“Constituição é aquilo que os juízes dizem que ela é!”
Charles Evan Hughes
Percebe-se um endurecimento na jurisprudência penal e processual penal contra o réu, em notória contrariedade ao discurso acadêmico e até mesmo a prática legislativa. Interessante notar que em pleno momento de instauração das audiências de custódia e de discussões com a humanização dos processos, o Supremo Tribunal Federal (STF) mitiga um dos mais clássicos princípios do processo penal, seja este o da Presunção de Inocência.
Assim, o Habeas Corpus 126292, julgado no dia 17 de fevereiro de 2016, parece trazer novo marco ao pensamento do próprio Supremo, que deixa para trás uma longa história de proteção às liberdades individuais para ceder ao fervor punitivista e solipsista que tal Corte há certo tempo já havia demonstrado.
Para ter a real compreensão da importância do julgado e da repercussão jurídica deste, deve-se analisar primeiramente a Constituição Federal, que traz no seu artigo 5º , LVII, tal direito fundamental:
LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
Este texto consagra o que costumeiramente se chama de princípio da Presunção de Inocência. Entende-se princípio como um mandamento nuclear do ordenamento, como um elemento ordenador, como o critério hermenêutico.
Então, a interpretação das normas constitucionais, por sua natureza, têm que se voltar a maior consecução dos princípios, sendo respeitada sua normatividade. Outrossim, o texto constitucional não pode ser deformado ou transformado segundo o alvitre dos julgadores.
Foi nesse sentido que surgiu a doutrina do garantismo penal de Ferrajoli. Garantismo, ao contrário do senso leigo, que dá a entender como supreproteção ao réu ou similar, diz respeito tão somente em respeito normativo formal e material à Constituição, considerando esta como norma hierarquizadora do sistema jurídico, atribuindo ainda outros elementos, como avaliação crítica na aplicação das normas infralegais e respeito à democracia substancial.
Por democracia substancial entende-se como o respeitar da vontade das maiorias, sem que isso se torne uma ditadura das maiorias. Então, como harmonizar essa tensão de ideias. Ora, a solução não é nova, esta diz respeito ao cumprimento de um texto basilar que regula qual o mínimo que não pode ser ofendido pelo Estado, seja esta a Constituição Federal.
Assim, um dos primeiros textos constitucionais que se tem notícia é a Carta Magna da Inglaterra, trazendo entre outros a ideia do due processes of Law e da presunção de inocência.
Desta forma, o princípio da presunção de inocência, além de ser um dos mais basilares e seguros do ordenamento, merecendo atenção inteiramente especial, tem disciplina como direito e garantia fundamental não devendo ser interpretado de forma restritiva, sob pena de ferir a ideia de democracia substancial. Todavia, como diria Charles Evan Hughes “Constituição é aquilo que os juízes dizem que ela é”.
Mas então, e o Habeas Corpus 126292, como interpreta-lo? Na realidade ainda não há disponível a integra do processo, pois este sequer transitou em julgado. Houve o julgamento do pleno do Supremo (que na prática encerra qualquer discussão sobre o mérito, sendo a decisão final).
Neste caso, o relator, Ministro Teori Zavascki, trouxe como argumento em seu voto que supostamente estaria se respeitando a presunção de inocência, pois os fatos transitariam em julgado na segunda instância. Nesta linha de entender, a discussão de Direito no Supremo não constituiria parte do processo penal em apreço.
Faz ainda a comparação ao sistema eleitoral, que considera a presunção de inocência na esfera eleitoral encerrada com uma decisão colegiada (no caso com um Tribunal Eleitoral). Ainda relembrando que no plano internacional os outros países não levam a presunção de inocência aos Tribunais Superiores.
Votando em contrariedade, teve muita lucidez o voto da Ministra Rosa Weber, que escancararou o óbvio. Por mais que toda a argumentação dos Ministros seja de retórica invejável, é impossível uma Ministra do Supremo Tribunal Federal, que jurou proteger a Constituição Federal, votar contra o texto expresso desta.
Isto porque a Constituição é literal em dizer que não haverá culpa formada antes do trânsito em julgado. Caro leitor, quem já viu um processo, seja este cível ou penal, que não há certidão de trânsito em julgado quando ainda espera-se trâmite em recurso de Tribunal Superior, e o motivo é bastante simples, NÃO HÁ TRÂNSITO EM JULGADO ENQUANTO TRAMITA RECURSO EM TRIBUNAL SUPERIOR.
Inclusive, no processo civil quando se inicia uma execução pendente recurso em Tribunal Superior esta recebe o nome e os autos de uma execução provisória. Desta forma, a execução provisória exige, por exemplo, a possibilidade de reversibilidade da decisão, estando prevista a necessidade de caução conforme o artigo 475-O, do morimbundo código de processo civil.
Ocorre, caro leitor, que no processo civil pode-se reverter o pagamento realizado errado. Já no processo penal, não há reversão. Ademais, sequer o preso indevidamente, num caso de reversão em Tribunal Superior, teria direito à indenização pelo tempo que ficou preso indevidamente. Somente é indenizável o ERRO JUDICIÁRIO, devendo ser provada a culpa ou a desídia do ente público. Então, certamente será praticamente impossível comprovar que o Estado foi desidioso partindo que houve um julgamento de um Tribunal condenando o réu. Isto quer dizer que a pessoa será presa e se estiver em erro nem indenizado será.
Cabe dizer ainda que essa ideia que por não se discutir mais fatos, atrairia o trânsito para segunda instância é no mínimo de retórica estranha. Evidente que se há um recurso em Tribunal Superior e este altera o entendimento, mesmo que só de Direito, isso pode mudar a situação do réu, alterando a quantidade de pena ou mesmo a situação de culpado ou inocente.
Discutiu-se, já extra julgamento, mediante os comentários na mídia que não se estaria considerando o réu culpado, mas apenas realizando a antecipação da pena. Estes mostram total desconhecimento da lei penal, certamente realizado por leigos. A culpa é pressuposto para a execução da pena, sendo a ideia de execução provisória da pena no mínimo estranha.
A comparação ao Sistema Eleitoral é também um dos pontos de muito interesse. A Lei da Ficha Limpa instituiu que a presunção de inocência na esfera eleitoral se exauriria com uma decisão colegiada. Tal tema foi bastante discutido, inclusive se tornando dissertação de Mestrado da Procuradora Nilce Cunha Rodrigues, disponível no repositório da Universidade Federal do Ceará.
A dissertação da Ilustre Procuradora é bastante útil para o deslinde dessa questão, posto que um dos pontos vitais do trabalho desta foi diferenciar a aplicação no Processo Penal e no Sistema Eleitoral.
É evidente que as normas podem se cambiar de um sistema para outro, mas da presunção de inocência esgotada na segunda instância no processo eleitoral é já uma derivação das diferenças com o processo penal. Parece-me ilógico querer agora retroceder e fazer com que isso volte a se aplicar no processo penal. Seria a criatura se voltando contra o criador, em palavras mais líricas.
Espantoso foi ainda ver o voto de Luis Roberto Barroso. Tal espanto se dá, pois este produziu anos na academia a ideia de proteger os direitos e garantias fundamentais, salientando a democracia substancial como antimajoritária. Todavia, os votos sob as luzes das câmeras mudaram seu entendimento.
Nesse tocante, o voto do Ministro Gilmar Mendes trouxe o devido contorno, ao dizer que num país em que a Suprema Corte se rende aos clamores das ruas, a democracia sai pelas janelas. Isto porque a ideia de direito e garantia fundamental é exatamente a de uma limitação ao Estado, de uma limitação à vontade pública, de uma limitação à maioria. Por isso é tão relevante, tão importante e deve estar positivada no texto que ordena, no caso a Constituição Federal.
Por fim, tal decisão fez “pipocar” no imaginário popular a ideia do fim dos processos de maneira célere, como se o problema da sensação de impunidade fossem os recursos que tramitam em Tribunal Superior.
Alguns falaram que se tratava de mera antecipação da pena, como se fosse algo menor e não vedado. É notório que tal pensamento é indevido, posto que o cumprimento de pena presume a culpa. Não há sentido por para cumprir pena um inocente e a pessoa só deixa de ser inocente quando a perde pela culpa que se dá com o trânsito em julgado.
Outros falam que isto só abreviará a “via cruxis recursal”. Em primeiro momento, entendo que será improvável acontecer isto, posto que, conforme o próprio Ministro Relator Teori Zavascki ressaltou, ainda haverá a possibilidade de se conseguir o efeito suspensivo mediante recursos próprios. Ora, considerando que se trata do risco à liberdade do indivíduo, certamente choverá recursos em Tribunais Superiores para pedir efeito suspensivo.
Ainda assim, não justifica o Supremo Tribunal Federal, de fato, julgar contra a inteira literalidade da Constituição, fazendo interpretação contra a Constituição que prometeu cumprir.
Será então que a Constituição é mesmo somente aquilo que os juízes dizem que ela é?
REFERÊNCIAS: ____ A constituição é aquilo que os juízes dizem que ela é? <https://franciscofalconi.wordpress.com/2008/08/18/a-constituicao-e-aquilo-que-os-juizes-dizem-que-ela-e/>. Acessado em 18 de fevereiro de 2016. RODRIGUES, Nilce Cunha. Condições de elegibilidade e o princípio da presunção de inocência. 2008. 225 f.: Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-Graduação em Direito, Fortaleza-CE, 2008. Supremo Tribunal Federal. <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=310153>. Acessado em 18 de fevereiro de 2016. BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo – os conceitos de fundamentais e a construção de um novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. __ imagem disponível em < http://msalx.veja.abril.com.br/2014/08/10/0355/pe6Cx/ministros-original.jpeg?1402461921 > acessado em 18 de fevereiro de 2016.