, 1940.
BRASIL. Código Civil Brasileiro (2002). Código Civil Brasileiro. Brasília, DF, Senado, 2002.
SOUZA, Gláucia Martinhago Borges Ferreira de. A era digital e o vilipêndio ao cadáver. Disponível em: <http://gaumb.jusbrasil.com.br/artigos/184622172/a-era-digital-e-o-vilipendio-a-cadaver>. Acesso em 05 de janeiro de 2016.
CUNHA, Rogério Sanches da. Manual de Direito Penal – Parte Especial. Ed Jus Povivm, 7ª Ed. P.433
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Artigos
A Convenção de Nova York e a necessidade de atualizações
Publicado
3 meses atrásem
1 de setembro de 2024A Convenção de Nova York foi instituída em 1958 e, desde aquela época, o seu texto não foi modificado de forma direta. Somente em 2006 foi reunida uma Assembleia Geral que emitiu um documento explicitando como deveria ser a interpretação de alguns dispositivos jurídicos deste tratado à luz do desenvolvimento tecnológico das últimas décadas.
Esta atualização, entretanto, em nenhum momento fez menção ao artigo 1º da Convenção de Nova York, sendo este justamente o dispositivo jurídico que impediria a aplicação deste tratado para as sentenças arbitrais eletrônicas. Alguns defendem que este acordo não necessitaria de atualizações. Na verdade, o que seria mandatório era a instituição de uma nova convenção voltada exclusivamente para a arbitragem eletrônica.
Apesar da clara dificuldade de este acordo vir a ser elaborado, e da esperada demora para que a convenção venha a ser reconhecida amplamente na comunidade internacional, a Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional tem defendido essa tese para as arbitragens envolvendo relações consumeristas. Em 2013, este órgão internacional publicou um documento em que defendia essa posição:
The Working Group may also wish to recall that at its twenty-second session, albeit in the context of arbitral awards arising out of ODR procedures, it considered that a need existed to address mechanisms that were simpler than the enforcement mechanism provided by the Convention on the Recognition and Enforcement of Foreign Arbitral Awards (New York, 1958), given the need for a practical and expeditious mechanism in the context of low-value, high-volume transactions.1
Pode-se perceber, portanto, que esta não é a solução que melhor se alinha com o pleno desenvolvimento da arbitragem eletrônica na seara internacional. O melhor, portanto, seria atualizar o art. 1º da Convenção de Nova York para que o mesmo passe a abranger o processo arbitral eletrônico.
Outro artigo da Convenção de Nova York que necessita de atualização é a alínea d do seu artigo 5º, que assim estipula:
Article V. Recognition and enforcement of the award may be refused, at the request of the party against whom it is invoked, only if that party furnishes to the competent authority where the recognition and enforcement is sought, proof that:
(…)
(d) The composition of the arbitral authority or the arbitral procedure was not in accordance with the agreement of the parties, or, failing such agreement, was not in accordance with the law of the country where the arbitration took place;2
No âmbito da arbitragem eletrônica, caso as partes não tenham definido como o procedimento será regulado, pode ser muito difícil discernir se o processo arbitral esteve de acordo com a lei do local da arbitragem. Afinal, conforme tratou-se em outra parte deste trabalho, a definição desta pode ser extremamente dificultosa.
Logo, na prática jurídica, a solução mais viável atualmente seria obrigar as partes de um processo arbitral eletrônico a sempre definirem da maneira mais completa possível como a arbitragem irá proceder.
Esta obrigatoriedade pode prejudicar a popularidade daquela, pois, com isso, cria-se mais uma condição para que este tipo de processo venha a ocorrer de modo legítimo, dificultando, pois, a sucessão do mesmo. Apesar disso, esta solução seria a que causaria menos dano para a arbitragem eletrônica no âmbito internacional.
Além disso, a Lei-Modelo da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional estipula em seu artigo 20:
Article 20. The parties are free to agree on the place of arbitration. Failing such agreement, the place of arbitration shall be determined by the arbitral tribunal having regard to the circumstances of the case, including the convenience of the parties.3
Logo, segundo esta lei-modelo, é perfeitamente cabível às partes escolherem o local em que o processo arbitral ocorrerá, havendo, portanto, a aplicação do que parte da doutrina chama de forum shopping, ou seja, a escolha do foro mais favorável por parte do autor (Del’Olmo, 2014, p. 398).
É válido ressaltar, ainda, que a lei-modelo da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional serve como base para a lei de arbitragem de mais de 60 países, estando presente em todos os continentes (Moses, 2012, p. 6-7). Com isso, demonstra-se que a necessidade da escolha do local do processo arbitral eletrônico estaria de acordo com o atual estágio de desenvolvimento da arbitragem internacional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BROWN, Chester; MILES, Kate. Evolution in Investment Treaty Law. 1ª ed. London: Cambridge University Press, 2011;
DEL’OLMO, F. S. Curso de Direito Internacional Privado. 10.ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
EMERSON, Franklin D. History of Arbitration Practice and Law. In: Cleveland State Law Review. Cleveland,vol. 19, nº 19, p. 155-164. Junho 1970. Disponível em: <http://engagedscholarship.csuohio.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=2726&context=clevstlrev> Acesso em: 18. mar. 2016.
GABBAY, Daniela Monteiro; MAZZONETTO, Nathalia ; KOBAYASHI, Patrícia Shiguemi . Desafios e Cuidados na Redação das Cláusulas de Arbitragem. In: Fabrício Bertini Pasquot Polido; Maristela Basso. (Org.). Arbitragem Comercial: Princípios, Instituições e Procedimentos, a Prática no CAM-CCBC. 1ed.São Paulo: Marcial Pons, 2014, v. 1, p. 93-130
GRINOVER, Ada Pellegrini; CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
HERBOCZKOVÁ, Jana. Certain Aspects of Online Arbitration. In: Masaryk University Law Review. Praga, vol. 1, n. 2, p. 1-12. Julho 2010. Disponível em: < http://www.law.muni.cz/sborniky/dp08/files/pdf/mezinaro/herboczkova.pdf> Acesso em 19. mai. 2016;
HEUVEL, Esther Van Den. Online Dispute Resolution as a Solution to Cross-Border E-Disputes an Introduction to ODR. OECD REPORT. Paris, vol. 1. n. 1. p. 1-31. Abril de 2003. Disponível em: <www.oecd.org/internet/consumer/1878940.pdf> Acesso em: 10 abril. 2016;
KACKER, Ujjwal; SALUJA, Taran. Online Arbitration For Resolving E-Commerce Disputes: Gateway To The Future. Indian Journal of Arbitration Law. Mumbai, vol. 3. nº 1. p. 31-44. Abril de 2014. Disponível em: < http://goo.gl/FtHi0A > Acesso em 20. mar. 2016;
Artigos
O que é uma Associação Criminosa para o Direito em 2024
Publicado
3 meses atrásem
27 de agosto de 2024A associação criminosa, no direito brasileiro, é configurada quando três ou mais pessoas se unem de forma estável e permanente com o objetivo de praticar crimes. Esse tipo de associação não se refere a um crime isolado, mas à criação de uma organização que visa à prática de atividades ilícitas de maneira contínua e coordenada.
Veja-se como está disposto no Código Penal, litteris:
Art. 288. Associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.
Parágrafo único. A pena aumenta-se até a metade se a associação é armada ou se houver a participação de criança ou adolescente.
Elementos Característicos da Associação Criminosa
Em primeiro lugar, para configurar a associação criminosa, é necessário que haja a participação de, no mínimo, três pessoas. Se o grupo for formado por apenas duas pessoas, pode caracterizar-se como “concurso de pessoas” em vez de associação criminosa.
Outro aspecto essencial para que seja possível a tipificação é que a associação criminosa deve ter como finalidade a prática de crimes. A existência de um propósito comum e a estabilidade do grupo são fundamentais para a configuração do delito.
Além disso, diferente da mera coautoria em um crime específico, a associação criminosa exige uma relação contínua e duradoura entre os membros, com a intenção de cometer crimes de forma reiterada.
Concurso de Pessoas, Organização Criminosa e Associação Criminosa
É importante diferenciar a associação criminosa de outros crimes semelhantes, como o crime de organização criminosa, previsto na Lei nº 12.850/2013.
A organização criminosa, além de exigir um número maior de participantes (mínimo de quatro pessoas), envolve uma estrutura organizada, com divisão de tarefas e objetivo de praticar crimes graves, especialmente aqueles previstos no rol da lei de organizações criminosas.
No caso da associação criminosa, como já observamos, não é necessário uma organização minuciosa, bastando um conluio de pessoas que tenham por objetivo comum a prática de crimes de maneira habitual.
Ademais, outra importante diferença que possa ser apontada entre o crime de associação criminosa e concurso de pessoas; é que na associação criminosa pouco importa se os crimes, para os quais foi constituída, foram ou não praticados.
Além do vínculo associativo e da pluralidade de agentes, o tipo requer, ainda, que a associação tenha uma finalidade especial, qual seja, a de praticar crimes, e para a realização do tipo não necessitam serem da mesma espécie. Insista-se, os crimes, para que se aperfeiçoe o tipo, não necessitam que tenham sido executados, haja vista que a proteção vislumbrada pelo tipo é a da paz pública.
Para o Superior Tribunal de Justiça, é essencial que seja comprovada a estabilidade e a permanência para fins de caracterização da associação criminosa, veja-se:
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE DROGAS. ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE. VÍNCULO ASSOCIATIVO ESTÁVEL E PERMANENTE NÃO DEMONSTRADO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
1. De acordo com a jurisprudência desta Corte Superior, para a subsunção do comportamento do acusado ao tipo previsto no art. 35 da Lei n. 11.343/2006, é imperiosa a demonstração da estabilidade e da permanência da associação criminosa.
2. Na espécie, não foram apontados elementos concretos que revelassem vínculo estável, habitual e permanente dos acusados para a prática do comércio de estupefacientes. O referido vínculo foi presumido pela Corte estadual em razão da quantidade dos entorpecentes, da forma de seu acondicionamento e do tempo decorrido no transporte interestadual, não ficando demonstrado o dolo associativo duradouro com objetivo de fomentar o tráfico, mediante uma estrutura organizada e divisão de tarefas.
3. Para se alcançar essa conclusão, não é necessário o reexame do conjunto fático-probatório constante dos autos, pois a dissonância existente entre a jurisprudência desta Corte Superior e o entendimento das instâncias ordinárias revela-se unicamente jurídica, sendo possível constatá-la da simples leitura da sentença condenatória e do voto condutor do acórdão impugnado, a partir das premissas fáticas neles fixadas.
4. Agravo regimental desprovido.
(AgRg no HC n. 862.806/AC, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 19/8/2024, DJe de 22/8/2024.)
Interessante observar um pouco mais sobre as diferenças entre organizações criminosas e associações criminosas aqui.
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Outros Aspectos Importantes
O art. 8° da Lei 8.072/90 prevê uma circunstância qualificadora, que eleva a pena de reclusão para três a seis anos, quando a associação visar a prática de crimes hediondos ou a eles equiparados.
Importante, ainda, não confundir o crime previsto no Código Penal com o estipulado na Lei de Drogas (Lei n. 11.343/2006) e na Lei n. 12.830/13 (art. 1º, parágrafo 2º). A Lei 11.343/2006, no seu art. 35, pune com reclusão de 3 a 1 0 anos associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, o tráfico de drogas (art. 33) ou de maquinários (art. 34). Nas mesmas penas incorre quem se associa para a prática reiterada do crime definido no art. 36 (financiamento do tráfico).
A Lei n° 12.850/13 define, em seu art. 1 °, § 2°, a organização criminosa como sendo a associação de quatro ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos, ou que sejam de caráter transnacional.
No art. 2°, referida Lei pune, com reclusão de três a oito anos, e multa, as condutas de promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa.
Por fim, como já foi dito, é imprescindível observar com atenção cada uma das elementares típicas dos crimes aqui narrados. O art. 288 traz uma previsão geral para o crime de associação criminosa, enquanto que nos demais tipos da legislação esparsa vislumbra-se a aplicação específica em situações peculiares, ainda que possam guardar semelhanças, esses são tipos que possuem elementares diversas.
Importante atentar-se sempre para o princípio da especialidade e as situações fáticas de cada caso concreto para que se amolde ao tipo penal mais adequado.
Não esqueçamos que o bem jurídico tutelado pelo tipo do art. 288 do CP é a paz pública. A pena cominada ao delito admite a suspensão condicional do processo (Lei 9.099/95). A ação penal será pública incondicionada.
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REFERÊNCIAS:
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa – 13. ed. rec., ampl. e atual. de acordo com as Leis n. 12.653, 12.720, de 2012 – São Paulo, Saraiva, 2013, 537 p.
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