Alexandre de Moraes cá, Neil Gorsuch lá: entenda a polêmica indicação para a Suprema Corte dos Estados Unidos

Provavelmente, o assunto mais polêmico da política brasileira nos últimos dias foi a indicação do Ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, para suprir a vaga no Supremo Tribunal Federal (STF), deixada pelo ministro Teori Albino Zavascky, falecido em 19 de janeiro. Muitos questionaram como um homem tão próximo do presidente Michel Temer e ainda filiado a um partido político poderia ocupar um cargo que em teoria exige tanta isenção. Seria mais um exemplo de indicação com finalidades políticas no mais alto órgão do Judiciário brasileiro? Ainda mais se se levar em consideração que o atual presidente está sendo investigado pela Operação Lava-Jato.

Porém, tal espécie de polêmica não é exclusividade brasileira. Existe um país que está, neste exato momento, passando pelo mesmo problema. Este país é nada mais e nada menos que os Estados Unidos.

No dia 31 de janeiro (mais ou menos uma semana antes da indicação de Alexandre de Moraes), o presidente dos Estados Unidos, o polêmico Donald Trump, indicou o juiz Neil Gorsuch como novo justice (denominação dada aos magistrados da Suprema Corte estadunidense, onde não são chamados de ministros), suprindo a vaga de Antonin Scalia, falecido em 13 de fevereiro do ano passado. Gorsuch, no entanto, ainda deverá passar pelas Confirmation Hearings (equivalente à sabatina) no Senado do país, para ter sua indicação aprovada.

A indicação está recheada de polêmicas. Neil Gorsuch é um jurista de perfil conservador, que estaria, portanto, inclinado a aprovar certas medidas a serem adotadas por Donald Trump que cheguem ao Judiciário. Isso em um contexto de turbulência gerado pelo polêmico decreto que proíbe a entrada de imigrantes de certas nacionalidades aos Estados Unidos.

O fato provocou a ira de boa parte da população e, principalmente, do Partido Democrata, que pretende reagir. Além disso, o ex-presidente Barack Obama, logo um mês depois da morte de Scalia, chegou a indicar o nome de Merrick Brian Garland, jurista de perfil mais liberal, para suprir a vaga. Porém, os senadores do Partido Republicano boicotaram as Confirmation Hearings, sob a alegação de que o próximo justice deveria ser indicado pelo próximo presidente eleito. O problema: o presidente eleito foi Donald Trump, candidato rechaçado até mesmo por grandes figuras notórias do Partido Republicano. Assim, os senadores democratas pretendem fazer de tudo para evitar uma indicação de Trump, ou que pelo menos seja indicado um jurista de perfil mais técnico, imparcial.

Vê-se, portanto, que, apesar das idiossincrasias de cada país, a polêmica nos Estados Unidos é bastante similar à do Brasil. Porém, para se entender o problema em toda a sua extensão, deve-se ter em mente algumas peculiaridades da Suprema Corte americana.

Como é composta a Suprema Corte dos Estados Unidos?

Aqui no Brasil, costumamos reclamar do perfil mais político de um ministro ou outro, dizendo que, em matérias que envolvem interesses de políticos, há alguns votos bem previsíveis. Porém, nos Estados Unidos, essa polaridade é ainda mais acentuada… e bem mais explícita.

A Suprema Corte estadunidense possui nove assentos. No entanto, há aproximadamente um ano, apenas oito justices exercem a função, pois, desde a morte do conservador Antonin Scalia, não foi sabatinado outro magistrado para sucedê-lo. Dos oito justices, quatro são de perfil liberal, três são de perfil conservador e um, Anthony Kennedy, embora considerado conservador, funciona mais como “curinga”: às vezes vota para um lado, às vezes para o outro. Isso quer dizer que, em questões mais polêmicas, costuma haver um equilíbrio nos julgamentos.

Não há qualquer norma que determine esse equilíbrio ideológico na Suprema Corte e que explique por que não se dá preferência a juristas mais imparciais. Apenas é algo que tradicionalmente se impõe. E isso vem se arrastando há anos: justices de tendência liberal tendem a votar em pautas mais liberais (portanto, são os “queridinhos” do Partido Democrata) e justices de tendência conservadora tendem a votar em pautas mais conservadoras (portanto, são “queridinhos” do Partido Republicano). Isso é tão explícito a ponto de o presidente Donald Trump ter prometido em sua campanha eleitoral indicar um jurista conservador para suprir a vaga de Scalia.

Mas ainda há outro ponto que é válido destacar: as Confirmation Hearings não são uma mera formalidade. Para se ter uma ideia, em 228 anos de Supreme Court, 161 nomes foram indicados e 47 ou foram rejeitados, ou renunciaram durante o processo. Já no STF, em 126 anos de existência, só 5 nomes indicados não foram sabatinados, todos no governo Floriano Peixoto.

Além disso, enquanto a sabatina do ministro Edson Fachin, em 2015, foi considerada demorada e tensa por ter durado 12 horas, as Confirmation Hearings costumam demorar dias, além de sempre serem precedidas por entrevistas com assessores da Casa Branca e com o FBI. Isso porque todo o passado do candidato indicado é questionado, desde possíveis crimes que tenha cometido, posturas preconceituosas ou até mesmo se costumava se envolver com brigas com vizinhos. Tudo para confirmar se ele tem ou não uma conduta ilibada. Chegou-se ao extremo de o candidato Douglas Ginsburg, indicado por Ronald Reagan, ver-se pressionado a renunciar porque veio à tona o fato de que fumara maconha quando era professor assistente em Harvard.

Em um país que se rege pelo sistema do common law, em que a Suprema Corte possui um papel de destaque normalmente maior do que em países de civil law, e que sempre prezou pela estabilidade de suas instituições e pela reputação das suas autoridades, toda essa cautela parece fazer sentido. E pode ser crucial para a escolha do próximo justice.

Mas então, quem era Scalia? E quem é Gorsuch?

Quando faleceu, aos 79 anos, Antonin Scalia, filho de imigrantes italianos, era o decano da Supreme Court. Fora indicado por Ronald Reagan em 1986 e, durante as Confirmation Hearings, fora aprovado por unanimidade. Sim: todos os 100 senadores estadunidenses votaram favoráveis. E um detalhe salta aos olhos: era um magistrado de perfil extremamente conservador.

Católico fervoroso, Scalia, além de ser o magistrado há mais tempo na casa, era também o mais conservador. Por exemplo, foi voz marcante na Suprema Corte contra a legalização do casamento gay, que ocorreu em 2015. Tinha, também, posições bem firmes acerca do aborto (era nitidamente contra), da pena de morte e do armamento civil. Chegava, inclusive, a defender uma aproximação entre Igreja e Estado em alguns casos (por exemplo, achava que o Estado poderia financiar certas instituições religiosas e defendeu a utilização de símbolos religiosos em prédios públicos).

Porém, era um homem extremamente respeitado no meio acadêmico, assim como também foi bastante admirado na sua função de justice. Reconhecido tanto por seus escritos quanto pela riqueza de suas fundamentações, era respeitado também entre liberais. Sua melhor amiga na Suprema Corte era a justice Ruth Bader Ginsburg, considerada o maior ícone liberal no órgão. Ele costumava inclusive passar o réveillon com a família dela e ambos iam à ópera e viajavam juntos. Faziam inclusive piada da própria divergência ideológica. Certa vez, Ginsburg explicou a amizade que tinham dizendo: “Eu gosto dele, mas às vezes gostaria de estrangulá-lo”. Em um episódio célebre, em que ela cochilara em um discurso de Barack Obama, Scalia tê-la-ia dito: “Foi a coisa mais inteligente que você fez”.

Sua morte gerou comoção nacional. Até mesmo Bernie Sanders, candidato derrotado nas primárias do Partido Democrata que se considerava abertamente como um socialista, demonstrou profundo pesar por sua morte, afirmando que “embora divergisse das opiniões e da jurisprudência de Scalia, era um membro da Suprema Corte brilhante, original e honesto”. Um “tapa na cara” das pessoas que julgam outras apenas por ideologia.

Scalia mudou o perfil da própria Suprema Corte. Era ferrenho defensor da doutrina do originalismo, que afirmava que a Constituição deve ser lida literalmente, conforme a intenção original dos Founding Fathers (como chamam os primeiros líderes dos Estados Unidos independente, incluindo os constituintes), focando a hermenêutica constitucional no sentido original do texto. Evitava, assim, dar um poder exacerbado aos magistrados, para que estes não extrapolem a letra da Constituição e não violem o poder dos legisladores de legislar. Era um contraponto à teoria da “Constituição viva”, bastante aceita quando Scalia ingressou na Suprema Corte, que preconizava uma autonomia maior dos magistrados para interpretar a Constituição conforme os costumes correntes.

Toda essa influência originalista e textualista ajudou a pôr um freio no intenso ativismo judicial que dominava a Suprema Corte estadunidense nas últimas décadas. Scalia trouxe também um pouco de arte e literatura às decisões da corte, transcrevendo frases de músicos e poetas americanos em seus votos. Além disso, deu início a uma cultura de questionamentos mais incisivos a advogados que faziam sustentação oral na Suprema Corte.

Já Neil Gorsuch tem 49 anos e atualmente é magistrado em um tribunal federal de recursos no estado do Colorado. Se for sabatinado, será o único justice protestante, em uma Suprema Corte que possui cinco católicos e três judeus (apesar de o protestantismo ser a vertente religiosa seguida pela maioria dos estadunidenses). Academicamente, é conhecido pela riqueza dos seus escritos e por também ser um defensor do originalismo e do conservadorismo. Como juiz, chegou a decidir um caso famoso, em que desobrigou as organizações dirigidas por religiosos de seguir a orientação do Obamacare, o seguro-saúde do governo, de pagar por contraceptivos. Ou seja, é um conservador que parece se inspirar em Scalia, mas a priori não tão radical quanto este.

Mas o que esperar de Neil Gorsuch? Será que ele adotará o mesmo perfil conservador de Scalia (mas sem ter o seu mesmo brilhantismo)? Seria algum apoiador de Trump na Suprema Corte?

O que quer que seja, os senadores democratas prometem não poupar esforços para impedir a aprovação de qualquer nome indicado por Donald Trump. Insatisfeitos com o boicote dos republicanos contra a indicação de Merrick Garland, possuem algumas estratégias para as Confirmation Hearings, mesmo sendo minoria no Senado.

Alguns senadores pretendem usar a tática do filibuster, que consiste em proclamar discursos longos, quase intermináveis, para prolongar em demasia as Confirmation Hearings. Como não existe nenhuma regra que limite o tempo de discurso dos senadores, isso poderia postergar tanto a sabatina que tornaria insustentável uma nomeação para a Suprema Corte.

Os republicanos podem tentar reverter tudo isso com a aprovação de uma moção chamada cloture. Consiste em determinar que os debates para a aprovação de alguma proposta se encerrem em no máximo 30 horas. É a única forma de limitação do tempo dos discursos no Senado. Porém, para ser aprovada, a cloture precisa contar com o voto de 3/5 da casa, o que equivale a 60 senadores. Levando-se em conta que o Partido Republicano conta com 51 assentos, o Partido Democrata com 46, que há 2 senadores independentes (que normalmente votam com os democratas) e que há uma vaga de Louisiana que só será preenchida em dezembro, há uma nítida vantagem, pelo menos neste ponto, para os democratas.

Por fim, caso a cloture seja falha, os republicanos podem tentar um último, porém arriscado, recurso, a que se convencionou chamar de nuclear option. Consiste em aprovar, mediante maioria simples (50% mais 1) a supressão de alguma regra ou precedente do Senado. Isso teria um preço político-eleitoral muito alto para os democratas, na visão de muitos republicanos. Porém, senadores democratas, em novembro de 2013, chegaram a fazer uso da nuclear option para suprimir filibusters republicanos no processo de nomeação de alguns indicados para o Executivo e também de juízes federais. Nessa época, o Senado tinha maioria democrata.

Aconteça o que acontecer: essa não parece ser uma história daquelas que possuem um desfecho curto. Mesmo que assim o seja, poderá deixar grandes marcas na política da maior economia global, o que acaba por respingar em todo o mundo. Se somar isso ao fato de que durante o primeiro mandato de Donald Trump está previsto que três justices se aposentem, dois dos quais liberais e um conservador (e esse conservador é justamente Anthony Kennedy), o futuro parece ser algo ainda mais incerto.

Referências:
http://www.conjur.com.br/2017-fev-03/leonardo-correa-indicacao-presidente-trump-suprema-cortehttp://www.conjur.com.br/2017-fev-01/presidente-trump-anuncia-escolha-suprema-corte-euahttp://www.conjur.com.br/2016-nov-27/interesses-politicos-podem-conturbar-destino-suprema-corte-euahttp://www.conjur.com.br/2017-fev-08/eduardo-oinegue-sabatina-indicado-stf-nao-passa-formalidadehttp://g1.globo.com/mundo/blog/helio-gurovitz/post/o-legado-de-antonin-scalia.htmlhttp://brasil.elpais.com/brasil/2016/02/13/internacional/1455402356_122896.html
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/eliogaspari/2016/02/1740151-saudades-de-antonin-scalia.shtml
Imagem: http://radio.uchile.cl/2017/02/03/las-claves-para-entender-el-rol-de-la-suprema-corte-en-estados-unidos/
Teremos o maior prazer em ouvir seus pensamentos

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