Discricionariedade administrativa e controle de legitimidade dos atos administrativos

Conforme ensinamento do professor Celso Antônio Bandeira de Mello, discricionariedade administrativa é a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um comportamento, dentre pelo menos dois cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente, uma solução unívoca para a solução vertente. A definição trazida acima é bastante rica e complexa, merecendo uma análise fragmentada para sua adequada compreensão.

O ato administrativo discricionário se caracteriza como aquele em que o legislador conferiu ao administrador público certa margem de manobra para satisfazer a finalidade normativa da melhor forma possível. O elemento marcante que o distingue do ato administrativo vinculado é que espaço concedido pela lei para a avaliação das circunstâncias fáticas de maneira a aplicar ou não certa determinação legal. Por seu turno, o ato vinculado já tem todos seus elementos previamente definidos pela lei, restando ao agente reproduzir o comando legal, ou seja, não é concedida liberdade de apreciação da conduta. Quando da lei só for extraível um comportamento possível, está-se diante da vinculação.

Por outro lado, a discricionariedade enseja diversas condutas do administrador igualmente válidas, a depender das circunstâncias fáticas em que o agente se encontra. O chamado “poder discricionário” pode se manifestar nos comandos legais de diversas maneiras, tais como: (i) da hipótese da norma, em que há imprecisão na situação fática (motivo), ou seja, o acontecimento do mundo empírico que se sujeitará ao comando da norma; (ii) do comando da norma, em que há uma variedade de condutas autorizadas ao agente público, seja (a) quando a realizar ou não o ato, seja (b) averiguar sua oportunidade, seja (c) quanto à forma que revestirá o ato, seja (d) quanto à competência para resolver sobre a medida mais adequada. Por fim, o professor Celso Antônio fala ainda da discricionariedade decorrente (iii) da finalidade da norma, no que tange aos valores apontados pela finalidade do dispositivo, e pelas palavras utilizadas. Exemplifica com expressões como “moralidade pública” e “interesse público”, que são expressões dotadas de plurissignificação, o que abre espaço para a discricionariedade decorrente da vagueza dos termos jurídicos trazidos pela lei.

É oportuno ressaltar, todavia, que o espaço concedido pelo legislador não autoriza o agente público a agir conforme sua autonomia individual, afinal ele está agindo à luz dos ditames do interesse público que o vincula de forma mediata no exercício de seu poder discricionário. Agindo em nome do Estado, o agente deve obedecer estritamente a finalidade extraível do comando legal.

A concessão de certa discricionariedade nada mais é do que um meio encontrado pelo legislador para melhor atender as necessidades do interesse público, conforme a peculiaridade do caso concreto. Em caso de distanciamento de sua finalidade, mesmo o ato discricionário estará sujeito a controle naquilo em que extravasar ao razoável do exercício da discricionariedade.

Vamos a um exemplo, no qual serão comparadas duas situações: na primeira, o legislador traz um dispositivo objetivo; na segunda, um dispositivo vago, carregado de subjetividade. Na primeira hipótese, imaginemos que uma nova lei define que o SUS só irá atender pessoas que recebam até um salário mínimo. Na segunda hipótese, a lei define que o SUS só irá atender pessoas “pobres”. A primeira situação tem bastante clareza, mas peca por sua fragilidade diante dos fatos. Basta imaginar uma pessoa que reside sozinha e recebe um salário mínimo teria seu atendimento no SUS concedido. Enquanto que outra pessoa que recebe dois salários mínimos, mas tem o cônjuge e cinco filhos para sustentar teria seu atendimento negado. Por outro lado, a segunda situação peca pela precisão, mas atende as necessidades do caso concreto ao abrir espaço ao agente público averiguar a adequação da circunstância concreta à finalidade jurídica do dispositivo.

O controle de legitimidade dos atos administrativos recai justamente nos limites da razoabilidade sobre a compreensão da expressão legal utilizada. Em casos nos quais a atuação do agente público vai manifestamente de encontro com a finalidade do dispositivo legal, será possível o Poder Judiciário anular aquele ato administrativo por ultrapassar as margens de liberdade concedida pelo legislador. Contudo, a jurisdição não poderá interferir o mérito administrativo, substituindo a vontade do administrador.


Referências

1 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle judicial. 2. Ed. 11. Tiragem. São Paulo: Malheiros Editora Ltda., 2012, p. 48.

 Mérito é o campo de liberdade suposto na lei e que, efetivamente, venha a remanescer no caso concreto, para que o administrador, segundo critérios de conveniência e oportunidade, se decida entre duas ou mais soluções admissíveis perante ele, tendo em vista o exato atendimento da finalidade legal, dada a impossibilidade de ser objetivamente reconhecida qual delas seria a única adequada.


Direito Diário
Logo