Eduardo Galeano e a união dos países do Cone Sul

Introdução

Com o intuito de divulgar suas ideias, diversos autores utilizam o formato livresco para executar tal finalidade. Eduardo Galeano não foi exceção, o escritor uruguaio, fazendo uma análise crítica acerca da história da América Latina, expõe as chagas rasgadas no seio do continente feitas pela exploração europeia e estadunidense ao longo dos anos. As Veias Abertas da América Latina distorce a visão de independência dos países do cone sul, demonstrando que na realidade somos todos explorados diuturnamente por interesses estrangeiros. As tentativas de Integração do cone sul falharam ao se submeterem às vontades de grandes empreendimentos internacionais, gerando pobreza e desigualdade para os países menos desenvolvidos que estavam jungidos no bloco (GALEANO, 2010).

Após a conquista da Democracia e um período de relativa estabilidade política, a América do Sul vislumbra um novo horizonte de união e desenvolvimento através da UNASUL. Essa nova tentativa de agrupamento é a concretização da norma programática prevista no art. 4º, parágrafo único da Constituição Federal de 1988, que discorre sobre o necessário fortalecimento dos laços entre os povos latino-americanos.

A investigação aqui trazida vai buscar analisar a influência do autor uruguaio no pensamento e na construção da UNASUL como um mecanismo de defesa dos países do cone sul na luta por sua independência de fato. Está dividido em dois tópicos: o primeiro será dedicado a estudar a zona de convergência entre o Direito e a Literatura, e o segundo ao estudo  As veias abertas da América Latina.

Direito e Literatura:

Para dar início ao estudo aqui proposto, é necessário apresentar o Direito e a Literatura como ramos do conhecimento humano que se imbricam e se influenciam mutuamente. A literatura será aqui abordada como uma expressão artística do homem, enquanto que o direito como um fenômeno social.

O homem, devido a suas diversas vulnerabilidades, uniu-­se a outros da mesma espécie. Numa busca pela sobrevivência diante das adversidades da natureza, formou-­se um todo coeso de seres humanos e, graças a isto, as probabilidades de cada indivíduo permanecer vivo aumentaram. Todavia, por conta da sua própria essência independente e questionadora, conviver de maneira grupal, com uma profusão de ideias distintas, tornou-­se atividade árdua devido aos conflitos internos que sempre brotam e que acarretam numa diluição do vínculo afetivo de união entre os membros do grupo. Visando a pacificação destas disputas, nasce o Direito. Em sua gênese, portanto, ele tem como finalidade precípua o controle social.

Por ser uma criação do gênio humano, o Direito é influenciado por diversos fatores que cercam a vida daquele determinado grupo. Clima, economia, tecnologia, cultura, ou seja, tudo aquilo que permeia a existência humana irá acarretar na formação do corpo jurídico daquele povo. De acordo com Paulo Nader (2013, p. 51):

A formação e a evolução do Direito não resultam da simples vontade do legislador, mas estão subordinadas à realidade social subjacente, à presença de determinados fatores que influenciam fortemente à própria sociedade, definindo suas diversas estruturas (grifo original).

O Direito nasce do homem e para o homem, então torna-­se um reflexo de parte do que é pensado e vivenciado na sociedade em que vive.

A Literatura, como forma de expressão artística humana, imiscuída em sua realidade, torna-se fonte difusora de ideiais e influencia consequentemente o pensamento jurídico de determinado tempo histórico. Para Tolstoi (2002) a arte é uma forma de interação entre os homens, uma maneira utilizada por eles de intercambiar visões, sentimentos, ideias sobre o mundo que os cerca. Sendo, portanto, não mero instrumento de prazer, mas uma condição da natureza humana.

De acordo com André Karam Trindade e Roberta Magalhães Gubert (2008, p.13), a literatura possui importância para o Direito no sentido de suas dimensões: criadora, na medida em que questiona a natureza ao seu redor e linguística, tendo em vista que ambos usufruem de um material central de criação. Prossegue o mencionado autor:

A obra de arte produz, mediante a imaginação, um deslocamento no olhar, cuja maior virtude está na ampliação e fusão dos horizontes, de modo que tudo se passa como se, através dela, o real possibilitasse o surgimento de mundos e situações até então não pensados. […] a literatura assume, nitidamente, uma função de subversão crítica, na medida em que se converte em um modo privilegiado de reflexão filosófica – que ultrapassa o marco das disciplinas científicas […] que se ocupam de estudar o direito desde diversos âmbitos ­, possibilitando, assim, que se trate dos problemas mais primários e, ao mesmo tempo, mais complexos da história do direito.

Portanto, sob uma ótica artística, a literatura influencia o direito devido ao fator questionador intrínseco a ela, expondo as visões de mundo do autor daquela determinada obra, no caso, a literária, fazendo com que as demais pessoas entrem em contato com a realidade expressada pelo artista, acarretando, assim, dúvidas acerca da existência efetiva das coisas que as cercam.

As Veias Abertas da América Latina de Eduardo Galeano e a união dos países do cone sul

Pelos fins de 1970 foi publicada a obra do escritor uruguaio Eduardo Galeano, que vinha com uma visão crítica acerca da história latino-americana, demonstrando uma face perturbadora deste continente explorado por séculos. O gênero literário da obra pode se enquadrar no denominado ensaio, inaugurado por Montaigne no século XVI. O nome do gênero advém do título da obra do pensador, “Ensaios” (MONTAIGNE, 1972).

Mesmo onde se tinha uma ilusão de riqueza e progresso, o autor expõe a miséria e a desgraça dos povos ludibriados por essas ideias. Um dos exemplos citados no livro é a cidade de Potosí, onde foram descobertos veios de prata, acarretando em uma explosão de objetos de luxo, bem como num inchaço populacional; hodiernamente, a outrora cidade da prata, foi esquecida por todos, e a pobreza impera (GALEANO, 2010).

Séculos de espoliação e dominação estrangeira tornaram o continente sul pobre e refém das potências capitalistas. Mesmo quando há uma tentativa de integração regional, ela está sob a égide dos grandes empreendimentos de fora. Nesta obra, o autor explana sobre a ALALC e a grande problemática do interesse dessas grandes empresas: “O desarmamento alfandegário, que vai libertando gradualmente a circulação de mercadorias dentro da área da ALALC, está destinado a reorganizar, em benefício das grandes corporações multinacionais, a distribuição dos centros de produção e dos mercados da América Latina (GALEANO, 2010, p. 355).”

A quebra de barreiras tributárias entre os países acaba favorecendo os conglomerados multinacionais que dominam a região:

Aqui os países se convertem, com impunidade plena, em pseudônimos das empresas estrangeiras que os dominam. O primeiro acordo de complementação da ALALC, em agosto de 1962, foi assinado pela Argentina, Brasil, Chile e Uruguai; na realidade foi assinado entra a IBM, a IBM, a IBM e a IBM. O acordo eliminava os direitos de importação de maquinário estatístico e seus componentes entre os quatro países, ao mesmo tempo em que aumentava os gravames para importar esse maquinário de fora da área: a IBM World Trade ‘sugeriu aos governos que se eliminassem os direitos de comerciar entre si, ela construiria fábricas no Brasil e na Argentina’ (GALEANO, 2010, p. 359).

Percebe-se, pois, que esse modelo de integração previsto pela ALALC, na verdade sustentava os interesses de empresas estrangeiras, e não dos povos do cone sul, que em teoria buscavam um maior desenvolvimento de suas economias e Estados.

Além do mais, segundo Eduardo Galeano (2010), a ALALC era um mecanismo falho também pelo fato de favorecer mais aos países em melhores situações financeiras no bloco, o Brasil e a Argentina, em detrimento daqueles mais frágeis, sendo, portanto, assimilado como uma forma de dominação subimperialista, ou seja, os dois maiores territórios do cone sul, já dominados pelas grandes potências, estariam aplicando uma forma de dominação sobre os menores numa forma similar ao imperialismo que os acomete.

Diversas formas de dominação foram utilizadas para subjugar os países latino americanos durante os séculos, desde a direta retirada de suas riquezas, como vigorou no período colonial, com as descobertas de jazidas de metais preciosos, até a nova forma, através da geração de dívidas dos países com entidades internacionais como o Fundo Monetário Internacional – FMI e até mesmo a intervenção militar indireta (GALEANO, 2010).

Essa intervenção militar teve como consequência a implantação de estados totalitários na maioria dos países latino-americanos, em favor dos interesses estadunidenses. Entretanto, a partir da década de 80, esses territórios começaram a buscar vias democráticas, resultando nas modernas Constituições.

Após esses anos de ditadura e intervenção estrangeira, ficou patente para os países latino-americanos que era necessária uma união com a finalidade de combater tanto a instabilidade política na região quanto uma real aproximação através de tratados de comércio e a ideia de uma Integração que fortalecesse todos aqueles envolvidos e extirpassem as influências estrangeiras. Desta necessidade brotou o art. 4, parágrafo único da Constituição Federal do Brasil que diz:

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: […]Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.

Conforme ensina José Souto Maior Borges (2005), tal dispositivo trata-se de uma norma programática, ou seja, que se consubstancia numa realização futura, dependendo, assim, dos possíveis tratados internacionais que o Brasil venha a celebrar.

Um desses tratados, celebrado em Brasília no dia 23 de maio de 2008, incorporado ao ordenamento brasileiro pelo Decreto nº 7.667/2012 desembocou na criação da União das Nações Sul-Americanas, ideia de Integração regional que tem como finalidade fortalecer os laços culturais, econômicos e sociais dos países do cone sul, conforme o art. 2º do Tratado supracitado:

A União de Nações Sul-americanas tem como objetivo construir, de maneira participativa e consensuada, um espaço de integração e união no âmbito cultural, social, econômico e político entre seus povos, priorizando o diálogo político, as políticas sociais, a educação, a energia, a infraestrutura, o financiamento e o meio ambiente, entre outros, com vistas a eliminar a desigualdade socioeconômica, alcançar a inclusão social e a participação cidadã, fortalecer a democracia e reduzir as assimetrias no marco do fortalecimento da soberania e independência dos Estados.

Nota-se, conforme o artigo mencionado, a tentativa dos países de jungir a região num só objetivo comum de desenvolvimento e integração dos povos. Conforme explana o Itamaraty (http://www.itamaraty.gov.br) a UNASUL nasce em uma nova realidade sociopolítica de “superação da desconfiança que havia entre os países sul-americanos desde os movimentos de independência, no século XIX”. Anteriormente à criação do bloco, os países interagiam de maneira completamente isolada, e precipuamente com aqueles mais desenvolvidos (http://www.itamaraty.gov.br). A criação da UNASUL representa a concretização do parágrafo único do art. 4º, e a tentativa de fortalecimento desses países e do próprio continente em desfavor dos interesses estrangeiros.

Conclusão

A literatura, como parte do próprio ser humano, sendo uma extensão deste, o auxilia na compreensão e no aprimoramento de sua realidade social. O conhecimento transmitido através das experiências e leituras do autor são inexoravelmente transmitidas aos leitores por meio da palavra escrita, e esta acaba por deter o poder de transformação da própria estrutura da sociedade quando imprime nas mentes humanas uma ideia.

Eduardo Galeano, em sua forte indignação perante a exploração sofrida pelos países latino-americanos, expôs os ferimentos do continente, demonstrando que ele continua a sangrar através de suas veias abertas, e seu povo a sofrer com as consequências da miséria. Desde o colonizador europeu até a tutela estadunidense, onde as grandes corporações intervêm na política interna e externa desses Estados com o único interesse de gerar mais lucro, independentemente das consequências que serão levadas à população, o continente sofre.

Nosso passado comum de explorados, bem como uma língua semelhante seriam o ponto nodal de uma melhor união entre estes Estados tão sofridos. Todavia, até pouco tempo atrás, os países do cone sul ainda eram insulares em suas relações com o globo, e negociavam de maneira precípua com aqueles presentes no hemisfério norte, mais precisamente Europa e Estados Unidos, o que acarretava num enfraquecimento do continente devido a esta fragmentação diplomática, favorecendo, assim, a manipulação dos subdesenvolvidos Estados do sul pelos países desenvolvidos.

Após a redemocratização, o Brasil procura adotar uma postura mais aglutinadora no que diz respeito às suas relações com os países sul-americanos, prevendo na sua Constituição uma maior união com eles. A consequência disto foi a busca de uma melhoria nas trocas comerciais e no relacionamento entre a potência regional e os demais Estados latino-americanos com a criação do Mercosul e posteriormente da UNASUL (União das Nações Sul-Americanas), inclusive com uma união militar.

A luta dos Estados latino-americanos pela emancipação no cenário global permanece. Todavia, devido a consciência despertada após a chaga exposta, podemos finalmente nos debruçar sobre o real problema que tanto nos afligia: a exploração. Aprendemos, depois de séculos, a nos unir contra aqueles que nos sangram a carne.

REFERÊNCIAS:

BORGES, José Souto Maior. Curso de direito comunitario: instituições de direito comunitário comparado: Uniao Europeia e MERCOSUL. São Paulo: Saraiva, 2005.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, Senado, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 18 ago. 2016.

_____. Decreto Nº 7.667, de 11 de janeiro de 2012. Promulga o Tratado Constitutivo da União de Nações Sul-Americanas, firmado em Brasília, em 23 de maio de 2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 18 ago. 2016.

_____. União de Nações Sul-Americanas. Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br>. Acesso em: 18 ago. 2016.

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Trad. Sergio Faraco. Porto Alegre: L&PM, 2014.

GUBERT, Roberta Magalhães (Org.); TRINDADE, André Karam (Org.). Direito e Literatura: aproximações e perspectivas para se repensar o direito. Direito & Literatura: reflexões teóricas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p.11-63.

HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 35. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.

TOLSTOI, Leon. O que é arte?. Trad. de Bete Torii. São Paulo: Ediouro, 2002.
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