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A cláusula de hardship nos contratos internacionais

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 por Ingrid Carvalho
A questão aqui analisada pertence ao contexto do direito internacional privado, mais especificamente ao estudo dos contratos internacionais e suas cláusulas. O foco do trabalho são as cláusulas que funcionam como excludente de responsabilidade na hipótese de haver um descumprimento contratual causado por fatos imprevisíveis à época da contratação e inevitáveis pelas partes obrigadas.
O tema desperta o interesse, pois apesar das cláusulas denominadas de força maior e de hardship terem características similares e serem ambas excludentes de responsabilidade, o objetivo de cada uma é diverso e bem definido, sendo, portanto de extrema importância o correto entendimento e aplicação destas pelos profissionais que atuam na área.
A necessidade do entendimento acerca das cláusulas dos contratos internacionais nasce tanto da mudança de paradigma vivenciada pela sociedade no século XXI, diante do boom nas relações de compra e venda – graças à intensificação do processo de globalização, fruto da internet e do desenvolvimento tecnológico – quanto da maior aderência dos Estados ao princípio da autonomia da vontade e aos vários métodos de uniformização do direito internacional privado.
O que ocorre é que os contratos foram criados para fazer lei entre as partes e daí surgiu a teoria da imutabilidade das cláusulas contratuais, conhecida também como princípio pacta sunt servanda, que significa que os pactos devem ser cumpridos.
Todavia, estudiosos se debruçaram ao longo dos anos em busca de formas legais de driblar esta regra, no intuito de beneficiar as partes que encontravam dificuldade de adimplemento por causas supervenientes ao momento da contratação, até que resgataram a chamada cláusula rebus sic stantibus, que culminou na teoria da imprevisão tão cara para as relações comerciais modernas.
Dentre as cláusulas que hoje possibilitam a alteração legal dos contratos internacionais já em andamento, estão as cláusulas de força maior e a de hardship, objetos deste artigo.
1. DAS DISTINÇÕES ENTRE A CLÁUSULA DE FORÇA MAIOR E A CLÁUSULA DE HARDSHIP
É necessário analisar,de antemão, o que são contratos internacionais e a razão de se estudar suas cláusulas para, após, trabalhar os conceitos existentes de “força maior” (force majeure) e “hardship”, e ainda elucidar quais são os cuidados que se deve ter ao optar por cada uma destas cláusulas quando da edição de um contrato internacional.
1.1. OS CONTRATOS INTERNACIONAIS E SUAS CLÁUSULAS
A cláusula de força maior e a cláusula de hardship pertencem ao universo dos contratos internacionais os quais são conceituados como “instrumentos capazes de criar direitos, modificá-los ou extingui-los, mas que são dotados de estraneidade por interligar partes com sedes ou domicílios situados em Estados distintos, e cujo objetivo é unir duas ou mais jurisdições em prol de um objeto” (MALHEIRO, 2012, p. 90).
O manuseio de contratos internacionais é considerado complexo, pois implica na observação de vários elementos capazes de afetar a relação contratual,tais como, o tipo de sistema jurídico dos Estados envolvidos, suas regras de ordem pública, a licitude ou ilicitude do objeto do contrato, a natureza jurídica das partes, e outros.
São elementos contratuais internacionais a capacidade das partes, o objeto lícito, possível e suscetível de apreciação econômica; e a forma prevista ou não defesa em lei. (MALHEIRO, 2012, p. 93)
Além da observação quanto aos vários elementos formadores de cada contrato internacional, outro obstáculo enfrentado pelas partes neste tipo de contrato é a insegurança jurídica, haja visto a quantidade de diferentes normas e termos jurídicos existentes, em cada ordenamento, sobre os mesmos temas. Daí a importância da luta pela uniformização, ou seja, padronização das fontes normativas de direito internacional.
Em termos estritos, a segurança das relações de comércio internacional dependeria da possibilidade de se conseguir submetê-las a um regime único, isto é, encontrando modo de evitar que essas relações fiquem continuamente sujeitas ao impacto de leis imperativas divergentes.(STRENGER, 2003, p. 859)
Haja vista a peculiaridade dos contratos internacionais criou-se algumas cláusulas as quais regulam situações típicas das relações econômicas transfronteiriças como, por exemplo, a cláusula de eleição do foro competente para dirimir eventual litígio proveniente do contrato, e a cláusula de eleição da lei aplicável ao contrato.
A presença de elementos de conexão é um dos fatores que identifica o contrato como internacional. Outro é a presença de certas cláusulas, típicas dos contratos internacionais, e que pela sua função não seriam úteis ou indispensáveis aos contratos de direito interno. Essas cláusulas estão ligadas ao problema da eleição do foro, aos efeitos do tempo, ao risco e à moeda. (BAPTISTA, 2011, p. 177)
Além destas cláusulas, há outras que merecem ser estudadas com afinco quando se pretende dominar o cenário das contratações internacionais no século XXI. As cláusulas de força maior e de hardship, que regulam os riscos imprevisíveis do contrato, são exemplo destas.
1.2. OS CONCEITOS DE “FORÇA MAIOR” E “HARDSHIP” SOB O ASPECTO DO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
Referindo-se, especificamente, ao conceito de “força maior” é forçoso apontar que cada ordenamento jurídico a entende da forma diversa, não havendo muitas previsões expressas, pois “os legisladores evitam enunciar tais eventos, deixando para os tribunais o exame, caso a caso, e sua determinação” (BAPTISTA, 2011, p. 228) existindo por esta razão a necessidade de que as partes escolham uma fonte para reger seu contrato no intuito de padronizar os conceitos e as regras que irão reger sua relação contratual.
Percebe-se, portanto que a comunidade internacional precisa de fontes gerais de uniformização das normas do direito internacional sendo a convenção das Nações Unidas para a Venda Internacional de Mercadorias, de 1980, chamada de CISG, uma destas.
Referente à CISG vale acrescentar que esta foi recentemente ratificada pelo Brasil, tendo entrado em vigor em 1º de abril de 2014. A partir de agora a CISG é a lei brasileira de comércio internacional sempre que uma das partes tenha sede no Brasil.
Assim, a partir de 1º de abril de 2014, os contratos de compra e venda de mercadorias celebrados entre uma empresa sediada no Brasil e outra sediada em qualquer um dos demais 77 países signatários deverão respeitar as regras previstas na CISG, que prevalecerão sobre quaisquer outras, inclusive o Código Civil Brasileiro. A incidência e aplicação da CISG será automática, cabendo às partes, se assim não desejarem, indicar expressamente no contrato o afastamento da Convenção (conforme faculdade que lhes é atribuída pelo art. 6º da CISG). (CORTIÑAS, 2014, p. 1)
Existem também, além de convenções como a CISG, algumas instituições privadas encarregadas de padronizar e viabilizar, em termos de segurança jurídica, o comércio internacional, como faz o Instituto de Direito Internacional privado – UNIDROIT, a Câmara de Comércio Internacional de Paris, a Comissão das Nações Unidas para o Direito Mercantil Internacional – UNCITRAL e outras fontes transnacionais.
O sentido dado à meta de um direito uniforme depende em grande parte da crença em um direito ideal, que deveria vigorar universalmente como parte de uma ordem natural. (COSTA, 2000, p. 47)
Desta feita, as partes podem acordar qual será a fonte normativa do seu contrato, sendo estas instituições privadas uma recorrente escolha das partes, em especial o UNIDROIT, tamanha sua importância e credibilidade no cenário internacional. Contudo é preciso registrar, também, a importância da UNCITRAL e da Câmara de Comércio Internacional de Paris.
Na década de 60 do século passado, a ONU criou um órgão especial para promover a uniformização do direito do comércio internacional, a UNCITRAL (United Nations Commission on International Trade Law), que patrocinou uma Convenção sobre Prescrição na Venda Internacional de Bens (Nova York, 1974), e, após longos anos de trabalhos e estudos, aprovou uma Convenção sobre Lei Uniforme para a Compra e Venda Internacional (Viena, 1980), bem como várias outras Convenções para reger aspectos específicos do comércio internacional. (DOLINGER, 2008, p. 85)
Ainda quanto ao conceito das cláusulas em análise neste trabalho, segundo a Câmara de Comércio Internacional de Paris a expressão force majeure, que significa “força maior” em inglês, expressa a ideia de libertação ou exoneração de uma obrigação.
Assim é que, na publicação Force Majeure et Imprévision, a Câmara de Comércio Internacional afirma que a expressão force majeurefoi adotada como designação de uma cláusula que melhor se chamaria de clause d’éxoneration ou clause de dégagement. (BAPTISTA, 2011, pág 228)
A convenção de Viena sobre a Venda Internacional de Mercadorias, de 1980, a define da mesma forma:
“Artigo 79. Uma parte não é responsável pela inexecução de qualquer das suas obrigações se provar que tal inexecução se ficou a dever a um impedimento alheio à sua vontade e que não era razoável esperar que ela o tomasse em consideração no momento da conclusão do contrato, o prevenisse ou o ultrapassasse, ou que prevenisse ou ultrapassasse suas conseqüências” (BASSO, 2009, p.450)
Pode-se dizer resumidamente que, nas hipóteses regidas por cláusulas de força maior, o evento ocorre independente do ato ou vontade das partes, sua ocorrência é imprevisível e, é impossível que as partes escapem dos efeitos deste fato.
Referida convenção também esclarece que a exoneração da obrigação deve produzir efeitos enquanto durar o impedimento, de modo que tanto quando se trata de um contrato de execução duradoura ou quando se trata de um contrato de execução imediata, ou seja, que se estende no tempo de execução ou não, a parte estará livre de quaisquer responsabilidades pelo tempo que durar o impedimento.
A ideia central aqui exposta é que nem sempre as partes conseguem prever, no momento da contratação, a possibilidade de ocorrência de cataclismos, conflitos armados, conflitos de trabalho, fato do príncipe, ou ainda a quebra de máquinas e acidentes análogos, eventos estes capazes de arruinar ou, no mínimo, tornar temporariamente impossível o adimplemento das obrigações já assumidas.
Partindo deste raciocínio se nota que a expressão “força maior” traduza noção geral de circunstâncias imprevisíveis à época da contratação, as quais as partes não podiam, por suas próprias vontades, afastar. Revelando-se, ainda,como característica da força maior, o fato de que referidas circunstancias devem ter potencial suficiente para afetar de maneira direta a execução das respectivas obrigações.
Por outro lado quando da análise do conceito da palavra “hardship” verifica-se a utilização de uma expressão como seu sinônimo, ajudando relacionar o termo à função da cláusula, qual seja, a idé ideia de “endurecimento das condições”.
A cláusula de hardship, também chamada de cláusula de readaptação, é uma variação mais específica das cláusulas denominadas de força maior que, por sua vez, permite uma renegociação do contrato diante de uma dificuldade econômica fruto de evento imprevisível e inevitável, que tornou a obrigação excessivamente onerosa para alguma das partes, desequilibrando drasticamente o contrato nos termos em que foi assinado.
As cláusulas de hardship, ou de endurecimento das condições, funcionam como mecanismos capazes de restabelecer o equilíbrio econômico do contrato na medida em que servem para atenuar ou extirpar os efeitos inevitáveis e imprevisíveis de natureza especificamente econômica, como dificuldades decorrentes de medidas de política comercial, ou concernente à manipulação monetária do Estado.
Podem ser citadas como exemplos de hardship situações como “novas incidências fiscais, políticas discriminatórias contra certos produtos ou, à sua procedência, alterações na taxa de câmbio, moratórias, pedidos de consolidação de dívidas, atrasos em conversão de moeda (…)” (BAPTISTA, 2011, p.243).
Vale destacar, ainda, que é nos contratos de longo termo que encontramos com maior freqüência cláusulas de hardship, havendo, contudo quem opte por cláusulas hardship também nos contratos de curta duração como os de distribuição que apesar de não se prolongarem no tempo são de grande importância econômica.
Podem ser citados alguns tipos de contratação as quais geralmente são resguardadas pela cláusula hardship, senão vejamos: a) quando se contrata o fornecimento de matérias primas; b) quando se contrata obras de execução prolongada como vias férreas e oleodutos, construção de usinas siderúrgicas e petroquímicas; c) nos contratos ligados a tecnologia ditas “de ponta” e; d) quando se contrata empréstimos internacionais.
É justamente nos contratos que se estendem no tempo de execução, ou seja, de longo termo, que a insegurança jurídica acerca das condições econômicas das partes envolvidas toma grandes proporções, preocupando-se os agentes do comércio internacional com a regulamentação do contrato diante da maior probabilidade de eventuais hardships.
É justamente nos contratos que se estendem no tempo de execução, ou seja, de longo termo, que a insegurança jurídica acerca das condições econômicas das partes envolvidas toma grandes proporções, preocupando-se os agentes do comércio internacional com a regulamentação do contrato diante da maior probabilidade de eventuais hardships.
Faz-se útil a preocupação com a regulamentação das cláusulas de risco, não só nos contratos de longo termo, mas em qualquer tipo de contrato internacional, pelo que se analisará no próximo tópico como devem ser redigidas as referidas cláusulas.
1.3. DOS CUIDADOS QUANDO DA REDAÇÃO DA CLÁUSULA DE FORÇA MAIOR E DA CLÁUSULA DE HARDSHIP NO ÂMBITO DOS CONTRATOS INTERNACIONAIS
A cláusula de força maior deve estatuir o comportamento das partes nos casos em que ocorram eventos considerados de força maior, sendo desejável que as partes redijam a cláusula com esmero, deixando expresso qual será a fonte normativa que servirá como parâmetro para aquela relação contratual, reafirmando o conceito de força maior levado em consideração pela fonte eleita e, ainda, enumerando exemplificativamente situações passíveis de se encaixar nos termos da cláusula.
Ao contrário do que ocorre no direito interno, se o costume for internacionalmente reconhecido, ele vincula as partes, independentemente da manifestação do consentimento. (MALHEIRO, 2012, p. 94)
São exemplos de situações de força maior os terremotos, tufões, tempestades, guerras, atos terroristas, bloqueios, greves gerais, greves organizadas sindicalmente, e até o fato do príncipe como, por exemplo, proibições de exportação e importação, restrições de uso de energia e outros.
A force majeure clause, como é chamada em inglês, tem que prever detalhadamente como deve proceder a parte atingida pelo imprevisto quanto à notificação da outra parte; à provado ocorrido; bem como deve estipular se haverá sanções, discriminando-as e exemplificando as hipóteses em que se aplicam; quais serão os casos em que haverá exoneração da responsabilidade do devedor, suspensão da execução do contrato ou extensão do seu termo; deve regulamentar a responsabilidade pelas despesas oriundas da força maior; a obrigação de tentar contornar os efeitos da força maior; o término do contrato; e os casos em que caberá renegociação.
É importante a previsão de que a notificação será imediata, de preferência por carta registrada ou qualquer outro meio expresso, por meio do qual a parte tomará ciência do fato extraordinário com detalhes, devendo a notificação vir acompanhada de provas como certidões de autoridades competentes ou declarações de câmaras de comércio internacional.
Quanto à regulamentação da cláusula de hardship é interessante quese tome os mesmos cuidados sugeridos quando da redação das cláusulas de força maior, contudo por se tratar de situação mais específica e cuja peculiaridade resvala no cunho econômico e no dever de renegociação do contrato, a cláusula deve trazer estipulação quanto ao procedimento a ser adotado pela parte prejudicada, para marcar a primeira reunião e discutir a situação.
Deve haver, também, a previsão de um prazo para que o assunto seja remetido à arbitragem caso não tenham as partes alcançado consenso na primeira reunião, para que o árbitro determine se há o chamado “endurecimento das circunstancias” ou não.
Apesar de o objetivo da cláusula de hardship ser a revisão da avença, as partes, depois de discutir a situação nesta primeira reunião, poderão rescindir o contrato se assim entenderem por bem. Podendo inclusive o árbitro e até o magistrado rescindir o contrato, desde que as partes submetam a lide à arbitragem ou ao judiciário.
A rescisão decorrerá, aí, seja do consenso das partes de que não é possível ou conveniente negociar, seja da iniciativa da parte prejudicada, havendo cláusulas que cogitam de qualquer dessas hipóteses. Pode ainda a rescisão emanar da ação ou decisão de terceiros, como os árbitros, por previsão contratual, expressa, ou deixando as partes que o Judiciário resolva a questão. (BAPTISTA, 2011, p. 245)
Apesar de haver a possibilidade de rescisão, estranha à principal função da cláusula de hardship, que é a de propiciar uma adaptação do contrato às novas circunstâncias, preservando-o, o comum é que as partes convencionem a suspensão do contrato durante o período de renegociação, ou o retorno à normalidade após a situação de hardship e outras soluções mais amenas à depender da situação.
Diante do exposto torna-se interessante analisar as leis-modelo referente a redação das cláusulas de risco juntamente com casos hipotéticos em que se utiliza as cláusulas em foco, para que sejam devidamente absorvidas as sugestões de como se deve regulamentá-las.
2. DA ANÁLISE DE CASOS HIPOTÉTICOS E LEIS MODELO DO INSTITUTO DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO – UNIDROIT
Analisar-se-á, nesta segunda parte do trabalho, o que são os princípios UNIDROIT, leis-modelo para as cláusulas de força maior e de hardship, e, por fim, dois casos hipotéticos em que cabe a utilização das cláusulas de riscos imprevisíveis aqui estudadas.
2.1. OS PRINCÍPIOS UNIDROIT
O Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado, também conhecido como UNIDROIT, é uma organização internacional independente, localizada na cidade italiana de Roma, cujo propósito é estudar formas de harmonizar o direito privado e preparar gradualmente a adoção de uma legislação de direito privado uniforme que fique à disposição de todos os Estados.
De acordo com o Decreto nº 884/1993, que promulgou no Brasil seu estatuto orgânico, a UNIDROIT é uma organização intergovernamental, com sede em Roma, que tem como objetivo estudar as formas de harmonizar e coordenar o Direito Privado entre Estados ou grupos de Estados e preparar gradualmente a adoção, pelos diversos Estados, de uma legislação de Direito Privado uniforme. (LUZ, 2012, p.374)
Os princípios criados por este instituto, chamados de princípios UNIDROIT, estabelecem legislação derivada de estudos, bem assim como dos usos e costumes do comércio internacional, para tornar mais seguras as relações contratuais transfronteiriças.
Além de compilar e administrar tratados e convenções concluídas pelos Estados-membros, o instituto adota, por exemplo, as leis-modelos como recomendações ou inspirações aos legisladores nacionais sobre as matérias compreendidas, ou princípios gerais, cuja observância é destinada aos juízes, árbitros e às partes em contratos, que tem liberdade para decidir sobre a aplicação ou não deles. (BASSO, 2011, p.104)
Resumidamente tal instituto preocupa-se em concatenar em um só documento conceitos oriundos de diversos ordenamentos para prover aos agentes do comércio internacional regras que disciplinem, por exemplo, “a formação, a validade, a interpretação, execução e inexecução dos contratos, hardship e força maior, dentre outras” (ARAUJO, 2009, p.324).
2.2. LEIS MODELOS DAS CLÁUSULAS DE FORÇA MAIOR (FORCE MAJEURE) E HARDSHIP
A versão original do modelo de cláusula de força maior, denominada force majeure, encontra-se no artigo 7.1.7 dos princípios UNIDROIT 2010.
(1) Non-performance by a party is excused if that party proves that the non-performance was due to an impediment beyond its control and that it could not reasonably be expected to have taken the impediment into account at the time of the conclusion of the contract or to have avoided or overcome it or its consequences.
(2) When the impediment is only temporary, the excuse shall have effect for such period as is reasonable having regard to the effect of the impediment on the performance of the contract.
(3) The party who fails to perform must give notice to the other party of the impediment and its effect on its ability to perform. If the notice is not received by the other party within a reasonable time after the party who fails to perform knew or ought to have known of the impediment, it is liable for damages resulting from such non-receipt.
(4) Nothing in this article prevents a party from exercising a right to terminate the contract or to withhold performance or request interest on money due. (Article 7.1.7 Force)
(1) O não cumprimento por uma das partes é perdoado se a parte provar que o não-desempenho foi devido a um impedimento para além de seu controle e que não seria razoável esperar da parte que o houvesse previsto no momento da conclusão do contrato ou ter evitado ou superado suas conseqüências.
(2) Quando o impedimento é apenas temporário, a exoneração da responsabilidade é válida por um período razoável, levando-se em conta o efeito do impedimento na execução do contrato.
(3) A parte que não cumprir sua obrigação deve notificar a outra parte tanto do impedimento quanto do efeito sobre sua capacidade de executar. Se a notificação não for recebida pela outra parte, dentro de um prazo razoável sabendo ou devendo saber a parte devedora do impedimento, será responsável pelo danos resultantes da falta de notificação.
(4) Nada neste artigo impede a parte de exercer o direito de rescindir o contrato ou de reverte-lo em prestação ou em seu devido valor. (Artigo 7.1.7 Força Maior)
A versão original do modelo de cláusula de hardship encontra-se no artigo 6.2.2 dos princípios UNIDROIT 2010.
There is hardship where the occurrence of events fundamentally alters the equilibrium of the contract either because the cost of a party’s performance has increased or because the value of the performance a party receives has diminished, and (a) the events occur or become known to the disadvantaged party after the conclusion of the contract;
(b) the events could not reasonably have been taken into account by the disadvantaged party at the time of the conclusion of the contract;
(c) the events are beyond the control of the disadvantaged party; and
(d) the risk of the events was not assumed by the disadvantaged party. (Article 6.2.2 Hardship)
Há o endurecimento das circunstancias, quando a ocorrência de eventos altera fundamentalmente o equilíbrio do contrato, quer porque o custo pelo adimplemento de uma parte aumentou ou porque o valor que uma parte recebe pelo adimplemento diminuiu, e (a) os eventos ocorreram ou se tornaram conhecidos pela parte em desvantagem após a celebração do contrato; (b) os eventos não poderiam razoavelmente ter sido levados em consideração pela parte em desvantagem no momento da celebração do contrato; (c) os eventos estão fora do controle da parte em desvantagem; e (d) o risco dos eventos não foi assumido pela parte em desvantagem. (Artigo 6.2.2 Hardship)
As citações acima são traduções livres do texto original, que pode ser encontrado no site oficial do UNIDROIT.
2.3. CASOS HIPOTÉTICOS ENVOLVENDO CLÁUSULAS DE FORÇA MAIOR E CLÁUSULAS DE HARDSHIP.
O instituto de direito internacional privado – UNIDROIT disponibiliza em sua página oficial na internet um modelo de cláusula de força maior, identificada pela numeração 7.1.7 dos princípios UNIDROIT 2010, e dois casos hipotéticos nos quais uma cláusula de força maior foi utilizada para solucionar o conflito contratual. Foi escolhido o primeiro dos casos para o fim de análise.
O país “A” é contratado para instalar um gasoduto de gás natural em todo país “X”. As condições climáticas são tais que é impossível trabalhar normalmente durante o período dos dias 1º de Novembro e 31 de março. O contrato está programado para terminar no dia 31 de outubro, mas o início das obras está atrasado há um mês por conta da existência de uma guerra civil em um país vizinho, o que torna impossível a missão de instalar toda a tubulação dentro do prazo estipulado. Se a conseqüência desse atraso for suficiente para impedir o adimplemento da obrigação até o final do prazo, o país “A”terá direito a uma extensão do prazo contratual de cinco meses, mesmo que o atraso tenha sido de apenas um mês. (www.unidroit.org)
A cláusula de força maior, numa perspectiva geral, não restringe os direitos de terminar o contrato, pertencentes à parte que não recebeu o adimplemento, contudo o objetivo da cláusula é, sempre que possível, exonerar a parte inadimplente de indenizações por responsabilidade civil sempre que atendidos os requisitos contratuais.
É importante citar que o instituto UNIDROIT entende que em alguns casos o fato extraordinário poderá impedir por completo o adimplemento do contrato, porém em muitos outros tal fato extraordinário poderá simplesmente atrasar o adimplemento, como ocorreu no caso hipotético supramencionado. Nestes casos de mero atraso o objetivo da cláusula poderá ser o de estender o prazo de adimplemento.
É cediço que nos casos em que há extensão do prazo fatal para o adimplemento da obrigação, o prazo pode ser maior ou menor do que o período durante o qual ficou suspenso o adimplemento por conta de um dado fato extraordinário, pois o que é crucial para determinar o quanto deve ser estendido o prazo é, em verdade, os efeitos que o fato extraordinário causou quando da interrupção do contrato.
Quanto à cláusula de hardship o UNIDROIT também disponibiliza em sua página oficial na internet um modelo de cláusula, identificado pela numeração 6.2.2 dos princípios UNIDROIT 2010, bem como dois casos hipotéticos nos quais uma cláusula de hardship foi utilizada para solucionar o conflito contratual. Mais uma vez foi escolhido o primeiro dos casos para o fim de estudo.
Em setembro de 1989 “A”, um comerciante de produtos eletrônicos situados na antiga República Democrática Alemã, adquire o estoque de produtos de “B”, situado no país “X”, também um país ex-socialista. As mercadorias devem ser entregues por “B”, em dezembro de 1990. Em Novembro de 1990, “A” informa a “B” que não tem mas interesse nas mercadorias outrora objeto do contrato fechado entre eles, alegando que após a unificação da República Democrática Alemã e da República Federal da Alemanha e da abertura da antiga República Democrática Alemã para o mercado internacional, não há mais qualquer mercado para esses produtos importados de país X. A menos que as circunstâncias indiquem o contrário, “A” tem o direito de invocar a cláusula de hardship para renegociar as condições do contrato. (www.unidroit.org)
A cláusula de hardship idealizada pelo UNIDROIT o define como uma situação na qual a ocorrência de alguns eventos altera fundamentalmente o equilíbrio de um contrato, sendo necessário que referido evento atenda aos requisitos inerentes à cláusula.
Sendo assim, é importante observar que já que há outro princípio UNIDROIT, estipulado no artigo 6.2.1 dos princípios UNIDROIT 2010, que resguarda a ideia de que uma mudança nas circunstâncias não exonera a parte da responsabilidade de cumprir a obrigação, é possível concluir que a cláusula hardship não pode ser utilizada a menos que a alteração do equilíbrio contratual seja devassadora.
Ademais o que determina a gravidade do referido desequilíbrio em cada caso concreto dependerá da generalidade dos critérios estabelecidos quando da redação da cláusula, bem como da conjuntura político-econômica internacional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No plano internacional, merece destaque a organização e praticidade do UNIDROIT que disponibiliza em sua página oficial uma seção específica tanto para as cláusulas hardship quanto para as cláusulas de força maior. Sobre os princípios UNIDROIT vale mencionar também que “Têm caráter supletivo e não colidem com o ordenamento jurídico nacional” (ARAUJO, 2009, p.315)
Nesse sentido, além da regulamentação do Código Civil de 2002, em seus artigos 478 a 480, que apesar de criticada é considerada um avanço por positivar a teoria da imprevisão e trazer a possibilidade da revisão contratual em analogia ao que ocorre numa situação de hardship, há que se destacar a recente ratificação do Brasil à Convenção das Nações Unidas sobre Compra e Venda Internacional de Mercadorias – CISG, que torna possível o efetivo respeito ao princípio da autonomia da vontade das partes nos contratos internacionais.
Diz-se que os princípios UNIDROIT e a CISG não colidem, pois apesar de ser a CISG, para todos os efeitos, a lei oficial brasileira de comércio internacional desde 1º de abril de 2014, dia em que entrou em vigor no Brasil após um ano de vacatio legis a contar do depósito da carta de adesão do Brasil nas Nações Unidas, em março de 2013, referida convenção é claramente fundada no conceito da autonomia da vontade das partes, autorizando expressamente a exclusão total ou parcial de seus dispositivos, diferentemente do que fazia a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, que vigorava até menos de um ano atrás na contra mão da autonomia da vontade.
Dada a necessidade do Direito do Comércio Internacional acompanhar o dinamismo das trocas internacionais, os Estados tanto do Civil Law quanto do Common Law vem aderindo em massa ao princípio da autonomia da vontade das partes no âmbito internacional, sendo o Brasil o mais recente integrante deste grupo desde a ratificação da CISG, fato que irá adubar as relações internacionais no Brasil fomentando a importância do direito internacional e, consequentemente, o estudo e uso das cláusulas de força maior e de hardship.
Referências ARAÚJO, Nádia de. Direito internacional privado: teoria e prática brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. BAPTISTA, Luiz Olavo. Contratos Internacionais. 1ª ed. São Paulo: Lex Editora, 2010. BASSO, Maristela. Curso de Direito Internacional Privado. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2011. COSTA, José Augusto Fontoura Costa. Normas de Direito Internacional.1ª ed. São Paulo: Atlas, 2000. DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado. 9ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. LUZ, Rodrigo. Comércio Internacional e Legislação Aduaneira. 5ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. MALHEIRO, Emerson. Manual de Direito Internacional Privado. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2012. STRENGER, Irineu. Direito Internacional Privado. 5ª ed. São Paulo: Ltr, 2003. CORTIÑAS, Maria Beatriz Rizzo. Brasil ratifica sua adesão à convenção das nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias. Disponível em http://www.lhm.com.br/noticias/brasil-ratifica-sua-adesao-a-convencao-das-nacoes-unidas-sobre-contratos-de-compra-e-venda-internacional-de-mercadorias. Acesso em 2/9/2014 UNIDROIT, Princípos UNIDROIT 2010: Artigo 6.2.2. Disponível em http://www.unidroit.org/instruments/commercial-contracts/unidroit-principles-2010/403-chapter-6-performance-section-2-hardship/1058-article-6-2-2-definition-of-hardship. Acesso em 2/8/2014 UNIDROIT, Princípos UNIDROIT 2010: Artigo 7.1.7.Disponível em http://www.unidroit.org/instruments/commercial-contracts/unidroit-principles-2010/404-chapter-7-non-performance-section-1-non-performance-in-general/1050-article-7-1-7-force-majeure. Acesso em 2/8/2014
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Vilipêndio a cadáver é um crime que reflete a relação da sociedade com a dignidade humana, mesmo após a morte. Desde tempos antigos, civilizações atribuem um valor sagrado aos rituais fúnebres e ao corpo dos falecidos, entendendo que o respeito a esses aspectos é essencial para honrar não só a memória dos mortos, mas também a paz e a moral dos vivos.
Assim, leis surgiram para proteger essa dignidade, garantindo que o corpo e o descanso do falecido sejam preservados de qualquer ataque ou tratamento desrespeitoso. Vamos entender um pouco mais sobre isso.
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Abordagem histórica do vilipêndio ao cadáver
O sentimento que o homem tem em relação aos seus pares atravessou os séculos, gerações e a seleção natural. É uma característica intrínseca ao homo sapiens a capacidade de se afeiçoar aos outros de sua mesma espécie, permitindo que laços sejam criados como forma de facilitar a convivência em sociedade.
É por meio dele que se constroem os pilares das relações humanas, que vão guiar os homens por toda a vida e permitir que eles se unam com base tanto pela relação sanguínea quanto pela afetiva.
Esse sentimento não desparece após a morte de um ente querido, pelo contrário. Não são raras às vezes em que a dor da perda é responsável por unir e aproximar. O ritual fúnebre é a forma pelo qual as pessoas se despedem e isso é característica de todos os povos, independente de raça ou religião.
É nesse momento em que se cultua sua memória, integridade, história e imagem, de forma que esses valores transcendam sua morte. Além de ser uma forma de preservar a imagem do morto, também é o meio encontrado para acalentar os familiares pela dor da perda, que é sempre inevitável.
O culto aos mortos é comum a quase todas as épocas e quase todos os povos, vindo da Grécia antiga o costume de guardar luto, acender velas, levar coroas e flores. Segundo relato de Freud, o luto é uma forma de sobrevivência. É a forma usada pelos os que sobrevivem para lidar com a perda de alguém que continuará a ser querido, mesmo que não se encontre mais presente junto aos demais.
Se cadáver é o corpo humano que viveu, então o respeito que se deve aos mortos é consequência da vida que eles tiveram, da sua memória e do que fizeram em vida.
Vilipêndio ao cadáver e o Direito
No sentido tanto de proteger tanto a memória do morto quanto preservar os seus familiares nesse momento delicado, o Código Penal traz, em seu Título V, os crimes contra o sentimento religioso e o respeito aos mortos.
O legislador uniu essas duas espécies de crimes em um só Título por conta da afinidade entre eles, já que o sentimento religioso e o respeito aos mortos consistem valores éticos e morais que se assemelham, posto que o tributo que se dá a eles advém de um caráter religioso que se propagou ao longo dos séculos, abordando, assim, o vilipêndio ao cadáver.
O artigo 212 do referido diploma legal apresenta a tipificação relacionada ao vilipêndio ao cadáver ou suas cinzas, cominando pena de detenção de um a três anos, além de multa. O bem jurídico tutelado nesse caso é o sentimento de respeito aos mortos, já que o de cujus não é considerado titular de direito.
Assim, tutelar esse direito possui um caráter social e por isso que o sujeito passivo dos crimes contra o respeito aos mortos também é o Estado, já que ele é a personificação da coletividade e tem a missão de protegê-la como um dos seus interesses primordiais. O vilipêndio ao cadáver, segundo Rogério Sanches da Cunha, em Manual de Direito Penal – Parte Especial. Ed Jus Povivm, 7ª Ed. P. 433, se define como:
É crime de execução livre, podendo ser praticado pelo escarro, pela conspurcação, desnudamento, colocação do cadáver em posições grosseiras ou irreverentes, pela aposição de máscaras ou de símbolos burlescos e até mesmo por meio de palavras; pratica o vilipêndio quem desveste o cadáver, corta-lhe um membro com propósito ultrajante, derrama líquidos imundos sobre ele ou suas cinzas (RT 493/362).
Assim, a tipificação legal do vilipêndio é clara em nosso ordenamento jurídico e não deixa margem para dúvidas quanto a sua interpretação. Todavia, com o advento da internet e da rápida disseminação de imagens e informações, o vilipêndio ao cadáver ganhou novas formas de ser praticada.
Vilipêndio ao cadáver no mundo digital
O compartilhamento de fotos e vídeos que claramente desrespeitam a imagem do morto se propaga de firma assombrosa pela rede mundial de computadores em questão de minutos. Em casos de acidentes ou crimes brutais, muitas vezes as imagens chegam às redes sociais antes mesmo que as autoridades policiais e locais sejam comunicadas do ocorrido.
Este fato acaba gerando empecilhos às investigações, já que na tentativa macabra de registrar o ocorrido, as pessoas acabam contaminando a cena do crime e, consequentemente, prejudicando as investigações, tudo em prol de um motivo injustificável.
Não se pode alegar, entretanto, que essa forma de cometer o vilipêndio ao cadáver é uma das mazelas do século XXI. Antigamente a prática já existia, mas como as informações não se propagavam tão rapidamente, as imagens eram armazenadas em disquetes ou CD’s e levavam anos para serem expostas.
Hoje, ao contrário, a facilidade com que os arquivos digitais podem ser compartilhados, copiados e propagados atropela as ponderações sobre o certo e errado, bem e mal, engraçado e depreciativo.
Não é raro o internauta se deparar com imagens de corpos completamente desfigurados, que circulam pelas redes sociais de forma incessante, em um claro desrespeito à memória do morto e ao sentimento de pesar da família.
Assim, a família, além de ter que lidar com a dor da perda, ainda precisa suportar a situação vexatória de ver imagens do ente querido expostas aos olhos do mundo. Um momento provado torna-se público da pior maneia possível, gerando traumas e danos de difícil reparação.
O vilipêndio ao cadáver que acontece por meio do compartilhamento das fotos ou vídeos, entretanto, apesar de ser fato atípico para o Direito Penal, se insere na seara do Direito Civil e gera ilícito, já que quem provoca dano a outrem é obrigado a repará-lo, conforme se depreende dos artigos 186 e 927 do Código Civil (BRASIL, 2002), os quais seguem transcritos:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
O dano em questão trata-se, no caso do vilipêndio, da situação vexatória que a família do morto sofre ao se deparar com fotos ou vídeos do ente querido sendo compartilhados indiscriminadamente como se fossem motivo de diversão aos olhos de um público que se satisfaz com o sofrimento alheio. Este é o motivo pelo qual a conduta de divulgar merece tanto repúdio quanto a de quem fornece as imagens.
Dessa forma, busca o Estado, na sua qualidade de protetor da sociedade, preservar a memória do morto e evitar a situação vexatória pela qual a família passa. Quando isso não se configura possível, deve o Estado reparar o sofrimento causado à família da vítima como forma de modelo corretivo para evitar que tais condutas continuem a ser praticadas.
A atitude de quem divulga e compartilha tais imagens é reprovada jurídica e socialmente, com punições para ambos os casos. Não é por a internet ser um território aparentemente livre e onde todos podem expor suas opiniões que os direitos perdem as suas garantias fundamentais, motivo pelo qual se torna necessário ponderar antes de compartilhar e facilitar a propagação de qualquer conteúdo, e em especial os que são visivelmente prejudiciais e vexatórios. As responsabilizações cíveis e criminais, dependendo da conduta, existem e são aplicadas, mas a maioria das pessoas infelizmente só dá conta disso quando já é tarde demais.
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Referências:
BRASIL. Código Penal Brasileiro (1940). Código Penal Brasileiro. Brasília, DF, Senado, 1940.
BRASIL. Código Civil Brasileiro (2002). Código Civil Brasileiro. Brasília, DF, Senado, 2002.
SOUZA, Gláucia Martinhago Borges Ferreira de. A era digital e o vilipêndio ao cadáver. Disponível em: <http://gaumb.jusbrasil.com.br/artigos/184622172/a-era-digital-e-o-vilipendio-a-cadaver>. Acesso em 05 de janeiro de 2016.
CUNHA, Rogério Sanches da. Manual de Direito Penal – Parte Especial. Ed Jus Povivm, 7ª Ed. P.433
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Artigos
A Convenção de Nova York e a necessidade de atualizações

Publicado
6 meses atrásem
1 de setembro de 2024
A Convenção de Nova York foi instituída em 1958 e, desde aquela época, o seu texto não foi modificado de forma direta. Somente em 2006 foi reunida uma Assembleia Geral que emitiu um documento explicitando como deveria ser a interpretação de alguns dispositivos jurídicos deste tratado à luz do desenvolvimento tecnológico das últimas décadas.
Esta atualização, entretanto, em nenhum momento fez menção ao artigo 1º da Convenção de Nova York, sendo este justamente o dispositivo jurídico que impediria a aplicação deste tratado para as sentenças arbitrais eletrônicas. Alguns defendem que este acordo não necessitaria de atualizações. Na verdade, o que seria mandatório era a instituição de uma nova convenção voltada exclusivamente para a arbitragem eletrônica.
Apesar da clara dificuldade de este acordo vir a ser elaborado, e da esperada demora para que a convenção venha a ser reconhecida amplamente na comunidade internacional, a Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional tem defendido essa tese para as arbitragens envolvendo relações consumeristas. Em 2013, este órgão internacional publicou um documento em que defendia essa posição:
The Working Group may also wish to recall that at its twenty-second session, albeit in the context of arbitral awards arising out of ODR procedures, it considered that a need existed to address mechanisms that were simpler than the enforcement mechanism provided by the Convention on the Recognition and Enforcement of Foreign Arbitral Awards (New York, 1958), given the need for a practical and expeditious mechanism in the context of low-value, high-volume transactions.1
Pode-se perceber, portanto, que esta não é a solução que melhor se alinha com o pleno desenvolvimento da arbitragem eletrônica na seara internacional. O melhor, portanto, seria atualizar o art. 1º da Convenção de Nova York para que o mesmo passe a abranger o processo arbitral eletrônico.
Outro artigo da Convenção de Nova York que necessita de atualização é a alínea d do seu artigo 5º, que assim estipula:
Article V. Recognition and enforcement of the award may be refused, at the request of the party against whom it is invoked, only if that party furnishes to the competent authority where the recognition and enforcement is sought, proof that:
(…)
(d) The composition of the arbitral authority or the arbitral procedure was not in accordance with the agreement of the parties, or, failing such agreement, was not in accordance with the law of the country where the arbitration took place;2
No âmbito da arbitragem eletrônica, caso as partes não tenham definido como o procedimento será regulado, pode ser muito difícil discernir se o processo arbitral esteve de acordo com a lei do local da arbitragem. Afinal, conforme tratou-se em outra parte deste trabalho, a definição desta pode ser extremamente dificultosa.
Logo, na prática jurídica, a solução mais viável atualmente seria obrigar as partes de um processo arbitral eletrônico a sempre definirem da maneira mais completa possível como a arbitragem irá proceder.
Esta obrigatoriedade pode prejudicar a popularidade daquela, pois, com isso, cria-se mais uma condição para que este tipo de processo venha a ocorrer de modo legítimo, dificultando, pois, a sucessão do mesmo. Apesar disso, esta solução seria a que causaria menos dano para a arbitragem eletrônica no âmbito internacional.
Além disso, a Lei-Modelo da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional estipula em seu artigo 20:
Article 20. The parties are free to agree on the place of arbitration. Failing such agreement, the place of arbitration shall be determined by the arbitral tribunal having regard to the circumstances of the case, including the convenience of the parties.3
Logo, segundo esta lei-modelo, é perfeitamente cabível às partes escolherem o local em que o processo arbitral ocorrerá, havendo, portanto, a aplicação do que parte da doutrina chama de forum shopping, ou seja, a escolha do foro mais favorável por parte do autor (Del’Olmo, 2014, p. 398).
É válido ressaltar, ainda, que a lei-modelo da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional serve como base para a lei de arbitragem de mais de 60 países, estando presente em todos os continentes (Moses, 2012, p. 6-7). Com isso, demonstra-se que a necessidade da escolha do local do processo arbitral eletrônico estaria de acordo com o atual estágio de desenvolvimento da arbitragem internacional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BROWN, Chester; MILES, Kate. Evolution in Investment Treaty Law. 1ª ed. London: Cambridge University Press, 2011;
DEL’OLMO, F. S. Curso de Direito Internacional Privado. 10.ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
EMERSON, Franklin D. History of Arbitration Practice and Law. In: Cleveland State Law Review. Cleveland,vol. 19, nº 19, p. 155-164. Junho 1970. Disponível em: <http://engagedscholarship.csuohio.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=2726&context=clevstlrev> Acesso em: 18. mar. 2016.
GABBAY, Daniela Monteiro; MAZZONETTO, Nathalia ; KOBAYASHI, Patrícia Shiguemi . Desafios e Cuidados na Redação das Cláusulas de Arbitragem. In: Fabrício Bertini Pasquot Polido; Maristela Basso. (Org.). Arbitragem Comercial: Princípios, Instituições e Procedimentos, a Prática no CAM-CCBC. 1ed.São Paulo: Marcial Pons, 2014, v. 1, p. 93-130
GRINOVER, Ada Pellegrini; CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
HERBOCZKOVÁ, Jana. Certain Aspects of Online Arbitration. In: Masaryk University Law Review. Praga, vol. 1, n. 2, p. 1-12. Julho 2010. Disponível em: < http://www.law.muni.cz/sborniky/dp08/files/pdf/mezinaro/herboczkova.pdf> Acesso em 19. mai. 2016;
HEUVEL, Esther Van Den. Online Dispute Resolution as a Solution to Cross-Border E-Disputes an Introduction to ODR. OECD REPORT. Paris, vol. 1. n. 1. p. 1-31. Abril de 2003. Disponível em: <www.oecd.org/internet/consumer/1878940.pdf> Acesso em: 10 abril. 2016;
KACKER, Ujjwal; SALUJA, Taran. Online Arbitration For Resolving E-Commerce Disputes: Gateway To The Future. Indian Journal of Arbitration Law. Mumbai, vol. 3. nº 1. p. 31-44. Abril de 2014. Disponível em: < http://goo.gl/FtHi0A > Acesso em 20. mar. 2016;
Artigos
O que é uma Associação Criminosa para o Direito em 2024

Publicado
6 meses atrásem
27 de agosto de 2024
A associação criminosa, no direito brasileiro, é configurada quando três ou mais pessoas se unem de forma estável e permanente com o objetivo de praticar crimes. Esse tipo de associação não se refere a um crime isolado, mas à criação de uma organização que visa à prática de atividades ilícitas de maneira contínua e coordenada.
Veja-se como está disposto no Código Penal, litteris:
Art. 288. Associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.
Parágrafo único. A pena aumenta-se até a metade se a associação é armada ou se houver a participação de criança ou adolescente.
Elementos Característicos da Associação Criminosa
Em primeiro lugar, para configurar a associação criminosa, é necessário que haja a participação de, no mínimo, três pessoas. Se o grupo for formado por apenas duas pessoas, pode caracterizar-se como “concurso de pessoas” em vez de associação criminosa.
Outro aspecto essencial para que seja possível a tipificação é que a associação criminosa deve ter como finalidade a prática de crimes. A existência de um propósito comum e a estabilidade do grupo são fundamentais para a configuração do delito.
Além disso, diferente da mera coautoria em um crime específico, a associação criminosa exige uma relação contínua e duradoura entre os membros, com a intenção de cometer crimes de forma reiterada.
Concurso de Pessoas, Organização Criminosa e Associação Criminosa
É importante diferenciar a associação criminosa de outros crimes semelhantes, como o crime de organização criminosa, previsto na Lei nº 12.850/2013.
A organização criminosa, além de exigir um número maior de participantes (mínimo de quatro pessoas), envolve uma estrutura organizada, com divisão de tarefas e objetivo de praticar crimes graves, especialmente aqueles previstos no rol da lei de organizações criminosas.
No caso da associação criminosa, como já observamos, não é necessário uma organização minuciosa, bastando um conluio de pessoas que tenham por objetivo comum a prática de crimes de maneira habitual.
Ademais, outra importante diferença que possa ser apontada entre o crime de associação criminosa e concurso de pessoas; é que na associação criminosa pouco importa se os crimes, para os quais foi constituída, foram ou não praticados.
Além do vínculo associativo e da pluralidade de agentes, o tipo requer, ainda, que a associação tenha uma finalidade especial, qual seja, a de praticar crimes, e para a realização do tipo não necessitam serem da mesma espécie. Insista-se, os crimes, para que se aperfeiçoe o tipo, não necessitam que tenham sido executados, haja vista que a proteção vislumbrada pelo tipo é a da paz pública.
Para o Superior Tribunal de Justiça, é essencial que seja comprovada a estabilidade e a permanência para fins de caracterização da associação criminosa, veja-se:
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE DROGAS. ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE. VÍNCULO ASSOCIATIVO ESTÁVEL E PERMANENTE NÃO DEMONSTRADO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
1. De acordo com a jurisprudência desta Corte Superior, para a subsunção do comportamento do acusado ao tipo previsto no art. 35 da Lei n. 11.343/2006, é imperiosa a demonstração da estabilidade e da permanência da associação criminosa.
2. Na espécie, não foram apontados elementos concretos que revelassem vínculo estável, habitual e permanente dos acusados para a prática do comércio de estupefacientes. O referido vínculo foi presumido pela Corte estadual em razão da quantidade dos entorpecentes, da forma de seu acondicionamento e do tempo decorrido no transporte interestadual, não ficando demonstrado o dolo associativo duradouro com objetivo de fomentar o tráfico, mediante uma estrutura organizada e divisão de tarefas.
3. Para se alcançar essa conclusão, não é necessário o reexame do conjunto fático-probatório constante dos autos, pois a dissonância existente entre a jurisprudência desta Corte Superior e o entendimento das instâncias ordinárias revela-se unicamente jurídica, sendo possível constatá-la da simples leitura da sentença condenatória e do voto condutor do acórdão impugnado, a partir das premissas fáticas neles fixadas.
4. Agravo regimental desprovido.
(AgRg no HC n. 862.806/AC, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 19/8/2024, DJe de 22/8/2024.)
Interessante observar um pouco mais sobre as diferenças entre organizações criminosas e associações criminosas aqui.
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Outros Aspectos Importantes
O art. 8° da Lei 8.072/90 prevê uma circunstância qualificadora, que eleva a pena de reclusão para três a seis anos, quando a associação visar a prática de crimes hediondos ou a eles equiparados.
Importante, ainda, não confundir o crime previsto no Código Penal com o estipulado na Lei de Drogas (Lei n. 11.343/2006) e na Lei n. 12.830/13 (art. 1º, parágrafo 2º). A Lei 11.343/2006, no seu art. 35, pune com reclusão de 3 a 1 0 anos associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, o tráfico de drogas (art. 33) ou de maquinários (art. 34). Nas mesmas penas incorre quem se associa para a prática reiterada do crime definido no art. 36 (financiamento do tráfico).
A Lei n° 12.850/13 define, em seu art. 1 °, § 2°, a organização criminosa como sendo a associação de quatro ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos, ou que sejam de caráter transnacional.
No art. 2°, referida Lei pune, com reclusão de três a oito anos, e multa, as condutas de promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa.
Por fim, como já foi dito, é imprescindível observar com atenção cada uma das elementares típicas dos crimes aqui narrados. O art. 288 traz uma previsão geral para o crime de associação criminosa, enquanto que nos demais tipos da legislação esparsa vislumbra-se a aplicação específica em situações peculiares, ainda que possam guardar semelhanças, esses são tipos que possuem elementares diversas.
Importante atentar-se sempre para o princípio da especialidade e as situações fáticas de cada caso concreto para que se amolde ao tipo penal mais adequado.
Não esqueçamos que o bem jurídico tutelado pelo tipo do art. 288 do CP é a paz pública. A pena cominada ao delito admite a suspensão condicional do processo (Lei 9.099/95). A ação penal será pública incondicionada.
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REFERÊNCIAS:
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa – 13. ed. rec., ampl. e atual. de acordo com as Leis n. 12.653, 12.720, de 2012 – São Paulo, Saraiva, 2013, 537 p.
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