Prisão em segunda instância: antes de saber se é possível, a quem cabe decidir?

Em véspera das votações das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC’s) de número 43 e 44, o tema votação em segunda instância tem sido pauta nas rodas de conversa do dia-a-dia. Neste momento, os entendidos jurídicos tomam cena, de modo que aqueles com maior eloquência e oratória acabam levando os argumentos para um lado ou para outro. Pois bem, a proposta deste texto é tratar um pouco sobre a questão da prisão em segunda instância, sem tanto tecnicismo, mas com o mínimo de rigor lógico.

As discussões acerca da prisão em segunda instância não são recentes. Remontam o sistema processual pré-constituição, bem como a mudança brusca de entendimento gerada pelo Habeas Corpus 162.292/SP. Esta criatura que vos escreve não costuma ser historiados, adotando as premissas de Luciano Oliveira, quando pede que não se fale do Código de Hamurábi (2004). Todavia, um pouco desse percurso nos indica em como chegamos nessa acalorada discussão.

O processo penal brasileiro é iniciado no momento pré-constitucional com uma ordem bastante autoritária. Este decorre de um decreto lei escrito em 1941, em pleno regime de Estado Novo varguista, sem qualquer pretensão de seguir um modelo acusatório. Portanto, neste sistema a lógica que imperava era que se alguém responderia um processo, deveria responde-lo preso, de modo que a liberdade seria uma exceção, sempre garantida por exemplo, com uma fiança. Nos casos em que não coubessem fiança, a consequência natural seria aguardar o processo preso. Em sede recursal então, configurava pressuposto para recorrer em certas circunstâncias a prisão. Deste modo, no modelo pré-constituição de 1988, não havia sequer a possibilidade de pensar em trânsito em julgado ou discussões do gênero.

Este modelo é invertido com a Constituição de 1988, que atrai diversos artigos de ordenamentos interacionais, em especial da Convenção Americana de Direitos Humanos, sobre os quais atribui-se como direito fundamental a liberdade. Deste modo, estabeleceu-se que ninguém aguardaria o processo preso, nos casos em que coubesse liberdade provisória e que a prisão seria uma exceção que dependeria de ordem escrita da autoridade competente. Neste bojo de escrita, surgiu ainda o artigo 5º, inciso LVII, que impõe que ninguém será considerado culpado, até o trânsito em julgado de sentença condenatória. A partir deste momento, assume-se o alardeado princípio da presunção de inocência.

No período pós constituição de 1988 então passou-se a mudar a percepção dos artigos do Código de Processo Penal, fazendo com que a liberdade fosse a regra. E o Poder Legislativo não foi inerte a esta ideia, de modo que criou uma série de reformas do código de processo penal, mencionando-se a reforma promovida pela Lei 12.403/11, a qual reformou o artigo 283 do Código de Processo Penal. Estabelecendo que ninguém poderá ser preso se não em decorrência de sentença penal condenatória transitada em julgado ou em decorrência de prisão temporária ou preventiva.

Deste modo, os pensadores do direito passaram a criar uma distinção bastante tranquila. A diferença entre a execução da pena e as prisões processuais seria o marco temporal do trânsito em julgado. Uma vez transitada em julgado uma decisão, não se falaria mais em prisão processual, e se falaria em prisão pena. Não transitado em julgado, não se falaria em prisão pena, mas tão somente em prisão processual.

Neste meio período a composição do Supremo Tribunal Federal foi se alterando, ministros se aposentando, e a jurisprudência foi fluindo. Então surge uma tese doutrinária que seria possível a execução provisória da pena, esta requerida a aplicação em alguns casos, sendo o mais relevante o do Habeas Corpus de nº 126.292/SP.

Em suma, este Habeas Corpus impugna decisão que se fundamenta no argumento que os recursos especiais e extraordinários não teriam efeito suspensivo, decorrentes do Habeas Corpus 313.021 do Superior Tribunal de Justiça, que por sua vez, decorria de decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Ademais, diz que não há discussão fática, de modo que o questionamento seria apenas de um sistema de controle de constitucionalidade das normas vigentes. Ainda assim, implica que seria inevitável a não prisão, mesmo com julgamento favorável dos recursos mencionados.

Diante desta condição, evidente que a defesa recorreu ao Supremo Tribunal Federal, esperando ver a ordem concedida. Assim argumentou-se que existiria ferimento ao princípio da presunção de inocência, o qual impõe que só há condenação após o trânsito em julgado. E por consequência lógica, só há de se falar em prisão de condenado ou nas prisões processuais, o que não era o caso.

Este julgamento que inverteu o entendimento não acolheu as teses da defensa, em suma aduzindo que não seria inconstitucional a realização da prisão em segunda instância. Isto porque a Constituição, em seu texto expresso, traz que ninguém será considerado CULPADO, e não preso, se não em decorrência de sentença penal condenatória. Por outro, traz uma série de argumentos utilitaristas, como o tempo de duração dos recursos em tribunal superior, as consequências da decisão que não manda prender culpados, e a própria ideia de confiabilidade do Poder Judiciário.

A partir deste precedente ocorreram alguns outros julgados marcantes, como o do Ex-presidente Lula. Todos com julgamentos similares nos quais os ministros mantiveram certa coerência entre seus votos passados e os votos que seguem proferidos.

Chama atenção as posições de dois ministros em especial, no caso, o Ministro Gilmar Mendes e a Ministra Rosa Weber. Em relação ao Ministro Gilmar Mendes, é sabido que este é figura polêmica, entretanto, não há de se desconsiderar que seus votos são bastantes fundamentados, bem como que este possui formação histórica e exemplar. O Ministro Gilmar Mendes escreveu em sua tese de doutorado sobre a possibilidade do Supremo Tribunal Federal atuar como um legislador positivo, isto é, para efetivar a constituição não apenas restringir leis, mas ter um papel efetivamente criador no ordenamento jurídico.

No que pese considerar a tese de Gilmar Mendes bastante distante das bases que defendo pessoalmente, é fatídico que o Supremo Tribunal Federal faz assim, movendo o que muitas vezes é chamado de ativismo judicial. Pois bem, no caso do Gilmar Mendes, este alterou o próprio entendimento algumas vezes em sua formação, chegando ao consenso, retribuído em seus últimos livros, que no entender deste apenas os recursos ao STF não teriam efeito suspensivo para uma eventual execução da pena.

A Ministra Rosa Weber, por sua vez, faço questão de abrir comentário porque à época do julgamento do ex-presidente Lula certamente foi mal compreendida. Esta entendia que deveria se seguir a jurisprudência consolidada da corte e que este entendimento não poderia ser julgado em casos individuais, devendo ser atacado por meio de uma ação coletiva.

Este argumento da Ministra abre bastante espaço na discussão acerca da prisão em segunda instância. Isto porque muito se fala que no Brasil a via recursal é quase uma via cruxis, e inclusive se compara com diversos outros países. Pois bem, isto é na realidade um reflexo do modelo institucional que se deu para o controle de normas, em especial para o controle de constitucionalidade destas.

No brasil aceitam-se dois modelos de questionamentos de normas. O modelo concentrado, via ações coletivas, como nos casos das ADCs e ADIs, e a via difusa, ou seja o julgamento por qualquer juiz de direito. Deste modo, para o modelo brasileiro é possível que qualquer pessoa chegue individualmente ao STF, desde que adote a via recursal correta.

Em países de controle tipicamente concentrado, como na Alemanha, é totalmente inviável este modelo de recursos por pessoas individuais. Lá apenas os legitimados ativos podem propor ações nas cortes constitucionais, e além do mais, o fazem por meio de controles abstratos não enfrentando propriamente casos concretos.

Em outros países, como nos Estados Unidos, apenas pela via difusa é possível seguir para cortes superiores. Todavia, os filtros de controle para que recursos podem subir são tão intensos que a corte americana chega a julgar menos de 100 processos ao ano.

Evidente que no Brasil há um descompasso na própria gênese do sistema recursal e talvez na distribuição de competências. No que pese também não ser verdade o argumento utilitarista que os processos prescrevem pela demora nos tribunais superiores. A bem da verdade, a maior parte das prescrições se dá por demoras sobrelevadas no primeiro grau de jurisdição.

De toda sorte, não ingressando ainda nesta seara, me parece mais importante entender as regras do sistema e só depois se deve falar dos efeitos destas e das eventuais modificações. No caso, o Brasil possui um problema sistémico na via recursal. Isto é fático. Todavia, resta a grande pergunta, cabe realmente ao Supremo Tribunal Federal consertar o sistema?

Digo, há uma distribuição natural de competências. O executivo deve administrar, o legislativo criar leis e o judiciário julgar os casos concretos. Seria então função do judiciário criar leis? Para alguns ministros é quase que natural esta resposta. O doutorado de Gilmar Mendes foi nesse sentido. Luis Roberto Barroso então é especialista em propor soluções do gênero.

Por outro, não podemos nos esquecer que esta perspectiva do Supremo atuar como legislador positivo impõe ainda num esvaziamento do legislativo. Isto porque é bem mais cômodo ao legislador aguardar que o Supremo decida para somente angariar votos. Isto porque o Supremo pode tomar decisões incômodas sem tanto risco político.

É nessa esteia que no meio das discussões sobre a prisão em segunda instância chovem deputados, senadores e oportunistas de plantão dizendo que o Supremo deve julgar alterando o entendimento da lei, em prol da sociedade ou mais do que for. Entretanto, não lembram que quem a função natural de alterar as leis é o legislativo.

Assim, sem precisar adentrar muito no aspecto presunção de inocência, este sim com lastro doutrinário, teórico e de discussão que caberia uma análise de constitucionalidade, deve-se pensar primeiramente no filtro de legalidade. O quanto o supremo se importa efetivamente com as leis, gostando ou não delas?

Evidente que assuntos de ampla discussão não se encerram com poucas linhas ou em algumas laudas. Todavia encerro lembrando do poema chamado “é preciso agir”. Até quando esperaremos que um órgão sem votos decida os pontos fundamentais e nos esqueceremos daqueles que votamos como elementos centrais do sistema.

“É PRECISO AGIR

Bertold Brecht (1898-1956)

Primeiro levaram os negros

Mas não me importei com isso

Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários

Mas não me importei com isso

Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis

Mas não me importei com isso

Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados

Mas como tenho meu emprego

Também não me importei

Agora estão me levando

Mas já é tarde.

Como eu não me importei com ninguém

Ninguém se importa comigo”

Referências:

LOPES JR, Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique. Parecer. Presunção de inocência: Do conceito de trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Consulente: Maria Cláudia Seixas. São Paulo: 2016. Disponível em < https://emporiododireito.com.br/wp-content/uploads/2016/06/Parecer_Presuncao_de_Inocencia_Do_concei.pdf>

OLIVEIRA, Luciano. Não fale do Código de Hamurábi! In: Sua excelência o comissário e outros ensaios de sociologia jurídica. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004. p. 137- 167.

STF, Supremo Tribunal Federal. HABEAS CORPUS 126.292. DJe. 07/02/2017. Disponível em: < http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4697570>

Imagem disponível em:<https://conteudo.imguol.com.br/c/noticias/45/2019/09/26/26set2019---plenario-do-stf-supremo-tribunal-federal-julga-caso-que-pode-levar-a-anulacao-de-sentencas-da-operacao-lava-jato-1569534601833_v2_900x506.jpg>. Acesso em 04 nov 2019.

Autor:

Ítalo Farias Braga

Bacharel em direito pela Universidade de Fortaleza e Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Direito (PPGD) da Universidade de Fortaleza – turma 18. Pesquisador pelo laboratório de ciências criminais (Lacrim ) na Universidade de Fortaleza. Professor Uninassau-CE e professor do Centro universitário FBuni.

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