A CARTA DA ONU:
A autonomia do Direito Internacional dos Direitos Humanos em relação ao Direito Internacional Público tem como marco a elaboração da Carta das Nações Unidas, o que ocorreu em 1945, no período imediatamente pós-Segunda Guerra Mundial.
É evidente que antes desta data existiam normas acerca dos Direitos Humanos, mas, após o testemunho das atrocidades que ocorreram durante a Segunda Guerra Mundial, fez-se necessária a criação de um conjunto de dispositivos que pudessem de fato proteger de forma eficaz os Direitos Humanos, quais sejam estes os mais básicos inerentes a todos os seres humanos.
Inicialmente, sabe-se que o escopo inicial do Direito Internacional era a manutenção e a propagação da paz. Com o passar do tempo e a mudança dos panoramas, notadamente sob a influência de eventos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial, passou-se a buscar também a proteção dos Direitos Humanos, sendo este o principal objetivo no âmbito jurídico internacional contemporâneo. Almeja-se também a cooperação internacional nos planos econômico, social e cultural, além do alcance de um padrão internacional de saúde e proteção ao meio ambiente.
Diante de toda a conjuntura exposta, foi elaborada a Carta das Nações Unidas de 1945, cujos princípios eram a manutenção da paz e da segurança internacional e o respeito aos direitos humanos e às liberdades individuais (raça, sexo, cor, religião etc.).
Tal diploma contribuiu de forma singular para o processo de solidificação e valorização da política de proteção aos Direitos Humanos. Com isso, houve a consolidação do que seriam as prioridades da Organização das Nações Unidas: a proteção das liberdades fundamentais e dos Direitos Humanos. A Carta foi recepcionada pelo Brasil por meio do Decreto 19.841, de 22 de outubro de 1945.
Todavia, a Carta deixou uma lacuna consideravelmente grave: não veio a definir o que seriam Direitos Humanos e liberdades fundamentais, preocupando-se “somente” em ressaltar a importância de respeitá-los.
Inclusive, ficou claro que os países signatários deveriam se sentir obrigados a respeitar estes elementos não só no âmbito interno, mas também pela cooperação internacional, buscando esse respeito em outros países, caracterizando o sistema global de proteção aos Direitos Humanos.
A omissão relativa à conceituação de Direitos Humanos e das liberdades fundamentais culminou em uma verdadeira comoção no plano internacional visando ao devido preenchimento desta lacuna, o que acarretou a elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pactos de Nova York de 1966). São estes os três pilares da proteção do Direito Internacional dos Direitos Humanos, conforme veremos a seguir.
A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS:
Proclamada em 10 de dezembro de 1948, a Declaração Internacional dos Direitos Humanos é tida como a pedra fundamental da proteção aos Direitos Humanos, visto que foi o primeiro instrumento jurídico internacional que conceituou e positivou os direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de suas peculiaridades, tendo com principal fundamento a dignidade da pessoa humana.
A bem da verdade, não é tecnicamente um tratado, possuindo o caráter de recomendação da ONU. Todavia, devido à sua imprescindibilidade para a manutenção de uma harmonia na sociedade internacional, acredita-se que se trata de norma jus cogens, possuindo, assim, força vinculante, ou configurando-se até mesmo uma extensão da Carta de 1945.
Vale ressaltar também outro aspecto que demonstra a importância deste documento: ele foi utilizado como modelo para diversas outras cartas e convenções, além de ter sido citado na fundamentação de decisões judiciais nos âmbitos interno e internacional.
Seus 30 artigos possuem uma estrutura bipartite, visto que tutelam direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais, acarretando na união dos discursos liberal e social, haja vista ter previsto no hall de Direitos Humanos tanto direitos tidos como de 1ª geração (civis e políticos), como os de 2ª geração (sociais, econômicos e culturais).
Contudo, uma lacuna da Declaração é que ela não previu um órgão responsável pelo zelo de suas normas. Logo, não foi previsto tribunal, corte, comitê ou nenhum outro ente que pudesse receber denúncias acerca do descumprimento do que está disposto na Carta ou na Declaração. Saliente-se que esta lacuna foi o principal fator que motivou a elaboração dos dois Pactos de Nova York, conforme será abordado.
De mais a mais, fazendo um paralelo da Declaração com a Constituição Federal do Brasil de 1988, observa-se facilmente que a influência do primeiro texto no segundo foi realmente muito grande, sendo fartos os trechos em que há uma cópia do conteúdo da Declaração para a CF/88. Exemplos claros do arguido são os artigos 3º, IV, 5º, caput, I, III, VI, VIII, XV, XXXIX, LXI, LVII, 6º, 170, II, entre outros da nossa Carta Magna.
Outrossim, grande parte do capítulo II (direitos trabalhistas) também foi motivada pela Declaração. Ou seja, a nossa Constituição, tida como humana e progressista, teve diversos seguimentos retirados diretamente da Declaração.
Ainda neste jaez, diversas sentenças, acórdãos, diplomas normativos e tratados foram motivados pelos ideais presentes na Declaração, expondo o caráter imprescindível e imensurável deste documento para a sociedade internacional como um todo.
Ademais, ocorre ainda que existe um debate acerca do que seria mais adequado: a relativização do conteúdo da Declaração em relação a cada ordenamento jurídico nacional ou a universalização dos direitos humanos através da sobreposição dos Direitos Humanos ante a cultura e os costumes de cada país. Foram três as correntes que surgiram para se posicionar acerca do imbróglio, conforme segue infra.
Os relativistas afirmavam que os aspectos culturais e morais de cada sociedade precisam ser respeitados, ainda que o preço para tal seja a relativização dos Direitos Humanos. Alegavam ainda que o conceito de moral é consideravelmente variável e o Direito varia de acordo com cada sociedade. Há, ainda, dentro dos relativistas, as correntes do relativismo fraco (cultura pode ser um importante auxiliar na determinação da validade de uma regra) e do relativismo forte (cultura como fonte principal de validade das regras). Por sua vez, os universalistas argumentavam que é necessário haver um mínimo de direitos garantidos a todos, independentemente de diversidades culturais.
Com efeito, em face da imprescindibilidade do assunto e da consequente necessidade da uniformização das condutas relativas a ele, a Segunda Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada no ano de 1993, em Viena, assegurou os Direitos Humanos como tema global, universal, indivisível, interdependente e inter-relacionado, ou seja, houve a certeza de que os Direitos Humanos não podem ser relativizados com a justificativa de particularidades nacionais e regionais.
Países islâmicos e diversos países asiáticos se mostraram contrariados com essa decisão, arguindo que houve imposição do pensamento ocidental na resolução da mixórdia. Ficou decidido ainda nesta mesma conferência não haver uma hierarquia entre os próprios Direitos Humanos (civis, políticos, econômicos, sociais e culturais).
OS PACTOS DE NOVA YORK DE 1966:
Conforme já citado, são dois os Pactos de Nova York de 1966: o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Ambos vieram para complementar o que já estava previsto na Carta de 1945 e na Declaração de 1948, instituindo uma forma de colocar em prática o conteúdo protegido pelos dois documentos retro. Saliente-se ainda que se fez necessária sua criação devido a uma lacuna deixada pela Declaração: a não previsão de um tribunal ou corte para o controle do respeito aos direitos humanos.
Pois bem, visando a uma maior eficácia na proteção aos Direitos Humanos, passou-se a buscar a melhor forma de se preencher a referida lacuna. Havia divergências dentro da própria ONU sobre o número de pactos necessários para a resolução: um ou dois, o que terminou por prolongar demasiadamente a elaboração dos Pactos. Como já é sabido, o resultado final foi a opção por dois pactos.
O motivo para tal foi que os direitos civis e políticos deveriam ser jurisdicionados, enquanto os econômicos, sociais e culturais não seriam jurisdicionados. Todavia, acredita-se que o verdadeiro motivo foi a dificuldade de se chegar a um acordo sobre o sistema para a monitoração da implementação do que estivesse contido nos Pactos.
Com efeito, os pactos judicializaram, sob a forma de um tratado, os direitos previstos na Declaração de 1948, configurando a Carta Internacional de Direitos Humanos.
É evidente que há distinções entre os dois pactos. Primeiramente, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos possui uma quantidade maior de direitos que a Declaração. Tutela sobre os direitos de primeira geração, que possuem aplicabilidade imediata para todos os indivíduos que se encontrem sob a jurisdição do Estado signatário. Além disso, é mais rigoroso quanto ao cumprimento dos direitos, culminando em uma resistência por parte dos Estados em aceitarem os mecanismos de monitoramento e supervisão, como a criação do Comitê de Direitos Humanos.
O comitê supra possui, inclusive, uma função conciliatória, onde um Estado-membro pode denunciar outro Estado-membro, ainda que nunca tenha sido feita uma denúncia sequer.
Foi elaborado ainda o Protocolo Facultativo Relativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que preconiza a possibilidade de ação de indivíduos em face de Estados-membros, com alguns requisitos. Foi aprovado ainda um segundo protocolo facultativo em 1989, proibindo a pena de morte, mas este não possui o nível de adesão do Primeiro Protocolo Facultativo.
Por sua vez, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais prevê os direitos tidos como os de segunda geração, além de ter aumentado e ratificado as garantias em relação à Declaração. Os direitos aí previsto não possuem aplicabilidade imediata, visto que diversos países não possuem os recursos necessários para tal, possuindo, assim, caráter programático.
Devido a isso, alguns defendem que Cortes não poderiam julgar assuntos relativos a tais direitos, mas essa possibilidade foi devidamente afastada. O órgão de atuação da ONU é o Conselho Econômico e Social, além de agências especializadas. Por fim, ressalte-se que não é possível a denúncia de Estados-membros, a interposição de ações de indivíduos e a elaboração de protocolos facultativos adicionais.
Referências:
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d19841.htm
http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf|
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0591.htm