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Penal

Prisão em segunda instância: antes de saber se é possível, a quem cabe decidir?

Redação Direito Diário

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Atualizado pela última vez em

 por Ingrid Carvalho

Em véspera das votações das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC’s) de número 43 e 44, o tema votação em segunda instância tem sido pauta nas rodas de conversa do dia-a-dia. Neste momento, os entendidos jurídicos tomam cena, de modo que aqueles com maior eloquência e oratória acabam levando os argumentos para um lado ou para outro. Pois bem, a proposta deste texto é tratar um pouco sobre a questão da prisão em segunda instância, sem tanto tecnicismo, mas com o mínimo de rigor lógico.

As discussões acerca da prisão em segunda instância não são recentes. Remontam o sistema processual pré-constituição, bem como a mudança brusca de entendimento gerada pelo Habeas Corpus 162.292/SP. Esta criatura que vos escreve não costuma ser historiados, adotando as premissas de Luciano Oliveira, quando pede que não se fale do Código de Hamurábi (2004). Todavia, um pouco desse percurso nos indica em como chegamos nessa acalorada discussão.

O processo penal brasileiro é iniciado no momento pré-constitucional com uma ordem bastante autoritária. Este decorre de um decreto lei escrito em 1941, em pleno regime de Estado Novo varguista, sem qualquer pretensão de seguir um modelo acusatório. Portanto, neste sistema a lógica que imperava era que se alguém responderia um processo, deveria responde-lo preso, de modo que a liberdade seria uma exceção, sempre garantida por exemplo, com uma fiança. Nos casos em que não coubessem fiança, a consequência natural seria aguardar o processo preso. Em sede recursal então, configurava pressuposto para recorrer em certas circunstâncias a prisão. Deste modo, no modelo pré-constituição de 1988, não havia sequer a possibilidade de pensar em trânsito em julgado ou discussões do gênero.

Este modelo é invertido com a Constituição de 1988, que atrai diversos artigos de ordenamentos interacionais, em especial da Convenção Americana de Direitos Humanos, sobre os quais atribui-se como direito fundamental a liberdade. Deste modo, estabeleceu-se que ninguém aguardaria o processo preso, nos casos em que coubesse liberdade provisória e que a prisão seria uma exceção que dependeria de ordem escrita da autoridade competente. Neste bojo de escrita, surgiu ainda o artigo 5º, inciso LVII, que impõe que ninguém será considerado culpado, até o trânsito em julgado de sentença condenatória. A partir deste momento, assume-se o alardeado princípio da presunção de inocência.

No período pós constituição de 1988 então passou-se a mudar a percepção dos artigos do Código de Processo Penal, fazendo com que a liberdade fosse a regra. E o Poder Legislativo não foi inerte a esta ideia, de modo que criou uma série de reformas do código de processo penal, mencionando-se a reforma promovida pela Lei 12.403/11, a qual reformou o artigo 283 do Código de Processo Penal. Estabelecendo que ninguém poderá ser preso se não em decorrência de sentença penal condenatória transitada em julgado ou em decorrência de prisão temporária ou preventiva.

Deste modo, os pensadores do direito passaram a criar uma distinção bastante tranquila. A diferença entre a execução da pena e as prisões processuais seria o marco temporal do trânsito em julgado. Uma vez transitada em julgado uma decisão, não se falaria mais em prisão processual, e se falaria em prisão pena. Não transitado em julgado, não se falaria em prisão pena, mas tão somente em prisão processual.

Neste meio período a composição do Supremo Tribunal Federal foi se alterando, ministros se aposentando, e a jurisprudência foi fluindo. Então surge uma tese doutrinária que seria possível a execução provisória da pena, esta requerida a aplicação em alguns casos, sendo o mais relevante o do Habeas Corpus de nº 126.292/SP.

Em suma, este Habeas Corpus impugna decisão que se fundamenta no argumento que os recursos especiais e extraordinários não teriam efeito suspensivo, decorrentes do Habeas Corpus 313.021 do Superior Tribunal de Justiça, que por sua vez, decorria de decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Ademais, diz que não há discussão fática, de modo que o questionamento seria apenas de um sistema de controle de constitucionalidade das normas vigentes. Ainda assim, implica que seria inevitável a não prisão, mesmo com julgamento favorável dos recursos mencionados.

Diante desta condição, evidente que a defesa recorreu ao Supremo Tribunal Federal, esperando ver a ordem concedida. Assim argumentou-se que existiria ferimento ao princípio da presunção de inocência, o qual impõe que só há condenação após o trânsito em julgado. E por consequência lógica, só há de se falar em prisão de condenado ou nas prisões processuais, o que não era o caso.

Este julgamento que inverteu o entendimento não acolheu as teses da defensa, em suma aduzindo que não seria inconstitucional a realização da prisão em segunda instância. Isto porque a Constituição, em seu texto expresso, traz que ninguém será considerado CULPADO, e não preso, se não em decorrência de sentença penal condenatória. Por outro, traz uma série de argumentos utilitaristas, como o tempo de duração dos recursos em tribunal superior, as consequências da decisão que não manda prender culpados, e a própria ideia de confiabilidade do Poder Judiciário.

A partir deste precedente ocorreram alguns outros julgados marcantes, como o do Ex-presidente Lula. Todos com julgamentos similares nos quais os ministros mantiveram certa coerência entre seus votos passados e os votos que seguem proferidos.

Chama atenção as posições de dois ministros em especial, no caso, o Ministro Gilmar Mendes e a Ministra Rosa Weber. Em relação ao Ministro Gilmar Mendes, é sabido que este é figura polêmica, entretanto, não há de se desconsiderar que seus votos são bastantes fundamentados, bem como que este possui formação histórica e exemplar. O Ministro Gilmar Mendes escreveu em sua tese de doutorado sobre a possibilidade do Supremo Tribunal Federal atuar como um legislador positivo, isto é, para efetivar a constituição não apenas restringir leis, mas ter um papel efetivamente criador no ordenamento jurídico.

No que pese considerar a tese de Gilmar Mendes bastante distante das bases que defendo pessoalmente, é fatídico que o Supremo Tribunal Federal faz assim, movendo o que muitas vezes é chamado de ativismo judicial. Pois bem, no caso do Gilmar Mendes, este alterou o próprio entendimento algumas vezes em sua formação, chegando ao consenso, retribuído em seus últimos livros, que no entender deste apenas os recursos ao STF não teriam efeito suspensivo para uma eventual execução da pena.

A Ministra Rosa Weber, por sua vez, faço questão de abrir comentário porque à época do julgamento do ex-presidente Lula certamente foi mal compreendida. Esta entendia que deveria se seguir a jurisprudência consolidada da corte e que este entendimento não poderia ser julgado em casos individuais, devendo ser atacado por meio de uma ação coletiva.

Este argumento da Ministra abre bastante espaço na discussão acerca da prisão em segunda instância. Isto porque muito se fala que no Brasil a via recursal é quase uma via cruxis, e inclusive se compara com diversos outros países. Pois bem, isto é na realidade um reflexo do modelo institucional que se deu para o controle de normas, em especial para o controle de constitucionalidade destas.

No brasil aceitam-se dois modelos de questionamentos de normas. O modelo concentrado, via ações coletivas, como nos casos das ADCs e ADIs, e a via difusa, ou seja o julgamento por qualquer juiz de direito. Deste modo, para o modelo brasileiro é possível que qualquer pessoa chegue individualmente ao STF, desde que adote a via recursal correta.

Em países de controle tipicamente concentrado, como na Alemanha, é totalmente inviável este modelo de recursos por pessoas individuais. Lá apenas os legitimados ativos podem propor ações nas cortes constitucionais, e além do mais, o fazem por meio de controles abstratos não enfrentando propriamente casos concretos.

Em outros países, como nos Estados Unidos, apenas pela via difusa é possível seguir para cortes superiores. Todavia, os filtros de controle para que recursos podem subir são tão intensos que a corte americana chega a julgar menos de 100 processos ao ano.

Evidente que no Brasil há um descompasso na própria gênese do sistema recursal e talvez na distribuição de competências. No que pese também não ser verdade o argumento utilitarista que os processos prescrevem pela demora nos tribunais superiores. A bem da verdade, a maior parte das prescrições se dá por demoras sobrelevadas no primeiro grau de jurisdição.

De toda sorte, não ingressando ainda nesta seara, me parece mais importante entender as regras do sistema e só depois se deve falar dos efeitos destas e das eventuais modificações. No caso, o Brasil possui um problema sistémico na via recursal. Isto é fático. Todavia, resta a grande pergunta, cabe realmente ao Supremo Tribunal Federal consertar o sistema?

Digo, há uma distribuição natural de competências. O executivo deve administrar, o legislativo criar leis e o judiciário julgar os casos concretos. Seria então função do judiciário criar leis? Para alguns ministros é quase que natural esta resposta. O doutorado de Gilmar Mendes foi nesse sentido. Luis Roberto Barroso então é especialista em propor soluções do gênero.

Por outro, não podemos nos esquecer que esta perspectiva do Supremo atuar como legislador positivo impõe ainda num esvaziamento do legislativo. Isto porque é bem mais cômodo ao legislador aguardar que o Supremo decida para somente angariar votos. Isto porque o Supremo pode tomar decisões incômodas sem tanto risco político.

É nessa esteia que no meio das discussões sobre a prisão em segunda instância chovem deputados, senadores e oportunistas de plantão dizendo que o Supremo deve julgar alterando o entendimento da lei, em prol da sociedade ou mais do que for. Entretanto, não lembram que quem a função natural de alterar as leis é o legislativo.

Assim, sem precisar adentrar muito no aspecto presunção de inocência, este sim com lastro doutrinário, teórico e de discussão que caberia uma análise de constitucionalidade, deve-se pensar primeiramente no filtro de legalidade. O quanto o supremo se importa efetivamente com as leis, gostando ou não delas?

Evidente que assuntos de ampla discussão não se encerram com poucas linhas ou em algumas laudas. Todavia encerro lembrando do poema chamado “é preciso agir”. Até quando esperaremos que um órgão sem votos decida os pontos fundamentais e nos esqueceremos daqueles que votamos como elementos centrais do sistema.

“É PRECISO AGIR

Bertold Brecht (1898-1956)

Primeiro levaram os negros

Mas não me importei com isso

Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários

Mas não me importei com isso

Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis

Mas não me importei com isso

Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados

Mas como tenho meu emprego

Também não me importei

Agora estão me levando

Mas já é tarde.

Como eu não me importei com ninguém

Ninguém se importa comigo”

Referências:

LOPES JR, Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique. Parecer. Presunção de inocência: Do conceito de trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Consulente: Maria Cláudia Seixas. São Paulo: 2016. Disponível em < https://emporiododireito.com.br/wp-content/uploads/2016/06/Parecer_Presuncao_de_Inocencia_Do_concei.pdf>

OLIVEIRA, Luciano. Não fale do Código de Hamurábi! In: Sua excelência o comissário e outros ensaios de sociologia jurídica. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004. p. 137- 167.

STF, Supremo Tribunal Federal. HABEAS CORPUS 126.292. DJe. 07/02/2017. Disponível em: < http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4697570>

Imagem disponível em:<https://conteudo.imguol.com.br/c/noticias/45/2019/09/26/26set2019---plenario-do-stf-supremo-tribunal-federal-julga-caso-que-pode-levar-a-anulacao-de-sentencas-da-operacao-lava-jato-1569534601833_v2_900x506.jpg>. Acesso em 04 nov 2019.

Autor:

Ítalo Farias Braga

Bacharel em direito pela Universidade de Fortaleza e Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Direito (PPGD) da Universidade de Fortaleza – turma 18. Pesquisador pelo laboratório de ciências criminais (Lacrim ) na Universidade de Fortaleza. Professor Uninassau-CE e professor do Centro universitário FBuni.

Dicas

O que torna uma lesão corporal grave ou gravíssima?

Redação Direito Diário

Publicado

em

lesão corporal

É bem recorrente a menção em uma notícia jornalística à ocorrência de uma lesão corporal de natureza grave ou gravíssima. Tal situação pode gerar dúvidas nos interlocutores, uma vez que nem sempre é explicado o critério utilizado para a classificação das lesões corporais.

A bem da verdade, não há complicação nesta matéria, haja vista que os parágrafos 1º e 2º do artigo 129 do Código Penal, qual seja o que tipifica o crime de lesão corporal, enumera as qualificadoras do aludido delito.

Veja mais: Qual a diferença entre os 3 tipos de asfixia: esganadura, enforcamento e estrangulamento?

Veja mais: Lei Maria da Penha: o que se enquadra como violência doméstica e familiar?

Lesão Corporal Grave

No caso da lesão corporal de natureza grave, tem-se que sua pena base é de reclusão, de 1 a 5 anos, enquanto a pena base da lesão corporal simples é de detenção, de 3 meses a 1 ano.

Ainda neste diapasão, são 4 as possibilidades que ensejam a incidência desta modalidade qualificada: (I) incapacidade para as ocupações habituais por mais de 30 dias; (II) perigo de vida; (III) debilidade permanente de membro, sentido ou função; ou (IV) aceleração de parto.

Lesão Corporal Gravíssima

Com efeito, em havendo lesão corporal de natureza gravíssima, a pena base evidentemente aumenta ainda mais, passando a ser de reclusão, de 2 a 8 anos. No tocante ao número de cenários que culminam com sua aplicação, são 5 os casos: (I) incapacidade permanente para o trabalho; (II) enfermidade incurável; (III) perda ou inutilização do membro, sentido ou função; (IV) deformidade permanente; ou (V) aborto.

Diante do que foi exposto até então, são imprescindíveis algumas considerações. A primeira delas diz respeito à debilidade permanente de membro, sentido ou função. A observação a ser feita é referente a casos onde a debilidade ocorre em órgão que possui um par, como é o caso dos rins e dos olhos. Dito isto, ocorre lesão corporal gravíssima ainda que o agente somente cause a deterioração do órgão remanescente, como quando a vítima apenas tem um rim ou um olho.

Ora, é evidente que a perda de um olho não acarreta na perda da visão como um todo. É igualmente incontestável que, caso a vítima dependa apenas de um olho para enxergar e venha a perdê-lo, ocorre uma lesão corporal gravíssima, pois não houve apenas debilidade, mas sim a perda total da função. Na situação em tela, pouco importa se o agente concorreu para a perda da visão dos dois olhos, pois a perda do sentido ocorreu com a eliminação do olho remanescente.

O segundo e último adendo versa acerca da incapacidade permanente para o trabalho. Há divergência doutrinária neste tópico, pois parte da doutrina se posiciona no sentido de que apenas há o enquadramento da lesão corporal gravíssima se houver inaptidão para qualquer modalidade laborativa.

Em contraponto, uma segunda corrente doutrinária se mostra mais flexível. Esta aduz que a incapacidade permanente é uma diminuição efetiva da capacidade física comparada à que possuía a vítima antes da lesão. Alem disso, deve ser observado o campo do factualmente possível, e não o do teoricamente imaginável. Logo, para a aplicação da sanção penal, não seria possível exigir de um artista ou intelectual que passasse a trabalhar como pedreiro.

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Referências:
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 14ª Edição, 2014.

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Artigos

O Vilipêndio ao Cadáver na Era Digital

Redação Direito Diário

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vilipêndio ao cadáver

Vilipêndio a cadáver é um crime que reflete a relação da sociedade com a dignidade humana, mesmo após a morte. Desde tempos antigos, civilizações atribuem um valor sagrado aos rituais fúnebres e ao corpo dos falecidos, entendendo que o respeito a esses aspectos é essencial para honrar não só a memória dos mortos, mas também a paz e a moral dos vivos.

Assim, leis surgiram para proteger essa dignidade, garantindo que o corpo e o descanso do falecido sejam preservados de qualquer ataque ou tratamento desrespeitoso. Vamos entender um pouco mais sobre isso.

Veja mais: Direito Digital e LGPD: livros para ficar por dentro em 2024

Abordagem histórica do vilipêndio ao cadáver

O sentimento que o homem tem em relação aos seus pares atravessou os séculos, gerações e a seleção natural. É uma característica intrínseca ao homo sapiens a capacidade de se afeiçoar aos outros de sua mesma espécie, permitindo que laços sejam criados como forma de facilitar a convivência em sociedade.

É por meio dele que se constroem os pilares das relações humanas, que vão guiar os homens por toda a vida e permitir que eles se unam com base tanto pela relação sanguínea quanto pela afetiva.

Esse sentimento não desparece após a morte de um ente querido, pelo contrário. Não são raras às vezes em que a dor da perda é responsável por unir e aproximar. O ritual fúnebre é a forma pelo qual as pessoas se despedem e isso é característica de todos os povos, independente de raça ou religião.

É nesse momento em que se cultua sua memória, integridade, história e imagem, de forma que esses valores transcendam sua morte. Além de ser uma forma de preservar a imagem do morto, também é o meio encontrado para acalentar os familiares pela dor da perda, que é sempre inevitável.

O culto aos mortos é comum a quase todas as épocas e quase todos os povos, vindo da Grécia antiga o costume de guardar luto, acender velas, levar coroas e flores. Segundo relato de Freud, o luto é uma forma de sobrevivência. É a forma usada pelos os que sobrevivem para lidar com a perda de alguém que continuará a ser querido, mesmo que não se encontre mais presente junto aos demais.

Se cadáver é o corpo humano que viveu, então o respeito que se deve aos mortos é consequência da vida que eles tiveram, da sua memória e do que fizeram em vida.

Vilipêndio ao cadáver e o Direito

No sentido tanto de proteger tanto a memória do morto quanto preservar os seus familiares nesse momento delicado, o Código Penal traz, em seu Título V, os crimes contra o sentimento religioso e o respeito aos mortos.

O legislador uniu essas duas espécies de crimes em um só Título por conta da afinidade entre eles, já que o sentimento religioso e o respeito aos mortos consistem valores éticos e morais que se assemelham, posto que o tributo que se dá a eles advém de um caráter religioso que se propagou ao longo dos séculos, abordando, assim, o vilipêndio ao cadáver.

O artigo 212 do referido diploma legal apresenta a tipificação relacionada ao vilipêndio ao cadáver ou suas cinzas, cominando pena de detenção de um a três anos, além de multa. O bem jurídico tutelado nesse caso é o sentimento de respeito aos mortos, já que o de cujus não é considerado titular de direito.

Assim, tutelar esse direito possui um caráter social e por isso que o sujeito passivo dos crimes contra o respeito aos mortos também é o Estado, já que ele é a personificação da coletividade e tem a missão de protegê-la como um dos seus interesses primordiais. O vilipêndio ao cadáver, segundo Rogério Sanches da Cunha, em Manual de Direito Penal – Parte Especial. Ed Jus Povivm, 7ª Ed. P. 433, se define como:

É crime de execução livre, podendo ser praticado pelo escarro, pela conspurcação, desnudamento, colocação do cadáver em posições grosseiras ou irreverentes, pela aposição de máscaras ou de símbolos burlescos e até mesmo por meio de palavras; pratica o vilipêndio quem desveste o cadáver, corta-lhe um membro com propósito ultrajante, derrama líquidos imundos sobre ele ou suas cinzas (RT 493/362).

Assim, a tipificação legal do vilipêndio é clara em nosso ordenamento jurídico e não deixa margem para dúvidas quanto a sua interpretação. Todavia, com o advento da internet e da rápida disseminação de imagens e informações, o vilipêndio ao cadáver ganhou novas formas de ser praticada.

Vilipêndio ao cadáver no mundo digital

O compartilhamento de fotos e vídeos que claramente desrespeitam a imagem do morto se propaga de firma assombrosa pela rede mundial de computadores em questão de minutos. Em casos de acidentes ou crimes brutais, muitas vezes as imagens chegam às redes sociais antes mesmo que as autoridades policiais e locais sejam comunicadas do ocorrido.

Este fato acaba gerando empecilhos às investigações, já que na tentativa macabra de registrar o ocorrido, as pessoas acabam contaminando a cena do crime e, consequentemente, prejudicando as investigações, tudo em prol de um motivo injustificável.

Não se pode alegar, entretanto, que essa forma de cometer o vilipêndio ao cadáver é uma das mazelas do século XXI. Antigamente a prática já existia, mas como as informações não se propagavam tão rapidamente, as imagens eram armazenadas em disquetes ou CD’s e levavam anos para serem expostas.

Hoje, ao contrário, a facilidade com que os arquivos digitais podem ser compartilhados, copiados e propagados atropela as ponderações sobre o certo e errado, bem e mal, engraçado e depreciativo.

Não é raro o internauta se deparar com imagens de corpos completamente desfigurados, que circulam pelas redes sociais de forma incessante, em um claro desrespeito à memória do morto e ao sentimento de pesar da família.

Assim, a família, além de ter que lidar com a dor da perda, ainda precisa suportar a situação vexatória de ver imagens do ente querido expostas aos olhos do mundo. Um momento provado torna-se público da pior maneia possível, gerando traumas e danos de difícil reparação.

O vilipêndio ao cadáver que acontece por meio do compartilhamento das fotos ou vídeos, entretanto, apesar de ser fato atípico para o Direito Penal, se insere na seara do Direito Civil e gera ilícito, já que quem provoca dano a outrem é obrigado a repará-lo, conforme se depreende dos artigos 186 e 927 do Código Civil (BRASIL, 2002), os quais seguem transcritos:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

O dano em questão trata-se, no caso do vilipêndio, da situação vexatória que a família do morto sofre ao se deparar com fotos ou vídeos do ente querido sendo compartilhados indiscriminadamente como se fossem motivo de diversão aos olhos de um público que se satisfaz com o sofrimento alheio. Este é o motivo pelo qual a conduta de divulgar merece tanto repúdio quanto a de quem fornece as imagens.

Dessa forma, busca o Estado, na sua qualidade de protetor da sociedade, preservar a memória do morto e evitar a situação vexatória pela qual a família passa. Quando isso não se configura possível, deve o Estado reparar o sofrimento causado à família da vítima como forma de modelo corretivo para evitar que tais condutas continuem a ser praticadas.

A atitude de quem divulga e compartilha tais imagens é reprovada jurídica e socialmente, com punições para ambos os casos. Não é por a internet ser um território aparentemente livre e onde todos podem expor suas opiniões que os direitos perdem as suas garantias fundamentais, motivo pelo qual se torna necessário ponderar antes de compartilhar e facilitar a propagação de qualquer conteúdo, e em especial os que são visivelmente prejudiciais e vexatórios. As responsabilizações cíveis e criminais, dependendo da conduta, existem e são aplicadas, mas a maioria das pessoas infelizmente só dá conta disso quando já é tarde demais.

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Referências:

BRASIL. Código Penal Brasileiro (1940). Código Penal Brasileiro. Brasília, DF, Senado, 1940.
BRASIL. Código Civil Brasileiro (2002). Código Civil Brasileiro. Brasília, DF, Senado, 2002.
SOUZA, Gláucia Martinhago Borges Ferreira de.  A era digital e o vilipêndio ao cadáver. Disponível em: <http://gaumb.jusbrasil.com.br/artigos/184622172/a-era-digital-e-o-vilipendio-a-cadaver>. Acesso em 05 de janeiro de 2016.
CUNHA, Rogério Sanches da. Manual de Direito Penal – Parte Especial. Ed Jus Povivm, 7ª Ed. P.433
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Dicas

Lei maria da penha: o que se enquadra como violência doméstica e familiar?

Redação Direito Diário

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maria da penha

A Lei Maria da Penha foi consequência de anos de luta pela defesa das mulheres no âmbito doméstico. O nome da lei é uma homenagem feita a uma das vítimas, que passou a lutar pelo combate à violência contra as mulheres após ter sofrido duas tentativas de assassinato pelo marido, tendo ficado paraplégica em decorrência dos ataques.

Em 2006, foi sancionada a Lei 11.340, a qual disciplina meios de prevenir, punir e erradicar as formas de violência contra representantes do sexo feminino. Acontece que o dispositivo presente nessa lei possui delimitações que, muitas vezes, são ignoradas nas informações transmitidas popularmente.

Nesse sentido, atenta-se que o texto legal é claro ao definir que se trata de “violência doméstica e familiar”. Assim, diferentemente do que muitos podem pensar, não basta que tenha havido uma violência contra uma mulher para que o crime esteja caracterizado. Então, o que seria essa violência doméstica?

Os legisladores tiveram essa cautela, a fim de evitar maiores contradições acerca do tema. No artigo 5º da Lei Maria da Penha (11.340/2006), restam determinadas as hipóteses em que se configura a violência doméstica e a familiar.

Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

Parágrafo único.  As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.

Portanto, constata-se que é necessário que haja ou uma relação íntima de afeto, ou uma relação de parentesco, ou uma coabitação, não precisando haver as três hipóteses concomitantemente. Ou seja, pelo menos um desse elementos tem que estar presente na situação para que a violência se enquadre na punição prevista na Lei Maria da Penha.

Assim, faz-se uma ressalva quanto ao caso de o agressor já ter convivido com a vítima em uma relação de afeto íntimo, é o caso, por exemplo, de ex-namorados. Nesses casos, tanto a doutrina quanto a jurisprudência majoritária entende que é preciso que haja um nexo causal entre a violência e relação existente anteriormente entre eles. Desse modo, o motivo que levou a agressão deve advir da convivência que um dia existiu.

Nessa perspectiva, o julgado do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), CC 103813 de 24/06/2009, ratifica esse entendimento quanto a necessidade de ser observado o nexo causal entre a agressão e o convívio anterior.

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. LEI MARIA DA PENHA. EX-NAMORADOS. VIOLÊNCIA COMETIDA EM RAZÃO DO INCONFORMISMO DO AGRESSOR COM O FIM DO RELACIONAMENTO. CONFIGURAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER. APLICAÇÃO DA LEI 11.340/2006. COMPETÊNCIA DO SUSCITADO. 1. Configura violência contra a mulher, ensejando a aplicação da Lei nº 11.340/2006, a agressão cometida por ex-namorado que não se conformou com o fim de relação de namoro, restando demonstrado nos autos o nexo causal entre a conduta agressiva do agente e a relação de intimidade que existia com a vítima. 2. In casu, a hipótese se amolda perfeitamente ao previsto no art. 5º, inciso III, da Lei nº 11.343/2006, já que caracterizada a relação íntima de afeto, em que o agressor conviveu com a ofendida por vinte e quatro anos, ainda que apenas como namorados, pois aludido dispositivo legal não exige a coabitação para a configuração da violência doméstica contra a mulher. 3. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal de Conselheiro Lafaiete -MG, o suscitado.

Portanto, constata-se a necessidade da observância desses termos que caracterizam a violência doméstica e familiar, as quais são elementos essenciais desse tipo, de modo que sua presença é indispensável para caracterização do crime previsto na Lei 11.340 de 2006.

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