O ano de 2012 pode ser considerado privilegiado juridicamente, pois muito foram os casos delicados que os nossos tribunais superiores tiveram que apreciar até o presente momento. Uma decisão em especial, que se pode e se deve ter a devida atenção, é o Recurso Especial nº 1.159.242-SP, onde a relatora Ministra Nancy Andrighi se deparou com um pedido de dano afetivo pelo abandono de um pai à sua filha.
A Requerida havia ingressado judicialmente contra o pai por ter sofrido abandono material e afetivo durante sua infância e juventude. O Juiz que estava incumbido de julgar o caso julgou procedente o pedido de recurso interposto pelo seu pai (que se fundamentara que o distanciamento deveu-se pelo comportamento agressivo da mãe da Requerida). Foi fixado a compensação por danos morais em R$ 415.000,00 (quatrocentos e quinze mil reais).
No Recurso Especial, o Requerente alegou que o posicionamento do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP) foi divergente em relação ao entendimento do Superior Tribunal de Justiça à matéria que afasta a possibilidade de compensação por abandono moral ou afetivo (vide REsp nº 757411/MG).
Em suas contrarrazões, a Requerida reiterou os argumentos relativos à existência de abandono material, moral, psicológico e humano que teria sido vítima desde seu nascimento (a sua tese teria sido reforçado pela decisão do TJ/SP).
Após essa breve digressão do caso, vamos adentrar nos aspectos intrínsecos ao voto da relatora, uma vez posto que essa decisão gerou grande repercussão midiática. O voto da ministra possui pontos que podem ser considerados de vanguarda, como nos trechos que passo a destacar aqui, como a questão do pátrio poder e o dever de cuidar da prole:
“Nota-se, contudo, que a perda do pátrio poder não suprime, nem afasta, a possibilidade de indenizações ou compensações, porque tem como objetivo primário resguardar a integridade do menor, ofertando-lhe, por outros meios, a criação e educação negada pelos genitores, e nunca compensar os prejuízos advindos do malcuidado recebido pelos filhos”.
Ora, o nascimento de um filho é de inteira responsabilidade dos pais. Se não houve o animus de que ele tivesse sido gerado, nenhum que contribuiu para a gestação da nova vida pode, deliberadamente, deixar as responsabilidades que surgem com o vínculo de descendência para apenas um dos pais.
No Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) temos, entre seus dispositivos, o art. 21 que dispõe que “O poder familiar será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para a solução da divergência” e o art. 22 completa que “Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais”.
Não podemos nos esquecer que, como bem dispõe o art. 24 do referente estatuto “A perda e a suspensão do poder familiar serão decretadas judicialmente, em procedimento contraditório, nos casos previstos na legislação civil, bem como na hipótese de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações a que alude o art. 22”. Ora, não foi o que ocorreu aqui, pois não houve um contraditório prévio para que se fosse decretado à perda do pátrio poder do Requerente.
Por outro lado, conforme salienta Maria Helena Diniz (2006, p.65) o Estatuto rege-se pelos princípios do melhor interesse, paternidade responsável e proteção integral, visando a conduzir o menor à maioridade de forma responsável, constituindo-se como sujeito da própria vida, para que possa gozar de forma plena dos seus direitos fundamentais, o que poderá ser mitigado caso a criança não tenho seus direitos, dentre esses, em especial a convivência familiar, observados.
É que a convivência familiar, também destacada pelo constituinte pátrio, é prevista no art. 227 da Constituição, que a considera parte integrante do melhor interesse da criança e do adolescente, sendo fato entretecido em relações sociais duradouras, com objetivo de constituição de família, o que as distingue de outras relações sociais. Assim, a afetividade deve ser considerada um verdadeiro dever jurídico a que devem obediência pais e filhos, em sua convivência, independentemente de haver entre eles afeto real (LOBO, 2006, p.06).
Na leitura do voto, a Ministra salientou quanto da dificuldade de caracterização do dano moral ao evidenciar que nas relações familiares “(…) se entremeiam fatores de alto grau de subjetividade (…) os quais dificultam, sobremaneira, definir, ou perfeitamente identificar e/ou constatar, os elementos configuradores do dano moral”.
Corroborado com a leitura do ECA e do voto que analisamos é, nas palavras da ministra “(…) indiscutível o vínculo não apenas afetivo, mas também legal que une pais e filhos (…)”. Antes mesmo da existência de um código – ou dispositivo legal que trouxesse essa obrigação – pais já tinham obrigação para com seus filhos como um dever “natural” que, pelo menos aos olhos da formação do que hoje é o Brasil, é “pacificado” e interiorizado nas famílias.
Algo que, a priori, é um desafio ao magistrado é questão da responsabilidade daqueles que descumprem as obrigações inerentes ao elo que une pais e filhos. Nas palavras da Ministra (grifos do original):
“Perquirir, com vagar, não sobre o dever de assistência psicológica dos pais em relação à prole – obrigação inescapável –, mas sobre a viabilidade técnica de se responsabilizar, civilmente, àqueles que descumprem essa incumbência, é a outra faceta dessa moeda e a questão central que se examina neste recurso”.
O fato é que nenhum pai pode se eximir da responsabilidade inerente a sua condição de genitor. Ora, os danos na formação das pessoas que tiveram um dos genitores ausentes (ou que servirão de exemplos a não serem seguidos) são conhecidos e há todo um ramo da psicologia e áreas afins que estudam os seus efeitos. A Ministra Nancy Andrighi colocou que:
“Colhe-se tanto da manifestação da autora quanto do próprio senso comum que o desvelo e atenção à prole não podem mais ser tratadas como acessórios no processo de criação, porque, há muito, deixou de ser intuitivo que o cuidado, vislumbrado em suas diversas manifestações psicológicas, não é apenas uma fator importante, mas essencial à criação e formação de um adulto que tenha integridade física e psicológica e seja capaz de conviver, em sociedade, respeitando seus limites, buscando seus direitos, exercendo plenamente sua cidadania”.
Há uma construção de pensamento durante o documento jurídico elaborado pela relatora que ganhou uma repercussão em especial (grifos do original) que gostaria de trazer à baila:
“(…) Vê-se hoje nas normas constitucionais a máxima amplitude possível e, em paralelo, a cristalização do entendimento, no âmbito científico, do que já era empiricamente percebido: o cuidado é fundamental para a formação do menor e do adolescente; ganha o debate contornos mais técnicos, pois não se discute mais a mensuração do intangível – o amor – mas, sim, a verificação do cumprimento, descumprimento, ou parcial cumprimento, de uma obrigação legal: cuidar. (…) Alçando-se, no entanto, o cuidado à categoria de obrigação legal supera-se o grande empeço sempre declinado quando se discute o abandono afetivo – a impossibilidade de se obrigar a amar. (…) O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os lindes legais, situando-se, pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa materialização, no universo meta-jurídico da filosofia, da psicologia ou da religião. O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas: presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento dado aos demais filhos – quando existirem –, entre outras fórmulas possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes.” precisa materialização, no universo meta-jurídico da filosofia, da psicologia ou da religião. O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas: presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento dado aos demais filhos – quando existirem –, entre outras fórmulas possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes.”
Aqui, a magistrada faz uma construção interessantíssimo quanto a questão do “amar” e do dever de “cuidar”. Não podia ter sido mais feliz as colocações que ela fez durante o voto sobre a pertinência ao caso. A omissão do genitor (seja no aspecto material ou – no caso em estudo – afetivo) é algo que trás prejuízos inestimáveis.
Usar de casos similares para obtenção de valores de maneira “gratuita” não pode ser admitido sob nenhuma hipótese no nosso sistema legal. O valor de R$415.000,00 (quatrocentos e quinze mil reais) é, em um primeiro momento, uma quantia considerável. Isto poderia dar margem para recursos futuros em outras ações com o propósito de não ter a lide em si resolvida: e sim uma “gorda” quantia em dinheiro ganho de maneira fácil. É tanto que, no caso em questão, a decisão do recurso foi o de reduzir o valor para R$200.000,00 (duzentos mil reais).
Outra passagem que se deve ter uma atenção em especial é esta (grifos do original): “Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos. (…) Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever”.
Aqui, o judiciário, na personificação da Ministra Nancy Andrighi, mostrou que não está alheio às causas do cotidiano e nem está apenas focado na aplicação cega da lei: As observações de seu voto são de estrema importância para os casos similares! O ato de julgar é difícil por si só (uma vez que há uma carga de responsabilidade imensa nele).
As ponderações entre a seara jurídica, sociológica e antropológica estão evidentes quando é reiterado que não se obrigar alguém a sentir um sentimento (amor de um pai para com a sua filha na situação em questão), mas o judiciário não pode ignorar das responsabilidades que o vínculo biológico trás entre o genitor e sua prole. Não só os aspectos legais foram de extrema relevância, como todos os outros aspectos que foram levantados pela Relatora. Conforme salientam as palavras de Maria Berenice Dias (2007, p.67):
“O afeto não é somente um laço que envolve os integrantes de uma família. Igualmente tem um viés externo, entre as famílias, pondo humanidade em cada família, compondo, no dizer de Sérgio Resende de Barros, a família humana universal, cujo lar é a aldeia global, cuja base é o globo terrestre, mas cuja origem sempre será, como sempre foi, a família (…).”
Destaca, ainda, que o direito das famílias instalou uma nova ordem jurídica para a família, atribuindo valor jurídico ao afeto (DIAS, 2007, p.67). No mesmo sentido é o entendimento de Rolf Madaleno (2012, on-line) que assevera:
Foi-se o tempo dos equívocos das relações familiares gravitarem exclusivamente na autoridade do pai, como se ele estivesse acima do bem e do mal apenas por sua antiga função provedora, sem perceber que deve prover seus filhos muito mais de carinho do que de dinheiro, ou vantagens patrimoniais. Têm os pais o dever expresso e a responsabilidade de obedecerem às determinações judiciais ordenadas no interesse do menor, como disso é exemplo o dever de convivência e de visitação, que há muito deixaram de representar mera faculdade do genitor não guardião, causando a irracional omissão dos pais irreparáveis prejuízos de ordem moral e psicológica à prole.
Para alguns, o Dano Afetivo não deveria nem ser reconhecido, mas não há como refutar toda a evolução do Direito de Família e os recentes julgados como o que nos foi brindado pelo recurso em questão. Fazendo minhas as palavras da Ministra podemos refletir que: “(…) amar é faculdade, cuidar é dever” e não há nenhum genitor que possa se eximir das suas obrigações para com seus filhos (fora os casos extraordinários e especialíssimos que a vida consegue criar e surpreender o legislador e o judiciário).
O Dano Afetivo é totalmente admissível como o que ficou demonstrado nesse caso concreto, mesmo tendo a sua valoração em pecúnia uma das partes mais difíceis do julgado. O abandono afetivo é bem mais prejudicial do que o abandono material uma vez que as consequências negativas não palpáveis: elas são subjetivas. Qualquer valor pecuniário dado em relação a este tipo de dano é difícil de mensurar. Para não transformar o judiciário em um meio fácil de se obter lucros, a decisão do Recurso Especial nº 1.159.242-SP foi acertada na redução dos valores, bem como no reconhecimento de que não se é possível obrigar alguém a amar, mas não há como se escusar dos deveres decorrentes dos atos de cada pessoa.